NELSON BOGGIO

Fábrica do Vidro

ÍNDICE GERAL

Terceiro acto      

Cena III

(Sala de estar da hospedaria. Senhor Apolinário com um fato de domingo.)  

Apolinário: Que era maravilhosa. Minha querida Carmo, faça lá outra vez aquela graça...já não se lembra. Era assim: A menina levantava-se da cadeira e cruzava as pernas. Parecia uma bailarina. Dançava à volta da mesa e depois fazia birra. Este sol caramba. Eu lembro-me de estar rodeado de crianças. A menina e a sua irmã. Debaixo do lustre. Quando o reflexo dos cristais tinha outro brilho.   

Carmo: É melhor não.  

Apolinário: E porquê?  

Carmo: Sinto uma leveza que não é muito comum quando me levanto. Era capaz de levantar voo. É melhor não.  

Apolinário: Levante voo minha pomba. 

Carmo: É de uma liberdade constrangedora tudo isto...a vida.  

Apolinário: A vida, diz bem. A vida. Às vezes quando o silêncio não é senão o prenúncio de um enorme desespero, parece ouvir-se a terra a babar-se. E depois, como um raio de trezentas mil jardas, o coaxar de rãs melindra tudo isso. Caio em mim. Parece que esses animais estouram com um aparato quase tão bárbaro como um arroto. São criaturas grotescas. Mas pior é o homem. Acho exagerada a sua presença. Quando estou na presença da máquina humana, que cumpre uma vontade superior à sua, então são trabalhadores que vejo. Mas se por motivos tão diversos é uma alma que se perde no trajecto que essa mesma vontade traçou, então é um desperdício de existência o que se me apresenta. Esse homem tem de regredir à dimensão de uma alface. Ou desaparecer.  

Carmo:  Então e o senhor Apolinário?    

Apolinário: Evitar aborrecimentos...o tédio, enfim. É na ordem...sim, na ordem...que se prefigura como direi...o caos...e no caos dessa ordem uma espécie de valorização de um outro caos.  

Carmo: ( Afagando-lhe a cabeça) Lembro-me de si, sim. Um professor com todo o aparato. A sua mulher ainda estava consigo antes do acidente.  

Apolinário: Ocidente? Viraria os meus olhos para oriente se me dessem a espiolhar a alma humana. A alma é um abismo. 

Carmo: Depois despediu-se para nunca mais. De vez em quando ainda fica lúcido...capaz de falar... das coisas...mas depois é sugado para o abismo e recorre a disparates...um acidente desses. Mas faz-lhe bem estar aqui...sair seria a sua perdição. Encontrou aqui a sua salvação.  

Apolinário: Sem a ciência o homem...o homem não é nada. É um pedaço de madeira...um poltrão.  

Carmo: Os seus filhos visitam-no com menos frequência. É natural. Nada que enganar. Nada que recear.  

Apolinário: Minha querida amiga! O que me apetecia agora era ir dormir. Dormir e não acordar mais. Só quando o homem estivesse rodeado por uma beleza invulgar, aí sim, valeria a pena. Quando a graça tomasse a forma de um homem e o libertasse para a comunhão. Aí sim.  

Carmo: A mãe onde está? ( Aparece Vera) Vera, onde está a mãe?  

Vera: A sacudir os cobertores com a criada. Temos de falar com ela. Não aguento mais. Não consigo. Tentei esquecer...tentei... 

Apolinário: A sacudir os cobertores com a criada no terraço. Eu vou descansar um pouco.  

Carmo: Faça favor de a chamar...por favor.  

Apolinário: Imediatamente. ( Sai ). 

Vera: Nada há a dizer sobre isto. Se ela continua eu vou-me embora desta casa.  

Carmo: Vera, lembras-te de uma dor horrível que sentias quando o calor era muito e que sangravas mesmo a dormir? Lembras-te?  

Vera: Sim. 

Carmo: E sabes que ficava contigo até de madrugada, a limpar-te a testa com panos húmidos? 

Vera: Estás a desculpá-la.  

Carmo: Estou a dizer-te que a vida talvez seja demasiado insignificante.  

Vera: E o pai? Eu não consinto que o engane mais...vou embora.    

Carmo: Não vás. Não.   

Vera: Não acredito que ignores uma coisa destas.  

Carmo: Não ignoro, não. Ele consentia.  

                                                                              (Entra a Senhora Henriqueta)  

Vera: Não acredito. Não acredito. Ele ignora-a e é tudo. Como é que alguém consente uma coisa destas? Não podes falar por ele. Não podes.  

Carmo: Vera, de nada vale respondermos por eles. De nada vale. Não devemos sofrer por eles. Deixemos tudo como está.  

Vera: E resolveste isso assim? Do dia para a noite?  

Carmo: Tal como eles resolveram a vida deles.  

Vera: Não posso crer.  

Henriqueta: Filhas!  

Carmo: Mãe!

 Vera: Mãe! 

Henriqueta: Que noite! Abafada! Sim, é fantástico! Há muito tempo que esperava uma noite assim. Só frio! Só frio também cansa. É magnífico ver noites como esta. Podemos estar absorvidos...sem preocupações...sem ter coisas que nos perturbem...coisas que...Que noite. Não é só aqui. É em todo o lado...nós não escolhemos...e é verdadeiramente cruel se nós...enfim...cabe a todos pensar que se se destrói uma parte do que se é jamais se reconstruirá de novo essa necessidade...essa necessidade que compete a cada um...mas há que nos despreze...há quem consiga fazer com que passemos uma vida inteira despercebidos...e nós aguentamos...nós mantemo-nos intactos...porque precisamos verdadeiramente. E então é sobre isso que é preciso pensarmos para estar como muito bem nos apetece...porque se não cuidamos de nós...se ao mais pequeno descuido...porque há coisas nocivas. É preciso ter em conta a verdade porque mais tarde é sobre ela que nos vamos debruçar. Já muitos tentaram resolver estas questões mas é como uma faca que se crava no peito de cada vez que...E depois todas as outras coisas...Estou a induzir-vos em erro...não pensem que me refiro...não, nada disso. Desculpem se por qualquer motivo...e só nós aqui desta maneira...há quem não enterre os mortos. Há quem habite em casas mais frias do que esta. Num dia não tão conturbado...um dia...iríamos...sabe-se lá... 

Carmo: Pare com isso. Nós gostamos de si. Nós gostamos de si.  

       (Preparam-se para a abraçar mas são surpreendidas pela criada que entra)

Criada: Senhora. Aquele homem...o senhor Apolinário. Eu tentei. Fiz força para lá, para cá e nada. Depois pus um espelho...um daquele espelhos pequenos. Só quis ver se estava tudo bem...a porta estava aberta...e como ele não respondeu...ouvi vento...queria fechar a janela...o frio...e depois vi um frasco de comprimidos...coloquei um daqueles espelhos...à frente do nariz...e nada. ( A luz diminui. Escuro)

Nelson Boggio nasceu em Proença-a-Nova, no distrito de Castelo Branco. Aos 16 anos ingressa na escola profissional ACE no Porto onde teve as sua primeiras experiências teatrais com  o encenador Rogério de Carvalho, com os actores e professores João Paulo Costa e António Capelo, entre outros. Enquanto aluno da escola participou como figurante na peça de teatro O Coriolano, de Shakespeare, dirigida por Jorge Silva Melo. Entrou em peças encenadas pela escola. Desde Gil Vicente com direcção de António Capelo, a peças como Os sete pecados mortais dos pequenos burgueses, de Brecht com Kuniaki Ida com o qual desenvolve também a máscara neutra. Tem também ateliers à volta do Clown com Alan Richardson.  Aos dezanove anos entra para a Escola Superior de Teatro e Cinema, onde volta a reencontrar o professor e encenador Rogério de Carvalho, e onde começa pela primeira vez a trabalhar em cena os textos clássicos gregos. Tem também como professores o encenador José Peixoto, o Professor Luca Aprea em corpo, o professor Francisco Salgado, Álvaro Correia, João Mota, Carlos J. Pessoa, com o qual trabalhou três peças de teatro na sua companhia O teatro da garagem.  Participou na peça Os Anjos de Teolinda Gersão a convite do professor e encenador João Brites, em Palmela. Participou como actor na peça “Les Bonnes/ As Criadas” de Jean Genet com encenação de Paulo Alexandre Lage, em Julho de 2005 na Casa Conveniente em Lisboa.