Comecei a escrever teatro há exactamente vinte anos; com uma peça que concluí no ano seguinte, em 1988, motivada que foi pela terrível impressão que me causou um acidente nuclear ocorrido no Brasil, na cidade que deu o nome a essa peça inédita de juvenil e experimental desmesura: Goiânia – Uma Nova Caixa de Pandora. Doze anos depois, estreei-me como autor representado com Lianor no País sem Pilhas (2000), pela Comuna - Teatro de Pesquisa, e desde então ao acto de escrever teatro passou a seguir-se a experiência integral de o ver realizar na cena, e ser cúmplice activo desse processo, o mais recente dos quais foi O Eunuco de Inês de Castro, no contexto de uma produtiva colaboração que venho mantendo com o Cendrev – Centro Dramático de Évora, desde 2004.
Falo deliberadamente em escrever teatro, e não somente escrever para teatro, porque para mim o teatro também se escreve, sempre que para ele se inventem veículos verbais que a imaginação destinou a serem acção na voz e no corpo dos actores, no espaço e no tempo de um espectáculo que o é por ser partilhado com o público. E acabo de enunciar dois elementos fundadores para haver teatro: actores e espectadores. Mais dois intervenientes se agregam para um quarteto conflitual, que se deseja mutuamente fecundo: o dramaturgo e o encenador. Se o encenador concebe o espectáculo na materialização visível dada pela cena e por aqueles que a habitam; já o labor do dramaturgo consiste em construir, por virtualidade imaginativa, um guião de palavras animadas de teatro implícito que actores, encenador e espectadores irão diversamente descobrir, interpretar e fruir. Porque o teatro é prazer e conhecimento, emoção e racionalidade. De facto, a escrita teatral é muito diferente das outras formas de criação literária. Mesmo que integre em si componentes da poesia lírica, da narrativa romanesca, do texto documental, ou do ensaio filosófico, tais componentes precisam saber respirar na atmosfera da cena, isto é, necessitam fazer parte orgânica do objecto cénico que ganhará vida autónoma diante de nós. A escrita teatral reconhece que, para o ser verdadeiramente, necessita de transcender-se enquanto escrita vertida nas páginas de papel ou no ecrã do monitor. As palavras de teatro são ritmo e sentido, movimento sensorial e gesto psíquico. Por isso, o teórico e encenador inglês Gordon Craig (que morreu com 94 anos em 1966, o ano em que nasci) afirmava que o dramaturgo não descende do poeta lírico nem do romancista, mas antes sim, é filho do dançarino. E o dramaturgo será então esse dançarino-filósofo, suponho, com que Nietzsche sonhou. As palavras que são teatro dançam na partitura da cena como entidades que agem, enquanto dizem e mostram o seu acontecer. Aos quatro elementos que atrás nomeei, juntem-se mais três e ficamos com a soma mágica do número sete a perfazer a equipa cénica. São os responsáveis pelas diversas artes plásticas da cena: o cenoplasta (designação onde incluo cenógrafo e figurinista), que arquitecta o espaço da cena e desenha para o corpo do actor; o luminoplasta, que mobiliza a personagem demiúrgica da luz; e o sonoplasta, artesão da cenografia auditiva, sendo músico de cena, mesmo que não chegue a ter o perfil de compositor musical. De resto, a música terá de estar, de algum modo, inscrita no verbo para que este dance a comunicação do rito secularizado a que chamamos teatro (palavra grega que significa o lugar de onde se vê). Rito esse que a sabedoria mítica dos gregos consagrava ao deus Dioniso, agente fascinante de paixão insubmissa e transgressão psicoterapêutica, da sociedade e do indivíduo, porque traz à luz da cena aquilo que a cidade não pode esquecer nem ignorar, sob pena de se alienar a si mesma.
(in Diário do Sul, Évora, 27/3/2007)
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