NELSON BOGGIO

Fábrica do Vidro

ÍNDICE GERAL

Segundo acto                          

Cena VIII

(No terraço. O personagem Homem entrou primeiro e está encostado no muro do terraço. Pausa grande para dar tempo ao espectador de se aperceber que é um novo dia. Muito depois entra Carmo. Carmo senta-se e tira fotos de dentro de uma bolsa. Uma delas tem o seu irmão. Tenta perceber as semelhanças dele com o Homem que está de costas. Há uma mesa daquelas que se usam nas esplanadas à sua frente e outras várias à sua volta. Há sol. Há copos em cima das mesas como se alguém tivesse estado ali antes deles).  

Carmo: As coisas que não dirá, só para si, em segredo. Porque é tão calado? Ninguém nos ouve aqui. ( Ele volta-se) Eduardo, és tu? ( Ele aproxima-se) Desculpe, lembrou-me uma pessoa. É de facto muito parecido...os ombros...o andar...até o nariz...Soube que chegou há pouco tempo. Que fala muito pouco. Que apanha folhas nos jardins e que as desenha. É pintor? Dava-me jeito um pintor. Para fazer um retrato do meu irmão. O meu irmão...Envolvido em confrontos...ele...um pirralho. Que temperamento o dele. Chegou a conhecer o meu irmão? ( Ele abana a cabeça). A minha irmã quem diria? Tornou-se uma heroína. Ele não tinha nada a perder. Só as relações com esta gente. Mas isso...de amizades está o inferno cheio. Esta terra é um cemitério. E o cemitério é um local muito difícil. Em pequena sonhava com exércitos de mortos que se erguiam das campas para nos assustar. De amizade está o inferno cheio. Até ao portão e nada mais. Nem mais um passo assim que ponha os olhos nos ciprestes. O cemitério é um local muito difícil. Apesar da arrumação. As campânulas resplandecem como ouro. Ele não tinha nada a perder. Não precisava daquilo, sabe? Podia bem trabalhar noutro sítio. Onde não houvesse tantas confusões e não sei mais o quê. Mas agora deve estar a fabricar fornos para aquecer o inferno...um açucareiro lapidado com camafeu, pratos decorativos, galhetas unidas de rosca torcida. Ele lá sabe. Não tarda estou a chorar. Diga alguma coisa. Se bem que a sua companhia me conforte. É melhor que nada. Mas diga qualquer coisa. Qualquer coisa. Pode segredar ao meu ouvido se quiser. ( Ele avança inesperadamente após longa pausa. Segreda-lhe qualquer coisa ao ouvido. Está nisto algum tempo) Sim, olhe a noite como cai. O céu parece lume de uma fornalha. Estava a dizer...( Volta a segredar-lhe) O senhor quer pôr-me num estado ainda mais lamentável. Ninguém fala assim. Quero dizer, é horrível quando nos fazem isso. Falo a sério. Quer dizer, nunca me fizeram tal. Mas também é mau ser-se excessivamente protegido. Mais vale não ter nada. Perdemos carácter. Eu sou horrível. Não confio em ninguém. Mas continue. É da maneira que me habituo a esta angústia. ( Ele puxa-a para si. Ela quer resistir fisicamente mas não consegue. Está sentada sem se conseguir mexer). Estou a ficar tonta. Não me consigo mexer. Estou a ficar tonta! E as lágrimas porque correm assim? Pare, suplico-lhe. Esse som! São árvores! Grutas...sal...crianças...A cabeça a andar à roda...Mãe, o pecado, fogo nas escadas, a despensa! O padre. Abissais e abismos...são algas! Eu gosto de ti mãe. Eu gosto de ti. Os teus cabelos...( Adormece recostando-se. Ele ajuda-a. Depois calmamente tira de uma pequena mala que traz consigo um tubo de vidro e encosta-o na face por debaixo do olho esquerdo dela. Faz o mesmo na face direita. Depois estala os dedos duas vezes e afasta-se. Ela vai acordando lentamente. Quando acorda, ele já não está).  

Nelson Boggio nasceu em Proença-a-Nova, no distrito de Castelo Branco. Aos 16 anos ingressa na escola profissional ACE no Porto onde teve as sua primeiras experiências teatrais com  o encenador Rogério de Carvalho, com os actores e professores João Paulo Costa e António Capelo, entre outros. Enquanto aluno da escola participou como figurante na peça de teatro O Coriolano, de Shakespeare, dirigida por Jorge Silva Melo. Entrou em peças encenadas pela escola. Desde Gil Vicente com direcção de António Capelo, a peças como Os sete pecados mortais dos pequenos burgueses, de Brecht com Kuniaki Ida com o qual desenvolve também a máscara neutra. Tem também ateliers à volta do Clown com Alan Richardson.  Aos dezanove anos entra para a Escola Superior de Teatro e Cinema, onde volta a reencontrar o professor e encenador Rogério de Carvalho, e onde começa pela primeira vez a trabalhar em cena os textos clássicos gregos. Tem também como professores o encenador José Peixoto, o Professor Luca Aprea em corpo, o professor Francisco Salgado, Álvaro Correia, João Mota, Carlos J. Pessoa, com o qual trabalhou três peças de teatro na sua companhia O teatro da garagem.  Participou na peça Os Anjos de Teolinda Gersão a convite do professor e encenador João Brites, em Palmela. Participou como actor na peça “Les Bonnes/ As Criadas” de Jean Genet com encenação de Paulo Alexandre Lage, em Julho de 2005 na Casa Conveniente em Lisboa.