Vera:
Carmo, chegaste. És mesmo
tu?
Carmo:
Sou eu.
Vera:
Tu!
Carmo:
Sim. E tu ainda és...tu?
Vera:
Sim.
Carmo:
Estás tão diferente.
Vera:
Mais magra.
Carmo:
E os ombros direitos como os
de um capitão. Sim, eram mais frágeis.
Vera:
À força de os esborrachares
para galgares os muros. Lembras-te?
Carmo:
Sim. E o rádio? O rádio, é
verdade. Ainda está na despensa?
Vera:
na que tem as tralhas sim.
Cinco anos.
Carmo:
Cinco anos. O que é que
aconteceu? Estou tão...tão leve. Como tudo encolhe de repente. O que é
que se passou na vinha? Deus meu! Até parece que o demónio tomou conta
de tudo.
Vera:
Os grevistas.
Carmo:
Sim, tu disseste. Mas desde
quando?
Vera:
Desde que ele quis. O
Eduardo.
Carmo:
Mas não me foste ver.
Vera:
Foi melhor assim.
Carmo:
Estás com um ar radiante,
apesar de tudo. E o velho onde está?
Vera:
O pai foi encontrado num dos
barracões a dormir. Encharcado em álcool.
Carmo:
Nada mudou. E o senhor
Apolinário?
Vera:
Um louco extravagante. Está
cada vez pior. Meteu na cabeça que é um cientista.
Carmo:
Não percebo porque o não
leva ela.
Vera:
Ela habitua-se às pessoas do
mesmo modo que dá valor às mobílias.
Carmo:
Já sei.
Vera:
Está aí um homem.
Carmo:
Um homem?
Vera:
Parecido com ele. Com o
Eduardo. Juro. A primeira vez que o vi estava de costas voltadas. É um
mistério. Um verdadeiro mistério. É motivo de conversa em tudo o que é
praças.
Carmo:
E porquê?
Vera:
É muito parecido com ele.
Mas não é por isso. Ainda não abriu a boca. Ninguém sabe nada dele.
Parece que nos olha de uma forma...não me atrevo a olhar para ele. Um
dia destes deixei cair um copo que se estilhaçou, e dei por ele a olhar
como se visse qualquer coisa de extraordinário. Depois saiu.
Carmo:
É só mais um homem.
Vera:
E tu como estás?
Carmo:
Mais ou menos. Nem muito bem
nem muito mal. Que horror. Não sei mesmo mentir.
Vera:
Se não te conhecesse...
Carmo:
Mais uma morte na minha
vida. O meu marido. A falta de apetite, as tonturas...a falta de ar...e
agora o Eduardo... se pusesse um fim à vida.
Vera:
Não fales assim.
Carmo:
E o pai? Ele não sabe, pois
não? Ele não sabe. Por favor. Não lhe digam. Se souber...com o
temperamento dele. Porque somos tão fracos todos? As pessoas. É terrível
isso. Terrivel.
Vera:
Não digo, está descansada.
Carmo:
E se souber desmente tudo. Diz que o Eduardo partiu, que se foi embora.
Vera:
Sim.
Carmo:
E a mãe onde está?
Vera:
É a hora da limpeza.
Carmo:
Às onze ainda manda todos
para a sala grande?
Vera:
Sim, e lá fica a arrumar.
Carmo:
A arrumar pois...
Vera:
Que queres dizer?
Carmo:
Eu não disse nada.
Vera:
Disseste sim.
Carmo:
Esquece. É demais para uma
noite só.
Vera:
Suspeitas o mesmo que eu?
Carmo:
E que suspeitas tu? Tão
nova. Não, vamos ficar caladas.
Vera:
Diz-me o que pensas. Senão
faço-o eu.
Carmo:
Lembras-te do senhor
Edmundo.
Vera:
O padre, sim.
Carmo:
Em momentos como este em que
nos mandava para a sala, ele era o único que nunca estava. E lembras-te
como ficava irritada se por qualquer motivo andássemos por aqui e por
ali nos corredores? Um dia fui dar com ela na despensa grande. Não.
Vamos deixar para outro dia.
Vera:
Como queiras.
Carmo:
Tinha um seio descoberto.
Ela. Segui-a até à despensa. De repente senti um calafrio na espinha.
Estava petrificada, não percebia nada. A chave estava na porta, mas
ainda assim conseguia ver...e ouvir...uma voz de homem. Devo ter
adivinhado pois assim que se preparava para dar uma volta à chave,
entrei e surpreendi o velho completamente nu. Não se mexeu. Para ali
ficou com a barba a dar-lhe pela barriga. Ela pediu-me imediatamente
desculpa, afirmando ser culpa do pai. Fui-me embora desde esse dia.
Vera:
Então, não foi por causa do
emprego que foste para a cidade.
Carmo:
Tornou-se insuportável para
as duas olharmos para a cara uma da outra. E desde então jurei que só
uma desgraça me faria voltar aqui.
Vera:
Temos de falar.
Carmo:
Vamos com calma.
Vera:
Temos de falar já.
Carmo:
Calma.
Vera:
Porque é que não me
disseste?
Carmo:
Não queria perturbar-te. E
depois pensei que assim que ele fosse embora, ela parasse...
Vera:
Temos de falar com ela.
Carmo:
Esperamos pelo momento mais
oportuno.
Vera:
Que é...
Carmo:
Amanhã. Não sei. Amanhã.
Vera:
Um Moldavo...suicidou-se.
Carmo:
Não sei se me cruze com ela.
Vera:
Ouviste o que eu disse?
Carmo:
Sim, são uns inadaptados.
Vera:
Foi por causa do tédio. Sem
a fábrica nada se faz que constitua novidade para a nossa vida.
Carmo:
Eu vou subir.
Vera:
Não queres saber?
Carmo:
Amanhã falamos. ( Pega
nas malas).
Vera:
Eu ajudo-te.
Carmo:
Fico à tua espera de manhã
no terraço.
Vera:
Não me atrevo. É lá que ele
está.
Carmo:
O sósia do Eduardo? |