III ENCONTRO DE TEATRO IBÉRICO . ÉVORA/2005 TEATRO: UM ESPAÇO SEM FRONTEIRAS |
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Antes de mais, gostava de dizer que não tenho nada contra as fronteiras. Talvez porque, para mim, são essencialmente linhas de demarcação, que podem ajudar a definir e caracterizar a identidade específica de um espaço em relação a outro e, sobretudo, porque as fronteiras podem sempre ser fronteiras transponíveis. O que me preocupa realmente são as barreiras… Aquilo que tenho para dizer hoje é menos uma “comunicação” do que a partilha de algumas dúvidas. Por isso, o título algo pomposo “Homossexualidade, Política e Arte” não deve ser interpretado de forma demasiado literal. Não quero aqui apresentar-vos uma visão organizada de como entendo as relações que se estabelecem entre estas três coisas, mas antes deixar no ar algumas perguntas para reflexão. E, claro a Arte do título, no que aqui nos diz respeito, refere-se em particular à prática teatral. Poder-se-ia dizer que o tema da homossexualidade tem sido amplamente tratado pelos criadores teatrais portugueses. Aliás, ouvi este argumento de forma recorrente nos últimos tempos em oposição à pertinência, necessidade ou até mesmo ao mero direito de existir de um teatro dito gay em Portugal. Mas a verdade é que o tema raramente tem sido alvo de um tratamento em que a vertente política ganhe relevância. Assim, a homossexualidade tem surgido interpretada de forma poética, simbólica ou até mesmo sublimada… mas raramente de forma política. E quando digo política, talvez fosse mais adequado utilizar o termo politizada. Mas o que é, afinal, um espectáculo político ou politizado? É aquele que adopta o discurso didáctico que convém ou está assim institucionalizado? Ou antes, é aquele que implica uma postura, um posicionamento ético, mesmo que não siga a linha livremente admitida como socialmente pertinente? E, afinal de contas, quem define essa pertinência social? No caso da homossexualidade, percebi recentemente algum desconforto em relação a qualquer discurso que não valide a imagem dos homossexuais enquanto criaturas fiéis, monogâmicas e praticamente assexuadas. Quase que uma reprodução mimética da imagem social instituída acerca da heterossexualidade, como se esta última desconhecesse a infidelidade, as relações abertas ou a promiscuidade assumida, os divórcios, a procura de aventuras sexuais, etc. Ou seja, qualquer discurso sobre a homossexualidade que tome por objecto os comportamentos sexuais concretos, e não necessariamente numa atitude de censura, poderá ser considerado por alguns como social e politicamente irresponsável. Por outro lado, há neste momento uma irritação profunda para com o mero termo gay. Desde as mais simples razões etimológicas até às justificações éticas mais profundas. É verdade, sim, que o termo gay se tem banalizado ao ponto de quase substituir o termo homossexual na linguagem corrente. No entanto, é igualmente verdade que o termo tem para a comunidade homossexual a nível mundial um valor semântico específico: corresponde a um processo de identificação social, política e cultural. Ou seja, reflecte uma série de preocupações sociais comuns, funciona como conceito agregador a nível político (que ultrapassa em muito as questões da mera atracção/orientação sexual) e reúne em si uma série de referências culturais específicas. Esta não é uma visão pessoal, é uma noção livremente admitida a nível mundial e que não se limita aos ditos países anglo-saxónicos. Em Portugal, no entanto, a irritação com o termo tem crescido ultimamente. Situação, aliás, com a qual me vi confrontado várias vezes ao longo deste ano. Numa dessas ocasiões, José Mário Costa do site Ciberdúvidas resolveu afirmar «que quem prefere o termo em inglês ao português fá-lo por indisfarçável pedantismo de linguagem» (fim de citação). Devo acrescentar que o diálogo que estabeleci no sentido de esclarecer as conotações sociais, políticas e culturais que o termo contém, a sua adopção de forma coerente e persistente pela comunidade homossexual nos mais diferentes pontos do mundo e mesmo o facto óbvio de que também em inglês as duas variantes existem ("homosexual" e "gay") não serviu de muito… José Mário Costa continuou a pensar exactamente o que pensava antes. E preferiu ignorar que mais do que linguística se tratava de uma questão política, recusando-se mesmo a perceber de que forma o seu comentário poderia ser ofensivo. Eu não uso o termo gay por indisfarçável pedantismo de linguagem. Uso-o por uma questão de identificação política. E no caso de prezarem o facto de vivermos num sistema democrático não têm mesmo outro remédio senão respeitá-lo, mesmo que não concordem. Mas se pensam que este desconforto com o termo é exclusivo da chamada sociedade maioritariamente heterossexual, enganam-se. Existe um largo sector da comunidade homossexual em Portugal (se é que no nosso país de pequenos clubes se pode falar em algo tão abrangente como uma comunidade) para quem o termo gay é descabido. Mas aqui, a irritação tem razões mais profundas. Tem a ver com um posicionamento ético que considera que o termo ajuda à guetização e que não faz sentido a criação de objectos artísticos que: ou assumam a identificação gay como formadora do discurso veiculado; ou que queira tomar por público-alvo específico os homossexuais. Estão fartos de literatura gay, de programas de televisão gay, do turismo gay. Desculpem-me a arrogância, mas estar farto de qualquer coisa que tenha o rótulo de gay num país que só há 7 anos ganhou coragem para festejar de forma pública o dia do orgulho gay (quando nos Estados Unidos, apenas para citar o exemplo mais óbvio, é festejado há quase 40 anos), faz-me um pouco de confusão. Atingimos neste aspecto uma evolução um tanto estranha na aceitação da homossexualidade: num muito curto espaço de tempo, tornou-se aparentemente um dado adquirido, obviamente aceitamo-la e, por isso mesmo, não faz sentido andar a discuti-la (do mesmo modo que não fazia sentido discuti-la antes, por não ser aceite). Obviamente, os homossexuais continuam a discutir todas estas questões… bom, alguns homossexuais, pelo menos. Mas, uma vez que a problematização em redor da questão homossexual continua a ser amplamente escamoteada em nome de uma incompreensível e supostamente aberta tolerância (não temos nada contra desde que não se veja e permaneça dignamente preservada no espaço confinado das quatro paredes de cada um), é apenas natural que qualquer problemática com ela relacionada acabe por ser igualmente ignorada. Perguntarão vocês o que tem tudo isto a ver com um encontro de teatro? Quem têm todas estas questões a ver com o discurso ou a criação artística? Bom… quando falamos em teatro, ou em arte em geral, falamos provavelmente do mais extremo acto de liberdade. Para mim, a arte é pessoal. Poderá obviamente ser comunitária no sentido em que chega a muitas pessoas e lhes comunica problemas ou preocupações comuns. Mas é acima de tudo um acto de comunicação pessoal. Implica um ponto de vista, um posicionamento, uma necessidade ou um imperativo de partilha. E nada poderá ser mais pessoal do que isso. Obviamente, seria intelectualmente desonesto da minha parte escamotear as razões que me levaram a apresentar esta comunicação. Iniciei este ano um projecto que se estenderá até 2007 e que assume de forma clara um discurso gay (ou seja, político). E embora não considere fértil para a discussão estender-me demasiado sobre essa experiência particular, não posso deixar de partilhar convosco algumas observações. A primeira é a divisão clara nas reacções ao espectáculo: as reacções dos heterossexuais foram em geral positivas e cúmplices. As dos homossexuais fragmentaram-se de forma drástica: - havia os que consideravam que o espectáculo passava uma imagem negativa do universo gay, demasiado focado na questão dos comportamentos sexuais e que teria como resultado inevitável levar os heterossexuais a “odiar” ainda mais os homossexuais; - mas havia igualmente os que sentiam a provocação como demasiado tímida, pouco fraccionária na abordagem desses mesmos comportamentos sexuais e demasiado preocupado em agradar igualmente aos heterossexuais; - havia também os que consideravam pertinente o discurso, embora sentissem que não se falava de tudo o que seria importante referir acerca dos gays (nomeadamente a sua capacidade para manter relações duradouras), mas que consideravam interessante a preocupação em que os heterossexuais fossem igualmente alvo do discurso; - havia ainda os que sentiram o espectáculo como algo que lhes era finalmente destinado, feito por um português e a falar de realidades quotidianas e concretas que lhes são familiares e que não vêm retratadas com frequência a não ser em produtos culturais de importação. - e, por último, havia os que consideravam que estamos muito à frente de qualquer esforço didáctico, que a integração é real e quotidiana e que não faz sentido andar a falar “gay” em Portugal. Primeira conclusão positiva: que sermos homossexuais não nos torna numa massa indistinta e facilmente “catalogável”. As necessidades e as expectativas enquanto receptores de um discurso artístico, ético e político variam consideravelmente. Mas, mais interessante ainda é que estes vários grupos parecem desconhecer (ou, pelo menos, não parecem interessados em validar) a existência uns dos outros. Devo confessar-vos que mais interessante do que confrontar-me com uma tão patente divisão nas opiniões, foi constatar a surpresa ou pura e simples perplexidade perante reacções contrárias àquelas que sentiam de forma tão veemente. Segunda conclusão: de forma coerente, as reacções ao espectáculo raramente se relacionaram com o material artístico em si, mas quase sempre com o posicionamento ético do espectáculo. Estou obviamente a excluir deste âmbito as reacções da crítica profissional e dos membros da classe teatral: espero que não me levem a mal, mas perante a realidade concreta de um espectáculo não são as vozes que considero mais pertinente ouvir. Ou, pelo menos, não são aquelas que ouço em primeiro lugar. Perante tudo isto, não posso deixar de colocar-me algumas questões… Será assim tão inútil ou anacrónico um teatro que assuma este discurso assumidamente gay (seja como identificador do tipo de comunicação, seja por apontar para um receptor específico)? E se isto for verdade, quererá dizer que devemos ignorar aqueles para quem essa importância é clara e inequívoca (e mais do que uma importância, constitui uma necessidade)? E se estamos tão à frente da pertinência da especificidade deste tipo de discurso, isso quererá dizer que devemos ignorar aqueles, por exemplo, que não foram ver o espectáculo por medo de que isso fosse o equivalente a assumir-se? Entre as muitas reacções que recebi, alguém de Coimbra dizia-me há uns dias que seria interessante levar aí o espectáculo. Mas admitiu que ainda bem que o vira em Lisboa, pois não teria coragem para ir assistir na sua própria cidade, onde as pessoas poderiam reconhecê-lo. Pois… estamos de facto muito à frente. E, em última análise, devemos considerar a pertinência política apenas daquilo que veicula uma imagem branqueada dos comportamentos sexuais? Eu confesso que sou um liberal… não consigo ter qualquer juízo de valor em relação a qualquer comportamento ou prática sexual, desde que de forma consentida por ambas as partes e nunca à custa do sofrimento de terceiros. E se tivermos em conta que é exactamente a prática sexual, os actos concretos e físicos da homossexualidade, o que tem afligido ao longo dos tempos a sociedade mais conservadora, eu pessoalmente considero que nenhuma hipótese de integração será real até que os homossexuais sejam aceites também nessa dimensão. Gore Vidal chocou a América em 1979 ao intitular um seu artigo publicado na revista Playboy: Sex is politics. Sexo é Política! Mas obviamente isto foi há cerca de 25 anos atrás e, nessa altura, era mais fácil chocar alguém. Em Portugal habituámo-nos há muitos anos a admitir que a arte (e o teatro, claro) é sobretudo um acto político. Eu sou homossexual. Tenho necessidade de falar da forma como essa homossexualidade constitui uma experiência emocional, social, política, cultural e sexual no que isso tem de mais concreto. Quero ter o direito a essa liberdade, mesmo que para alguns não faça sentido. Não será isto também um posicionamento ético, político? Obrigado. |
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Luís Assis é dramaturgo/encenador/actor |
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Comunicação apresentada a 12 de Novembro de 2005 em Évora (Teatro Garcia de Resende) no âmbito do III Encontro de Teatro Ibérico sob o tema “Teatro: Um espaço sem Fronteiras” | ||