(Um pano de cena ou outro expediente cenográfico oculta a embarcação. A MÃE-SOMBRAaninha-se solitária a uma das mesas vazias do restaurante, atenta e expressivamente empática com o que decorre à sua volta, primeiro em relação ao número musical, depois de olhos postos na conversa dos três intervenientes. Quando O CANTOR e GIRALDAse preparam para interpretar em dueto A Dança das Saias, vários pares surgem para desenhar um jogo coreográfico - os músicos, se for caso disso, estarão visíveis no espaço de cena.)
O CANTOR e GIRALDA: (Partilham as quadras e cantam juntos no refrão.)
As saias são quadras soltas
Dançadas com trancanholas
No pó das eiras revoltas
Por pandeiros e violas
As palmas marcam os passos
Dos pares que bailam ladinos
Seus corpos fingem os laços
Que há nos amores campesinos
São ritmos vindos da terra
Olhos ágeis numa dança
Tão antiga que não erra
Na festa que a tarde avança
refrão: Em glória a dança das saias
Soa a licores de poejo
Se beberes demais não caias
No quente chão do Alentejo
Serão adentro quem dança
Promete às estrelas o rosto
Os pés um pouco descansa
P'ra ver foguetes de Agosto
Braços virados ao céu
Neste ritual profano
Pedem tudo o que é só seu
A um deus que se sinta humano
Se vieres treinar as saias
Verás não ser simples dança
E um dia que daqui saias
Não te saem da lembrança
refrão (...)
Está a noite de abalada
'Inda o canto nos habita
Saudamos a alvorada
Nas vozes da despedida
(Os bailarinos, GIRALDA e O CANTOR saem de cena. As luzes concentram-se na mesa onde as três personagens terminaram o jantar.)
VELHO PAI: Então, mas que silêncio? Ficaram decepcionados com o manjar?
NÁRIA: Pelo contrário. Eu gostei muito. Nunca provei nada parecido.
VELHO PAI: Não conheciam o sabor do javalifrango!?
HÉLIO: Já provei muitas carnes híbridas, mas este javali com textura de frango é uma novidade alimentar.
VELHO PAI: E é muito mais saudável do que o porco tradicional. Criou-se uma espécie nova, juntando-se ao ADN do javali comum os genes da carne magra do frango. E o resultado foi o que acabaram de comer: febras biológicas com colesterol reduzido. (Dirige-se ao público.) O que esperavam vocês encontrar num típico restaurante do futuro?
HÉLIO: E eu a julgar que eras vegetariano.
VELHO PAI: Um dia decidi iniciar-me, mas não tenho a alma pura do velho Pitágoras; preciso das proteínas da bicharada para equilibrar os nervos.
NÁRIA: Se aceitasses vir connosco, poderias transferir a consciência para a minha máquina neurónica. Verias o que é pensar sem ter necessidade de comer.
HÉLIO: Os voluntários que se ofereceram descrevem uma sensação psíquica de flutuação, como astronautas no espaço...
NÁRIA: ...ou como crianças no líquido amniótico.
VELHO PAI: Era para cobaia que vocês me levavam! Encerravam a minha pobre alma numa prisão de circuitos e doavam-na gentilmente a um museu de LiberAres. Não, meus filhos, eu prefiro destilar no meu corpo remendado. A ideia de subsistir com a mente enlatada num autómato é um cenário de pesadelo.
HÉLIO: Mas repara, pai, esta máquina pode ser fonte de maravilhas nunca vividas. Um escritor como tu podia terminar nela as suas obras, sem a ameaça da morte.
VELHO PAI: Mas é justamente a morte que me faz escrever. Preciso dela como de uma amante. (Pausa.) E já pouco tenho a dizer aos que cá ficam. Tenciono dedicar-vos o meu último livro. (Oferece a ambos um exemplar impresso.)
HÉLIO: (Lê na capa.) A Ilusão Cósmica. É um bom título. Obrigado, pai. Desejo que vivas muito ainda, mesmo se decidires fechar a oficina de letras.
NÁRIA: (Manuseia o volume) Obrigada Roberto. Fico sem palavras. É sinal de que não estás zangado com o nosso convite, nem com o fantasma da minha máquina fáustica.
VELHO PAI : Zangado convosco? Disparate! E olha, acho que puseste um nome apropriado à tua invenção. Ela concretiza um sonho fáustico. A tua máquina cumpriu o desejo [do demónio] de Milton, poeta de há cinco séculos, porque quem conservar o espírito num cérebro electrónico, tornar-se-á «aquele que traz / Uma mente que não será mudada por lugar ou tempo» (1). (Pausa.) Todo o cuidado é pouco com o poder que traz o seu uso. (O VELHO PAIpresta atenção como se alguém do restaurante o informasse de qualquer coisa.)
HÉLIO: Não me digas que vão já fechar e querem pôr-nos na rua?
VELHO PAI: (Ri-se.) Não, é um hábito que se mantém sempre que apareço. O Elias gosta muito de uma canção que eu compus há muitos anos, quando a tua mãe partiu. É uma espécie de fado-blues onde Évora se confunde com a memória de Ydaura.
HÉLIO: Sei bem qual é. Quando era mais novo, chorava às vezes a ouvi-la.
NÁRIA: Estou curiosa. Para te conseguir molhar a cara, tem de ser obra de excepção.
HÉLIO: Agora calem-se, que se vai cantar o fado.
MÃE-SOMBRA : (Levanta-se do seu lugar e dirige-se à boca de cena. As restantes personagens imobilizam-se numa semi-obscuridade. Uma sugestão cénica para este último monólogo é ele ser ouvido em gravação na voz da actriz que interpreta a personagem. Neste caso, ela será focada pela luz, enquanto a fala decorre, como se se tratasse de uma voz interior.) Antes que ele cante eu quero falar-vos. A dança rústica despertou-me a memória. (Pausa.) Andava eu numa fase que os críticos de arte apelidaram de pintora-comediante. Obcecavam-me os espectáculos mais primitivos: os autos populares, o circo saltimbanco, as festas de rua. Inaugurei uma galeria com a mostra desse ciclo a que chamei: Palhaços e Trapézios. E nesse mesmo dia soube de um pequeno circo que armara a sua tenda num povoado perto de Évora. Não pude deixar de ir vê-lo. Levei o Hélio, tinha ele uns quatro anitos. Era uma companhia muito pobre. As tábuas rugiam sob o nosso peso. E pouco público aceitara o convite dos fanhosos megafones. Os números de sempre: o ilusionista e a jovem seminua, os cães amestrados, os acrobatas gémeos, o índio com as facas, os engolidores de fogo, e os faz-tudos - caretas da miséria que ri. De repente, todos se juntaram na arena a apontar na minha direcção... e batiam palmas entusiasmados. Puseram toda a gente a aplaudir-me, chamaram-me à pista e disseram que eu era uma artista como eles, a sua artista, porque os havia retratado como ninguém nos meus quadros. Eu entrara no seu mundo sem nunca os ter conhecido cara a cara. Os palhaços fingiam de modelos a posar para o pintor e uma contorcionista sãotomense, na sua pele de seda negra, ofereceu-me um ramo de flores prateadas em papel, feitas por ela. (Ri-se.) O apresentador tinha o fraque passajado... tirou-nos uma foto de conjunto para a posteridade, comigo ao centro da troupe, com um macaco no colo, suada de emoção. (Pausa.) Não haveria prémio algum que me deixasse mais comovida. (Pausa.) Transtorna-me pensar que isto aconteceu vai para tantos anos. Ter-se-ia passado mesmo ou fui eu que o magiquei? Não, não, eu não inventei esta cena... «O teatro é um cansaço fascinante» (2), mas chegou a tua hora, barqueiro: o meu fado termina, o teu começa. (Retoma o seu lugar sentada à mesa.)
O CANTOR: (Interpreta a canção A Vida é uma Mulher que canta o Fado.)
Évora, ao passares menina e bela,
Acaso eu algum dia te agradei;
Cruzaras meu caminho com o dela
E os mouros olhos teus em si achei.
Será que uma cidade pode ter
Nas suas mãos o destino traçado,
De todos os que nela vão fazer
De cada dia um pouco do passado ?
( refrão ) No tempo esta paixão gravada em ti,
Toada de silêncio enclausurado;
2 vezes: Quando a alma de um homem chora e ri,
A vida é uma mulher que canta o fado.
Évora, paisagem de ninguém
Num rosto de museu eternizada;
Revela-me a muralha onde é refém
Aquela que eu perdi depois de amada !
Janelas de loucura e mansidão
À luz torrencial do astro-rei,
Quiseras dar-me voz para uma canção
Que a música vivi mas não escutei.
( refrão ) Em pedra o corpo teu tornou daqui,
Escapaste anoitecida do meu lado;
1ª vez: Quando a alma de um homem chora e ri,
A vida é uma mulher que canta o fado.
2ª vez: Quando a alma de um homem chora e ri,
És Évora a mulher deste meu fado.
(Nos breves instantes derradeiros, o cenário descobre de novo a barca que nele se dissimulava; a MÃE-SOMBRA ergue-se da sua cadeira e estende, estática, a mão ao VELHO PAI, sentado de costas para ela. Ele pressente o chamamento e abandona HÉLIO e NÁRIA - que permanecem sentados e imóveis -, caminhando na direcção da MÃE-SOMBRA para que tomem lugar na barca a bordo da qual O CANTOR já se divisa.)
FIM
Évora/Lisboa, Abril/1995 - Fevereiro/2003
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