NELSON BOGGIO

Fábrica do Vidro

ÍNDICE GERAL

Segundo acto                          

Cena IV

(Na sala da Hospedaria. Apolinário com um livro na mão, fala com o personagem Homem que está absorto, misteriosamente colocado no sofá).

Apolinário: Não há mais nada para além da ciência, mas ainda pairam no ar as impressões do espírito. A máquina com os seus rotores e fusos hidráulicos traz ao lugar o burburinho científico. Mas ainda é preciso bom senso para nos apercebermos que o lado espiritual concorre com o frenesim das correias.  Eu que admiro tanto os cristais. Eu que adoro tanto as cintilações da água debaixo dos céus de estalactite! Espelhos, meu caro, como não há outros. Toda a magnificência dos espelhos sob as águas. Que fonte de inspiração, a mina! Era conseguir o mesmo requinte, e tínhamos arte que desse para alimentarmos esta gente toda. Não haveria turista que não parasse para apreciar um belo par de galhetas laminadas! Vidro, meu caro, como outro não haveria. Mais pureza só mesmo a que se arrancaria ao choro de uma criança. É o que se pretende em suma. Está abafado aqui...( O outro mexe-se) Demos graças ao senhor por se ter mexido. Ainda pensei desistir antes da meia noite, mas disse cá para comigo: Isto é uma cabeça que requer malícia. Um pouco de rectidão nos discursos, uma cadência sonora apropriada, e lá estamos nós a tagarelar como parvos. Como estúpidos, mesmo. Há homens...homens bons no entanto, que se não estivermos tentados a dar-lhes uma chance...por mais pequena...transformam-se em verdadeiros farrapos...e não queremos isso aqui...porque a comunhão...não estou a maçá-lo pois não? Era só o que faltava...sentir-se aborrecido só porque um homem da ciência...só porque um homem preocupado discorre um pouco sobre a vida...Posso sempre ir embora, estará a pensar! Ir embora...e porquê? Não se está mesmo a ver que o homem está para o homem como o caixão para a vala? Que a propriedade do homem é o seu semelhante? Penso que já tudo foi destinado e é como uma espora que me espicaçasse. Ouve o murmurar das folhas? Já estive parado uma centena de vezes a observar as diferentes formas das folhas, flores...Cheguei à conclusão que nada faz sentido... o devido sentido... quando penso que para lá da fronteira existe uma partícula que se desdobra até ao infinito...ad infinitum. Pare, meu caro, isso é que não! Também tem de falar. Estas latinices têm o efeito de uma espora, sim, mas não devemos intimidar-nos. ( Dando-se ares) Os canhões de aço são os favoritos e as mulheres limpam-nos muitas vezes sobre o ferro. Esse ferro serviu muita da indústria que ameaça agora o nosso vidro! Isto é que é grave! Ficamos embrutecidos, sem criatividade! Sem eixo! E no entanto ainda andam sob a espiral de luz que se vê para lá do bosque. Que digo eu, pergunta? Mulheres...A filha mais velha da senhora Henriqueta...isso é uma mulher...só um gesto e ficamos quietos como cães de porcelana. Carmo. Chama-se Carmo.  

Criada: (Entrando) A senhora chama- o. Os degraus ouvem-se muito de noite.  

Apolinário: Já um homem não pode estar sossegado. Com sua licença, meu notável orador. ( Sai ).

Nelson Boggio nasceu em Proença-a-Nova, no distrito de Castelo Branco. Aos 16 anos ingressa na escola profissional ACE no Porto onde teve as sua primeiras experiências teatrais com  o encenador Rogério de Carvalho, com os actores e professores João Paulo Costa e António Capelo, entre outros. Enquanto aluno da escola participou como figurante na peça de teatro O Coriolano, de Shakespeare, dirigida por Jorge Silva Melo. Entrou em peças encenadas pela escola. Desde Gil Vicente com direcção de António Capelo, a peças como Os sete pecados mortais dos pequenos burgueses, de Brecht com Kuniaki Ida com o qual desenvolve também a máscara neutra. Tem também ateliers à volta do Clown com Alan Richardson.  Aos dezanove anos entra para a Escola Superior de Teatro e Cinema, onde volta a reencontrar o professor e encenador Rogério de Carvalho, e onde começa pela primeira vez a trabalhar em cena os textos clássicos gregos. Tem também como professores o encenador José Peixoto, o Professor Luca Aprea em corpo, o professor Francisco Salgado, Álvaro Correia, João Mota, Carlos J. Pessoa, com o qual trabalhou três peças de teatro na sua companhia O teatro da garagem.  Participou na peça Os Anjos de Teolinda Gersão a convite do professor e encenador João Brites, em Palmela. Participou como actor na peça “Les Bonnes/ As Criadas” de Jean Genet com encenação de Paulo Alexandre Lage, em Julho de 2005 na Casa Conveniente em Lisboa.