(Sala de estar da
hospedaria. Senhor Apolinário com um fato de domingo.)
Apolinário: Que era
maravilhosa. Minha querida Carmo, faça lá outra vez aquela graça...já
não se lembra. Era assim: A menina levantava-se da cadeira e cruzava as
pernas. Parecia uma bailarina. Dançava à volta da mesa e depois fazia
birra. Este sol caramba. Eu lembro-me de estar rodeado de crianças. A
menina e a sua irmã. Debaixo do lustre. Quando o reflexo dos cristais
tinha outro brilho.
Carmo:
É melhor não.
Apolinário: E porquê?
Carmo:
Sinto uma leveza que não é
muito comum quando me levanto. Era capaz de levantar voo. É melhor não.
Apolinário: Levante voo
minha pomba.
Carmo:
É de uma liberdade
constrangedora tudo isto...a vida.
Apolinário: A vida, diz bem.
A vida. Às vezes quando o silêncio não é senão o prenúncio de um enorme
desespero, parece ouvir-se a terra a babar-se. E depois, como um raio de
trezentas mil jardas, o coaxar de rãs melindra tudo isso. Caio em mim.
Parece que esses animais estouram com um aparato quase tão bárbaro como
um arroto. São criaturas grotescas. Mas pior é o homem. Acho exagerada a
sua presença. Quando estou na presença da máquina humana, que cumpre uma
vontade superior à sua, então são trabalhadores que vejo. Mas se por
motivos tão diversos é uma alma que se perde no trajecto que essa mesma
vontade traçou, então é um desperdício de existência o que se me
apresenta. Esse homem tem de regredir à dimensão de uma alface. Ou
desaparecer.
Carmo:
Então e o senhor
Apolinário?
Apolinário: Evitar
aborrecimentos...o tédio, enfim. É na ordem...sim, na ordem...que se
prefigura como direi...o caos...e no caos dessa ordem uma espécie de
valorização de um outro caos.
Carmo:
( Afagando-lhe a cabeça)
Lembro-me de si, sim. Um professor com todo o aparato. A sua mulher
ainda estava consigo antes do acidente.
Apolinário: Ocidente?
Viraria os meus olhos para oriente se me dessem a espiolhar a alma
humana. A alma é um abismo.
Carmo:
Depois despediu-se para
nunca mais. De vez em quando ainda fica lúcido...capaz de falar... das
coisas...mas depois é sugado para o abismo e recorre a disparates...um
acidente desses. Mas faz-lhe bem estar aqui...sair seria a sua perdição.
Encontrou aqui a sua salvação.
Apolinário: Sem a ciência o
homem...o homem não é nada. É um pedaço de madeira...um poltrão.
Carmo:
Os seus filhos visitam-no
com menos frequência. É natural. Nada que enganar. Nada que recear.
Apolinário: Minha querida
amiga! O que me apetecia agora era ir dormir. Dormir e não acordar mais.
Só quando o homem estivesse rodeado por uma beleza invulgar, aí sim,
valeria a pena. Quando a graça tomasse a forma de um homem e o
libertasse para a comunhão. Aí sim.
Carmo:
A mãe onde está? (
Aparece Vera) Vera, onde está a mãe?
Vera:
A sacudir os cobertores com
a criada. Temos de falar com ela. Não aguento mais. Não consigo. Tentei
esquecer...tentei...
Apolinário: A sacudir os
cobertores com a criada no terraço. Eu vou descansar um pouco.
Carmo:
Faça favor de a chamar...por
favor.
Apolinário: Imediatamente.
( Sai ).
Vera:
Nada há a dizer sobre isto.
Se ela continua eu vou-me embora desta casa.
Carmo:
Vera, lembras-te de uma dor
horrível que sentias quando o calor era muito e que sangravas mesmo a
dormir? Lembras-te?
Vera:
Sim.
Carmo:
E sabes que ficava contigo
até de madrugada, a limpar-te a testa com panos húmidos?
Vera:
Estás a desculpá-la.
Carmo:
Estou a dizer-te que a vida
talvez seja demasiado insignificante.
Vera:
E o pai? Eu não consinto que
o engane mais...vou embora.
Carmo:
Não vás. Não.
Vera:
Não acredito que ignores uma
coisa destas.
Carmo:
Não ignoro, não. Ele
consentia.
(Entra a Senhora Henriqueta)
Vera:
Não acredito. Não acredito. Ele ignora-a e é tudo. Como é que alguém
consente uma coisa destas? Não podes falar por ele. Não podes.
Carmo:
Vera, de nada vale
respondermos por eles. De nada vale. Não devemos sofrer por eles.
Deixemos tudo como está.
Vera:
E resolveste isso assim? Do
dia para a noite?
Carmo:
Tal como eles resolveram a
vida deles.
Vera:
Não posso crer.
Henriqueta: Filhas!
Carmo:
Mãe!
Vera:
Mãe!
Henriqueta: Que noite!
Abafada! Sim, é fantástico! Há muito tempo que esperava uma noite assim.
Só frio! Só frio também cansa. É magnífico ver noites como esta. Podemos
estar absorvidos...sem preocupações...sem ter coisas que nos
perturbem...coisas que...Que noite. Não é só aqui. É em todo o
lado...nós não escolhemos...e é verdadeiramente cruel se
nós...enfim...cabe a todos pensar que se se destrói uma parte do que se
é jamais se reconstruirá de novo essa necessidade...essa necessidade que
compete a cada um...mas há que nos despreze...há quem consiga fazer com
que passemos uma vida inteira despercebidos...e nós aguentamos...nós
mantemo-nos intactos...porque precisamos verdadeiramente. E então é
sobre isso que é preciso pensarmos para estar como muito bem nos
apetece...porque se não cuidamos de nós...se ao mais pequeno
descuido...porque há coisas nocivas. É preciso ter em conta a verdade
porque mais tarde é sobre ela que nos vamos debruçar. Já muitos tentaram
resolver estas questões mas é como uma faca que se crava no peito de
cada vez que...E depois todas as outras coisas...Estou a induzir-vos em
erro...não pensem que me refiro...não, nada disso. Desculpem se por
qualquer motivo...e só nós aqui desta maneira...há quem não enterre os
mortos. Há quem habite em casas mais frias do que esta. Num dia não tão
conturbado...um dia...iríamos...sabe-se lá...
Carmo:
Pare com isso. Nós gostamos
de si. Nós gostamos de si.
(Preparam-se para a abraçar mas são surpreendidas pela criada que
entra)
Criada: Senhora. Aquele
homem...o senhor Apolinário. Eu tentei. Fiz força para lá, para cá e
nada. Depois pus um espelho...um daquele espelhos pequenos. Só quis ver
se estava tudo bem...a porta estava aberta...e como ele não
respondeu...ouvi vento...queria fechar a janela...o frio...e depois vi
um frasco de comprimidos...coloquei um daqueles espelhos...à frente do
nariz...e nada. ( A luz diminui. Escuro) |