(Apolinário, o
Velho, Senhora Henriqueta com Vera ao fundo. A Criada e o Espanhol. Sala
de estar da hospedaria).
Apolinário: (Referindo-se ao Espanhol).
Ao barão da indústria. O que é que
achais da ciência, senhores? Uma linda criança. Pode ser qualquer uma
dessas mulheres. A sua filha, por exemplo, acho-a muito científica. O
prodígio dos prodígios seria aliar ao erotismo feminino o servilismo da
máquina. Poupava-se muito em termos oratórios. E a saliva é preciosa
quando se tem a boca seca...o desprezível orgulho do sedutor por água
abaixo, decepado como um dente de alho. Vejam bem que uma máquina pode
converter a estupidez humana em qualquer coisa de iluminado.
Velho:
Vejam bem que ontem ainda
não me tinha levantado e já o mocho assobiava entre os ramos da
laranjeira. Depois sacudiu as asas e desapareceu. Levava lume nos olhos.
Depois foi à vez que do lado de lá do redil começaram os cavalos. Isto
está tudo muito inquieto. Tive de me levantar. Eu vi tudo. Ali um fogo
fátuo. Escuro como bréu e saí para um grito. Só que estava tão bêbado
que a única coisa que pude fazer foi cair. Não tornei a ver os outros.
Os da capela rodopiaram a ver os estalos que os da fonte produziam. Os
mineiros à vez; saíram para tomar um copo. Na festa, presidia o diabo em
pessoa. Cada qual com a sua mulher uns e outros. Fui até eles levado
como o boi pelo jugo. As luzes vergadas pelo ar peçonhento cheio do
cheiro a alfafa, e eu a cantarolar a idiotia dos desta terra. Ali um fio
de oiro. Ali uma espécie de anjo que se levantava de asas amarfanhadas.
Disparou um raio ao longo da rua quando o vi desdobrar-se como um nardo
sobre os abetos. Como é que os outros disseram? Delirium tremens. Que
gozem. Riam! Toca-nos a todos.
Henriqueta: Ele já sabe?
Vera:
Para ali está.
Henriqueta: Há um culpado,
não é?
Vera:
O senhor Ualt é o principal
suspeito. E foram enviadas provas de fraudes para a polícia por não se
sabe quem.
Velho:
Eu que não tinha nada com
aquilo. Que não era para mim. Vá-se embora! Ah! Vá-se daqui seu bêbedo.
Bêbedo?, disse eu. Bêbedo? Ouça aqui seu vidreiro de meia tigela. Ouça
aqui. Eu também tenho o direito de festejar. Eu também, embora pareça
não precisar. Eu também. Irra, está frio. Não queria estar na vossa
pele. Com sua licença. O senhor não me conhece. O senhor saia da minha
frente. Tenho os pés quentes. Tenho estes pés apertados. Tenho estas
mãos...agarro-vos pelo colarinho e atiro-vos como uma funda. Saiam da
minha frente.
Henriqueta: Está para ali a
falar.
Vera:
Esta noite fui dar com ele a
falar sozinho. Tinha uma expressão terrível. E agora parece que já diz
coisa com coisa.
( O Espanhol aproxima-se).
Espanhol: A senhora disse:
senhor Ualt?
Vera:
( demonstrando indiferença)
O senhor Ualt foi preso.
Espanhol: Preso?
Vera:
Acusado de homicídio.
Magnífico, não concorda?
Henriqueta: ( Para a Criada)
Onde é que estão os panos da sala? Esta
rapariga põe-me doida.
Espanhol: Acusado de
homicídio...Já me tinham dito de facto mas nunca pensei e de facto é
verdade...seus brincalhões. Eles disseram-me lá na cidade. É um sítio um
pouco agreste, contando apenas com uma única hospedaria, uma aldeiazinha
com uma capela encantadora. Vai ficar bem instalado, não contando é
claro, com as correntes de ar frio que de vez em quando descem pelas
janelas que não fecham muito bem devido à madeira inchada...por causa da
forte pressão das chuvas...ninharias. Isso até um homem comum...um homem
que não será um santo...isso até um homem comum aguenta. Agora, quando
brincam assim com um homem a respeito de uma questão grave como essa...
Vera:
Encheram-lhe essa cabeça de
preconceitos. Nós somos pessoas sérias. Nenhum de nós tem o seu
estatuto, mas não admito isso.
Espanhol: Mas fiquei de me
encontrar com ele. Essa é sobretudo a principal razão por que estou
aqui...não me leve a mal...Tenho de tratar disto o mais cedo possível. É
preciso que daqui a seis meses tenhamos já avançado com as estruturas de
demolição para em seguida se limparem os destroços e avançar com as
escavações. Mas dizem vocês que matou alguém...não sei...
Vera:
O meu irmão.
Espanhol: O seu irmão?
Vera:
Aqui estamos nós. Agora é
que vão ver, disse eu. Agora é que eu vou mostrar como é que se alegra
uma noite destas. Um copo desse mel. E uma pitada dessa maravilha. O
senhor, sim! Não me vire as costas. Está de costas mas eu sei muito bem
que me ouve. Portanto pense rápido antes de atender outro. Hoje não há
facilidades para ninguém. Podem uivar à lua se quiserem. Podem bater
palmas ao par que acabou de dançar e espicaçar o orgulho. Podem dar
graças ao menino que o denunciou. Esse anjo que arrastou o corpo para
fora da tumba, à custa de um simples medalhão. Três vivas ao anjo Viva,
viva, viva. Estamos a salvo se o progresso vier? Sim. Teremos arte para
todos? Sim. Ainda haverá uma festa no céu.
Apolinário: Não sei se
brinde a isso.
Espanhol: E sabe que não é
nada fácil estarmos num sítio onde nos olham de lado.
Henriqueta: ( Afastando Vera que sai e lançando um olhar de reprovação).
A minha filha, não é? Não se
preocupe mais com isso. Não foi por mal. Uma brincadeira.
Espanhol: O seu filho? Não
sei que lhe diga. Se o senhor Ualt fez o que fez...E estou em crer que
tenha feito muito mais... como é que se costuma dizer? A pontinha do
icebergue. Sim, isto deve ser só a ponta. Eu nem acredito. Tudo pelo
dinheiro veja-se...Veja eu...veja eu...nós todos. Soube das greves sim,
mas por essa causa não se mata ninguém. É tudo muito estranho o que se
esconde no coração de um homem.
Henriqueta: Esta luz está
muito fraca. Não consigo ver nada. Vou ter de colocar umas lâmpadas
novas. Tenho igualmente de encerar o chão. Parece sujo. Esta mesa vai
ser deslocada. Tenho de começar a pensar num armário de pinho. Ou então
mate. E as paredes vão ser pintadas. Tenho a impressão de estar num
buraco. Com uma cor luminosa isto é logo outra coisa. ( Para o
Espanhol que se prepara para sair) Não se vá embora. Aproveito para
dizer que há um homem que lhe quer falar. ( Faz sinal a Fredi que até
agora permaneceu ao fundo, imóvel) Apresento-lhe o senhor Fredi.
Senhor Fredi, o senhor Carlos.
Espanhol: Prazer.
Fredi:
Estava ansioso por
conhecê-lo. Um investidor com o seu peso...admirável...está tudo nas
suas mãos.
Espanhol: Nada melhor do que
um elogio para nos fazer perceber que estamos muito aquém de qualquer
coisa que tenha a ver com uma imagem projectada pela perfeição.
Fredi:
É a minha deixa para o
tentar convencer a continuar o negócio.
Espanhol: E que negócio é
esse?
Fredi:
O vidro. Tenho procurado uma
forma de o convencer...e acho que o melhor é demonstrá-lo.
Espanhol: Lamento
desapontá-lo. Não posso dar lugar a uma arte que já não tem a atenção
devida. Não é lucrativo e esta gente toda sem comer...há que comer.
Apolinário: Conspiração.
Conspiração debaixo dos nossos narizes.
Fredi:
Não custará nada ouvir o que
tenho para lhe dizer. Vamos para um lugar mais reservado. Aqui há muito
fumo...muita algazarra. Há um homem que o senhor deve conhecer para se
convencer de que irá tomar a decisão certa. Um homem único. Um
verdadeiro génio do vidro, não sei se me entende. Verá como nada tem a
perder. Vai fazer História. Não vai negar esse facto.
Espanhol: Falamos melhor na
sala pequena. Depois de si. ( Saem). |