NELSON BOGGIO

Fábrica do Vidro

ÍNDICE GERAL

Segundo acto                          

Cena II

(Entram dois camponeses pelas laterais e  estacam assustados com a presença um do outro.)

Primeiro Camponês: É um espantalho? Não consigo ver. 

Segundo camponês:  É um homem?  

Primeiro camponês: ( Para si)  Sinto sempre uma aflição quando passo por aqui.  

Segundo camponês: Vai dar por mim. 

Primeiro: ( Estranhando) É um homem. 

Segundo: (Mesmo jogo) Foi o maior erro que cometi! Ter-me levantado mesmo com a sensação de que algures uma estranha vibração ressoasse.  

Primeiro: Tenho as mãos como as de um cadáver. Estou morto só de estar à espera.  

Segundo: Devia ter dado ouvidos à minha mulher!  

Primeiro camponês: mas também se seguisse pela tapada, ao longo do bosque, o mais certo é que tivesse de encarar um desses sujeitos da greve. Que a vossa arte está ultrapassada, dizia eu, não é mentira nenhuma. Aí dava um par de bofetadas. Que já não se fazem pratos como antigamente, é um facto. Aì dava–me um murro no cachaço e um pontapé. Está a aproximar-se. Vamos, vamos. Havemos de ter uma boa luta ao estilo de uma boa rixa de taberna. Havemos de rolar tanto pelo chão que até a terra se há-de queixar.

Segundo camponês: Ele está a avançar. Vamos... Não mostrar medo (Avança). 

Primeiro: ( Avançando) Vamos! Está a avançar. ( Súbito, a lua que até aqui esteve escondida, lança um raio). Mas então...vejam bem... 

Segundo: É o senhor?  

Primeiro: Sou. Nada de sustos. Como está?  

Segundo: Ontem estava bem até ter conhecimento de uma dor que agora me persegue. Um batimento cardíaco nas têmporas. Mas não sei ao certo. 

Primeiro: Disseram-me que  há uma espécie de homem com cabeça de animal nas amoreiras. 

Segundo: Para ser sincero, já nem sei em que acredite. 

Primeiro: Uns dias antes de iniciar o trabalho fui dar com um som de um animal, uma espécie de ronco. Isto no meio dos poços.  

Segundo: Isso era um desses vagabundos.  

Primeiro: Era uma ovelha.  

Segundo: Mas dizem que há um monstro.   

Primeiro: Sim, já houve quem o visse a sair da mina. 

Segundo: Sim. Por aqui, olhe... 

Primeiro: Sim, isto é assim. Quem é que terá deixado a porta dos animais aberta?  

Segundo: ( Mergulhado nos seus pensamentos) A partir de amanhã vou deixar de vender peixe.  

Primeiro: Mas porquê?  

Segundo: Não é para mim.  

Primeiro: Compreendo. Eu já em tempos estive para contratar alguém... para ir vender... 

Segundo: Ora não faça isso... 

Primeiro: A última vez que o vi, estava o senhor a regatear na vila. 

Segundo: Ontem ainda as mulheres regressavam em campanha da pesca no rio, quando me fui agachar...numa dessas estradas com arame farpado...à espera que a dor no peito passasse...  

Primeiro: O senhor é que fez bem.  

Segundo: Foi para me levantar que o fiz.   

Primeiro: Sabe que isto das greves não é nada bom para nós. E depois há ainda a tal reputação de que lhe falei no outro dia. Mancha a imagem.  

Segundo: E há métodos...há modos de se fazer as coisas... 

Primeiro: Em Itália são muito piores com as greves. Mas eu já estou farto. Não sei nada sobre peixe...e depois são eles que acham que nós estamos contra...Só porque não nos envolvemos. Contestar...contestar...sempre contestar.   

Segundo: Por falar nisso... aquele que esteve em Itália... correm boatos sobre uma nova forma de vidro...  

Primeiro: Não se deve crer numa coisa dessas. Os italianos cheiram um impostor à distância. Nunca o deixariam fugir com a tal fórmula.  

Segundo: Está agora a levantar um vento sudoeste.  

Primeiro: O senhor sabe aquilo que eu lhe digo. 

Segundo: Fazia-nos falta sem dúvida. Vidro novo. Para acabar com esta miséria.  

Primeiro: Vou-me embora. 

Segundo: E eu vou continuar também. Os meus cumprimentos. ( Saem cada um para seu lado).                                                             

Nelson Boggio nasceu em Proença-a-Nova, no distrito de Castelo Branco. Aos 16 anos ingressa na escola profissional ACE no Porto onde teve as sua primeiras experiências teatrais com  o encenador Rogério de Carvalho, com os actores e professores João Paulo Costa e António Capelo, entre outros. Enquanto aluno da escola participou como figurante na peça de teatro O Coriolano, de Shakespeare, dirigida por Jorge Silva Melo. Entrou em peças encenadas pela escola. Desde Gil Vicente com direcção de António Capelo, a peças como Os sete pecados mortais dos pequenos burgueses, de Brecht com Kuniaki Ida com o qual desenvolve também a máscara neutra. Tem também ateliers à volta do Clown com Alan Richardson.  Aos dezanove anos entra para a Escola Superior de Teatro e Cinema, onde volta a reencontrar o professor e encenador Rogério de Carvalho, e onde começa pela primeira vez a trabalhar em cena os textos clássicos gregos. Tem também como professores o encenador José Peixoto, o Professor Luca Aprea em corpo, o professor Francisco Salgado, Álvaro Correia, João Mota, Carlos J. Pessoa, com o qual trabalhou três peças de teatro na sua companhia O teatro da garagem.  Participou na peça Os Anjos de Teolinda Gersão a convite do professor e encenador João Brites, em Palmela. Participou como actor na peça “Les Bonnes/ As Criadas” de Jean Genet com encenação de Paulo Alexandre Lage, em Julho de 2005 na Casa Conveniente em Lisboa.