(A prisão. De um
lado o Espanhol e Fredi. Do outro o senhor Ualt sentado. Ambiente
obscuro por causa da luz que mal atravessa as grades da sala de
visitas).
Ualt:
Este encontro mostra bem
como nada é fruto do acaso e que a vida tal como a julgamos conhecer,
não progride sem um sentido de ironia.
Espanhol: Foi o senhor?
Ualt:
Que há já algum tempo se
encontrava na posse da razão, pronto para uma viagem sem regresso e que
agora se vê a cair num poço sem fundo?
Espanhol: Foi o senhor que
mandou matar aquele rapaz?
Ualt:
Há provas dizem eles. A
culpa é um ciclo. Sou tão inocente como o carrasco.
Espanhol: Matou-o?
Ualt:
Perguntas. Pisá-los com
polés. Nem um que escape. O cão! A cheirar-me o rabo a ver se pegava.
Mas eu meti-o na ordem.
Espanhol: Estou a ver.
Ualt:
Levei-o a tal sítio onde
nada mais o faça cometer o mesmo engano.
Espanhol: Porquê?
Ualt:
Perguntas, nada mais que
perguntas. Tenho a resposta no espírito. Indivíduos há que a têm na
língua, pronta a soltar-se. A minha vida começou na construção de
pontes. Abraçava-as de noite ao luar com uma satisfação tremenda. Nada
do que fizera até então me poderia fazer prever o que me estava
destinado. Viver um dia como um condenado. Uns há que dizem: basta
trair-se uma vez para não mais regressar. Eu digo: regresse-se como for.
Mas regresse-se. Só assim se pode voltar a trair. Têm provas dizem eles.
Uma gravação que o Eduardo deve ter feito quando eu planeei o assalto do
ano passado.
Fredi:
Não foi o senhor.
Ualt:
Fui eu. Deus é minha
testemunha. E o estúpido insensível nem sequer me impediu. Está-me no
sangue, sabia-o ele. A tendência para a fraude e para o roubo em mim são
instantâneos e ele sabia-o ao ponto de lhe chegarem as lágrimas aos
olhos tal era a felicidade. Tornou-se uma espécie de sombra que
subestimei dada a imbecilidade irritante com que me abordava. Reuniu
provas, mas quando se está demasiado confiante, há um entrave que não é
senão a impressão de uma ligeira angústia...que começa por se espalhar
como um cancro...e nos consome...Há um momento em que as vítimas se
apercebem da sua morte: é quando ela constitui para o agressor a sua
única hipótese. Olhamos para os seus olhos e não lhes dizemos: vais
morrer! Pelo contrário, damos sempre a entender que somos nós as
vítimas. É o que resta de consolação às mentes criminosas: a mentira que
se vive como verdade. Daí a simular um suicídio é apenas o tempo de um
sopro. Mas depois é a tal ironia: uma criança aparece no único sítio
onde qualquer outra da sua idade jamais se atreveria a aparecer. Por
razões inexplicáveis. E na sua visão de criança vê que se comete uma
maldade. Não foge como os outros fariam. Tem inveja do forçado que é
arrastado para cortar a própria garganta e quer tomar o lugar dele.
Começa a escavar até encontrar o corpo já sepultado e dá de caras com um
medalhão. Tira o medalhão e exibe-o como uma riqueza. Em casa recebe-se
uma carta de suicídio, mas perante esta prova, nada a fazer. Eu vi,
grita com a sua voz de infante. É o melhor aluno da sua escola. Tem uma
memória perfeita. Consegue descrever, embora com alguma hesitação, os
homens. Os especialistas desenham os rostos dos criminosos.
Espanhol: E as tais provas?
Como fugir-lhes?
Ualt:
Destruindo-as. Matando-o a
ele. Mas havia mais alguém. Com cópias. Fac-simile. A porcaria de um
fac-simile.
Fredi:
Sinto muito por se terem
conhecido assim...nestas circunstâncias.
Espanhol: Queria saber...e é
tudo. ( Saem o senhor Fredi e o Espanhol).
Ualt:
Levem-me para a cidade. Não
quero apodrecer aqui. ( Escuro).
Fim |