NELSON BOGGIO

Fábrica do Vidro

ÍNDICE GERAL

Segundo acto                          

Cena IX

(Apolinário, o Velho, Senhora Henriqueta com Vera ao fundo. A Criada e o Espanhol. Sala de estar da hospedaria).

Apolinário: (Referindo-se ao Espanhol). Ao barão da indústria. O que é que achais da ciência, senhores? Uma linda criança. Pode ser qualquer uma dessas mulheres. A sua filha, por exemplo, acho-a muito científica. O prodígio dos prodígios seria aliar ao erotismo feminino o servilismo da máquina. Poupava-se muito em termos oratórios. E a saliva é preciosa quando se tem a boca seca...o desprezível orgulho do sedutor por água abaixo, decepado como um dente de alho. Vejam bem que uma máquina pode converter a estupidez humana em qualquer coisa de iluminado.  

Velho: Vejam bem que ontem ainda não me tinha levantado e já o mocho assobiava entre os ramos da laranjeira. Depois sacudiu as asas e desapareceu. Levava lume nos olhos. Depois foi à vez que do lado de lá do redil começaram os cavalos. Isto está tudo muito inquieto. Tive de me levantar. Eu vi tudo. Ali um fogo fátuo. Escuro como bréu e saí para um grito. Só que estava tão bêbado que a única coisa que pude fazer foi cair. Não tornei a ver os outros. Os da capela rodopiaram a ver os estalos que os da fonte produziam. Os mineiros à vez; saíram para tomar um copo. Na festa, presidia o diabo em pessoa. Cada qual com a sua mulher uns e outros. Fui até eles levado como o boi pelo jugo. As luzes vergadas pelo ar peçonhento cheio do cheiro a alfafa, e eu a cantarolar a idiotia dos desta terra. Ali um fio de oiro. Ali uma espécie de anjo que se levantava de asas amarfanhadas. Disparou um raio ao longo da rua quando o vi desdobrar-se como um nardo sobre os abetos. Como é que os outros disseram? Delirium tremens. Que gozem. Riam! Toca-nos a todos.  

Henriqueta: Ele já sabe?  

Vera: Para ali está.  

Henriqueta: Há um culpado, não é?  

Vera: O senhor Ualt é o principal suspeito. E foram enviadas provas de fraudes para a polícia por não se sabe quem.  

Velho: Eu que não tinha nada com aquilo. Que não era para mim. Vá-se embora! Ah! Vá-se daqui seu bêbedo. Bêbedo?, disse eu. Bêbedo? Ouça aqui seu vidreiro de meia tigela. Ouça aqui. Eu também tenho o direito de festejar. Eu também, embora pareça não precisar. Eu também. Irra, está frio. Não queria estar na vossa pele. Com sua licença. O senhor não me conhece. O senhor saia da minha frente. Tenho os pés quentes. Tenho estes pés apertados. Tenho estas mãos...agarro-vos pelo colarinho e atiro-vos como uma funda. Saiam da minha frente.  

Henriqueta: Está para ali a falar.  

Vera: Esta noite fui dar com ele a falar sozinho. Tinha uma expressão terrível. E agora parece que já diz coisa com coisa.

                                                                                   ( O Espanhol aproxima-se).  

Espanhol: A senhora disse: senhor Ualt?  

Vera: ( demonstrando indiferença) O senhor Ualt foi preso.  

Espanhol: Preso?  

Vera: Acusado de homicídio. Magnífico, não concorda?  

Henriqueta: ( Para a Criada) Onde é que estão os panos da sala? Esta rapariga põe-me doida.  

Espanhol: Acusado de homicídio...Já me tinham dito de facto mas nunca pensei e de facto é verdade...seus brincalhões. Eles disseram-me lá na cidade. É um sítio um pouco agreste, contando apenas com uma única hospedaria, uma aldeiazinha com uma capela encantadora. Vai ficar bem instalado, não contando é claro, com as correntes de ar frio que de vez em quando descem pelas janelas que não fecham muito bem devido à madeira inchada...por causa da forte pressão das chuvas...ninharias. Isso até um homem comum...um homem que não será um santo...isso até um homem comum aguenta. Agora, quando brincam assim com um homem a respeito de uma questão grave como essa... 

Vera: Encheram-lhe essa cabeça de preconceitos. Nós somos pessoas sérias. Nenhum de nós tem o seu estatuto, mas não admito isso.  

Espanhol: Mas fiquei de me encontrar com ele. Essa é sobretudo a principal razão por que estou aqui...não me leve a mal...Tenho de tratar disto o mais cedo possível. É preciso que daqui a seis meses tenhamos já avançado com as estruturas de demolição para em seguida se limparem os destroços e avançar com as escavações. Mas dizem vocês que matou alguém...não sei... 

Vera: O meu irmão.  

Espanhol: O seu irmão?  

Vera: Aqui estamos nós. Agora é que vão ver, disse eu. Agora é que eu vou mostrar como é que se alegra uma noite destas. Um copo desse mel. E uma pitada dessa maravilha. O senhor, sim! Não me vire as costas. Está de costas mas eu sei muito bem que me ouve. Portanto pense rápido antes de atender outro. Hoje não há facilidades para ninguém. Podem uivar à lua se quiserem. Podem bater palmas ao par que acabou de dançar e espicaçar o orgulho. Podem dar graças ao menino que o denunciou. Esse anjo que arrastou o corpo para fora da tumba, à custa de um simples medalhão. Três vivas ao anjo Viva, viva, viva. Estamos a salvo se o progresso vier? Sim. Teremos arte para todos? Sim. Ainda haverá uma festa no céu.  

Apolinário: Não sei se brinde a isso.  

Espanhol: E sabe que não é nada fácil estarmos num sítio onde nos olham de lado.  

Henriqueta: ( Afastando Vera que sai e lançando um olhar de reprovação). A minha filha, não é? Não se preocupe mais com isso. Não foi por mal. Uma brincadeira.  

Espanhol: O seu filho? Não sei que lhe diga. Se o senhor Ualt fez o que fez...E estou em crer que tenha feito muito mais... como é que se costuma dizer? A pontinha do icebergue. Sim, isto deve ser só a ponta. Eu nem acredito. Tudo pelo dinheiro veja-se...Veja eu...veja eu...nós todos. Soube das greves sim, mas por essa causa não se mata ninguém. É tudo muito estranho o que se esconde no coração de um homem.  

Henriqueta: Esta luz está muito fraca. Não consigo ver nada. Vou ter de colocar umas lâmpadas novas. Tenho igualmente de encerar o chão. Parece sujo. Esta mesa vai ser deslocada. Tenho de começar a pensar num armário de pinho. Ou então mate. E as paredes vão ser pintadas. Tenho a impressão de estar num buraco. Com uma cor luminosa isto é logo outra coisa. ( Para o Espanhol que se prepara para sair) Não se vá embora. Aproveito para dizer que há um homem que lhe quer falar. ( Faz sinal a Fredi que até agora permaneceu ao fundo, imóvel) Apresento-lhe o senhor Fredi. Senhor Fredi, o senhor Carlos. 

Espanhol: Prazer.  

Fredi: Estava ansioso por conhecê-lo. Um investidor com o seu peso...admirável...está tudo nas suas mãos.  

Espanhol: Nada melhor do que um elogio para nos fazer perceber que estamos muito aquém de qualquer coisa que tenha a ver com uma imagem projectada pela perfeição.  

Fredi: É a minha deixa para o tentar convencer a continuar o negócio.  

Espanhol: E que negócio é esse?  

Fredi: O vidro. Tenho procurado uma forma de o convencer...e acho que o melhor é demonstrá-lo.

Espanhol: Lamento desapontá-lo. Não posso dar lugar a uma arte que já não tem a atenção devida. Não é lucrativo e esta gente toda sem comer...há que comer.  

Apolinário: Conspiração. Conspiração debaixo dos nossos narizes.  

Fredi: Não custará nada ouvir o que tenho para lhe dizer. Vamos para um lugar mais reservado. Aqui há muito fumo...muita algazarra. Há um homem que o senhor deve conhecer para se convencer de que irá tomar a decisão certa. Um homem único. Um verdadeiro génio do vidro, não sei se me entende. Verá como nada tem a perder. Vai fazer História. Não vai negar esse facto.  

Espanhol: Falamos melhor na sala pequena. Depois de si. ( Saem).   

Nelson Boggio nasceu em Proença-a-Nova, no distrito de Castelo Branco. Aos 16 anos ingressa na escola profissional ACE no Porto onde teve as sua primeiras experiências teatrais com  o encenador Rogério de Carvalho, com os actores e professores João Paulo Costa e António Capelo, entre outros. Enquanto aluno da escola participou como figurante na peça de teatro O Coriolano, de Shakespeare, dirigida por Jorge Silva Melo. Entrou em peças encenadas pela escola. Desde Gil Vicente com direcção de António Capelo, a peças como Os sete pecados mortais dos pequenos burgueses, de Brecht com Kuniaki Ida com o qual desenvolve também a máscara neutra. Tem também ateliers à volta do Clown com Alan Richardson.  Aos dezanove anos entra para a Escola Superior de Teatro e Cinema, onde volta a reencontrar o professor e encenador Rogério de Carvalho, e onde começa pela primeira vez a trabalhar em cena os textos clássicos gregos. Tem também como professores o encenador José Peixoto, o Professor Luca Aprea em corpo, o professor Francisco Salgado, Álvaro Correia, João Mota, Carlos J. Pessoa, com o qual trabalhou três peças de teatro na sua companhia O teatro da garagem.  Participou na peça Os Anjos de Teolinda Gersão a convite do professor e encenador João Brites, em Palmela. Participou como actor na peça “Les Bonnes/ As Criadas” de Jean Genet com encenação de Paulo Alexandre Lage, em Julho de 2005 na Casa Conveniente em Lisboa.