III ENCONTRO DE TEATRO IBÉRICO . ÉVORA/2005 TEATRO: UM ESPAÇO SEM FRONTEIRAS |
||
|
||
E, para que não restem dúvidas sobre o conteúdo desta intervenção, começo por relembrar a diferença entre sexo, género e papel social. O sexo, a identidade sexual, é dado pelas características biológicas: nasce-se macho ou fêmea da espécie humana. O género é o modo como as sociedades olham / pensam as pessoas do sexo masculino e as pessoas do sexo feminino. É a consequência do sexo numa organização social. Ou seja: não nascemos mulheres ou homens: tornamo-nos mulheres ou homens. E, a partir desta definição, apriorística, de género, assim são atribuídos os papéis sociais. Mas, afinal, o que é isto de ser homem ou mulher? É assim que o Grande Dicionário de Língua Portuguesa nos responde: Homem , s. m. (do lat. homine-). Cada um dos representantes da espécie humana, animal racional...; O ser humano do sexo masculino (opõe-se a mulher). Mulher, s.f. (do lat. muliere-). A fêmea da espécie humana; pessoa do sexo feminino, depois da puberdade....’ Desta ausência de simetria, desta desigualdade no modo como se vê e se pensa um homem e uma mulher, resulta, que, para o senso comum,
Donde, em síntese, os papéis sociais que emergem do género exigem:
A submissão a estes papéis leva a que, no padrão geral das sociedades e dos países, o conjunto das mulheres tenha, face ao conjunto dos homens:
e o conjunto dos homens tenha, face ao conjunto das mulheres:
Esta assimetria de género é revelada nos textos teatrais. Já dizia Terêncio, dramaturgo latino no Séc. I antes de Cristo: “Eu sou homem e nada do que é humano me é alheio” A seguir-se esta tese, terá que se concluir que o que é feminino não é humano, ou quando muito, não é tão humano como o masculino. Talvez seja a tese do Vaticano que, no seu novo léxico, no capítulo "novas definições do género", considera a reconfiguração dos papéis desempenhados pelo homem e pela mulher "o início de uma nova cultura, que exclui o matrimónio, a maternidade e a família, e que aceita todos os casos possíveis e imagináveis de prática sexual". O Vaticano teme que a "teoria do género cause mais estragos do que a ideologia marxista". Há 15 anos, nos Estados Unidos, uma filósofa feminista de 34 anos, Judith Butler, publicou o livro "Problemas de Género - Feminismo e Subversão da Identidade". A sua análise parte do mal-estar que um travesti pode causar, "a partir do momento em que não se sabe se o corpo observado é de um homem ou de uma mulher”. Simone de Beauvoir já dizia: "Não se nasce mulher, torna-se". Judith Butler vai mais longe. Segundo ela, ninguém se torna verdadeiramente mulher. "O género não é dado de antemão, é sim uma actividade realizada de forma ininterrupta sem se querer e sem se perceber”. Um dos maiores erros da cultura ocidental é a ideia de que existem dois géneros separados e opostos. O dualismo do género não é apenas falso e sem qualquer apoio científico, mas é sobretudo nocivo e prejudicial à sociedade. Uma das estratégias para tentar combater esse erro é o conceito de androginia, em que a masculinidade e a feminilidade não são concebidos como extremidades opostas de um mesmo “spectrum”, mas como dois “spectruns” separados: pode ser-se masculino e feminino ao mesmo tempo, ou não se se ser nenhum deles. Desta forma, é possível combinar as várias componentes da masculinidade e da feminilidade nas formas mais variadas, e de acordo com as necessidades e preferências do indivíduo. No entanto, esta solução não é a ideal já que a androginia acaba por reproduzir elementos da velha dicotomia sexual, mesmo que reconstruídos em diferentes combinações. O que se procura é ultrapassar a esquizofrenia cultural e social do dualismo do género e não reformulá-la. O que não é fácil, levando-nos a sentir que continuamos à procura do “sexo dos anjos”. A verdade é que esta procura não é uma utopia. A procura do género é a procura da nossa identidade, da maneira como nos definimos nas nossas relações e na sociedade. “Nascemos nus. Tudo o resto é travestismo”. E, assim, chegamos ao teatro: De tudo o que foi dito, concluímos que o género é uma construção social e o teatro foi, ao longo de séculos, o espelho social de um modelo bipolar no que ao sexo e género se refere, criando e mantendo divisões e expectativas de personalidade artificiais para os sexos, limitando a humanidade de um e de outro. Os teóricos da representação acreditam que o género é independente do sexo e que é melhor compreendido através do teatro já que este dá visibilidade à estrutura que enforma a representação: a linguagem corporal, a modulação da voz, o padrão do discurso, a expressão facial, a proxémica, o vestuário, os acessórios, a maquilhagem, etc. O Teatro contribuiu, assim, na maior parte das vezes, para a criação de estereótipos de masculinidade e feminilidade, o que não facilitou a luta pela construção de géneros e papéis sociais independentes do sexo. Assim, as mulheres positivas foram quase sempre apresentadas como sensíveis, delicadas, não competitivas e altruístas e as negativas como rebeldes, independentes e egoístas, enquanto que o homem tinha iniciativa, era independente, competitivo, agressivo e ambicioso. O Teatro foi, e ainda é, o reflexo das noções patriarcais tradicionais do género. Foi, e ainda é, maioritariamente, uma construção de uma classe média masculina e heterossexual, embora o Teatro contemporâneo, a partir de finais do século XX, tenha vindo, cada vez mais, a distanciar-se deste modelo, com o “boom” de mulheres dramaturgas e de autores homossexuais a escreverem textos teatrais. Quando um actor entra no palco e o público simpatiza e empatiza com a sua representação, ambos (actor e público) entram numa transacção de uma intensidade que não tem correspondência em mais nenhuma arte, construindo em conjunto valores complexos representantes de uma cultura e de uma sociedade. Esta construção pode ser benéfica ou nociva. Por isso o teatro continua a ser a maior arma de intervenção em momentos de crise social. Por isso o teatro tem um papel fundamental na construção dos géneros e papéis sociais. Durante muito tempo foi vedada às mulheres a representação teatral. Homens interpretavam papéis de mulheres, ou usando máscaras, ou travestindo-se. Os textos dessas épocas eram férteis em personagens femininas fortes, muitas vezes iguais aos homens na sua agressividade, iniciativa, independência, espírito combativo. Porque eram homens que as personificavam e o público sabia-o, por isso aceitava-o. A partir do momento em que a mulher se torna interprete, os textos passam a revelar todo o estereótipo feminino, como antes descrevi. Ainda hoje no Japão se encontram duas formas teatrais extremamente perversas de travestismo: o Kabuki e o Takarazuka. No primeiro, apenas interpretado por homens, estes transvestem-se e representam mulheres no sentido mais tradicional e reaccionário que o género lhes permite, transmitindo o comportamento da mulher ideal: “a boa esposa e mãe”. O mesmo sucede, de forma oposta, no Takarazuka: as mulheres transvestem-se no ideal masculino. Se, por um lado, estas representações conseguem romper os preconceitos do género, elas acabam por determinar, de forma irredutível, os papéis sociais que estão ligados ao género. O que o Teatro deve procurar e, esta é a grande vertente da Escola de Mulheres, Companhia de que faço parte, é a igualdade de géneros e papéis sociais. Em 1997, a Escola de Mulheres apresentou “Sétimo Céu” (Cloud Nine) da dramaturga inglesa Caryl Churchill, um texto exemplar na utilização do género e dos papéis sociais. “Sétimo Céu” é uma peça culto, poderosíssima, de 1978. Uma sátira negra com uma visão lúcida da sociedade patriarcal, da homossexualidade, da heterossexualidade, do amor, das relações do género, dos hábitos sociais, da política, do casamento, do poder e do sexo. Todas as personagens são multifacetadas e complexas: cada actor representa vários papéis, o sexo não determina o género, pelo que poderá representar tanto o papel de uma mulher como o de um homem, o de um adulto como o de uma criança. As personagens, tanto as femininas como as masculinas, não reproduzem estereótipos nos seus papéis sociais. É uma peça a ler como referência de um teatro que quebra todas as barreiras de sexo, género e papel social. Onde se encontra, afinal, o sexo dos anjos. Um teatro sem fronteiras. O mesmo tentámos com o espectáculo BERNARDOBERNARDA. A partir dos poderosos e sempre actuais textos de Bernardo Santareno, um autor com sexo de anjo, quisemos criar um espectáculo em que, como está escrito no nosso texto de apresentação: se trocam identidades e papéis sociais, num jogo de espelhos em que o Masculino e o Feminino se cruzam, enfrentam, e se dissolvem na utopia de um terceiro sexo que paira (como um anjo) sobre a fragilidade humana assombrada pelos limites da sua condição social de poder apenas ser ou macho ou fêmea. Como podem deduzir, tentámos criar um espectáculo sem fronteiras. |
||
Bibliografia |
||
AGACINSKI, Sylviane. Politique des sexes . Éditions du Seuil,1998 ANA Gabriela Macedo (org.), Género Identidade e Desejo . Lisboa, Edições Cotovia, 2002 BARRENO, Maria Isabel et al., Novas Cartas Portuguesas . Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1998 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina . Oeiras, Celta Editora, 1999 CARMO, Isabel do, et al. Vozes Insubmissas , Lisboa, Dom Quixote, 2004 COLLIN, Françoise. Le différend des sexes . Éditions Pleins Feux HALL, Stuart (ed.) Representation . Open University, 1997 LAGARDE, Marcela Género y feminismo . Madrid, horas y HORAS, 2001 MILL, John Stuart et al. Ensayos sobre la igualdad sexual. Ediciones Cátedra, 2001 TUBERT, Sílvia (ed) Del sexo al género. Ediciones Cátedra, 2003 |
||
Isabel Medina é actriz, autora e encenadora |
||