A
hospedaria da senhora Henriqueta. Três da tarde. Henriqueta dobra panos
que coloca em cima da mesa. Sala de estar. Chega a criada para ouvir as
tarefas. O senhor Apolinário está sentado num dos cantos da sala a ler
uma revista. Está de sobretudo e de chinelos.
Henriqueta: Os quartos dos
hóspedes.
Criada: Sim minha senhora.
Apolinário: Pim pam pum... para a
ciência... pim pam pum... para a insciência.
Henriqueta: Que fizeste ao cabelo?
Apolinário:
A fome indulta, mistura sacões de
fruta.
Criada: Nada minha senhora.
Apolinário:
Reza prolongada quanto baste, para afastar os católicos da ciência.
Católicos da ciência.
Henriqueta: Está aí um homem.
Criada: Um homem minha senhora?
Apolinário: Oh! Oh! Toda a
actividade humana é criação de formas. ( Fazendo músculo)
Curvilineas e fortes! A trote, a galope!
Henriqueta: Parecido com o meu
filho.
Criada: Parecido?
Apolinário:
Aqui está: a pobreza na ordem dos sessenta por cento e a solidão
como causa da queda do cabelo. Ena com os diabos. Hem dona Henriqueta,
quer fazer um braço de ferro com este careca? Criação de formas.
Henriqueta: Tens um fraco por ele?
Criada: Pelo seu filho? Eu, minha
senhora?
Henriqueta: Não é nada do outro
mundo.
Criada: Não minha senhora.
Henriqueta: Que fazias com as botas
dele nas mãos?
Criada: Limpava-lhas.
Henriqueta: Não te compete. Ele tem
mãos. É senhor da porcaria que acumula.
Criada: Sim, minha senhora.
Henriqueta: Vá, basta. Trata de
acompanhar o hóspede ao quarto.
Apolinário:
Todos os ingredientes necessários para a queda no abismo: estudos
recentes em ratos provaram que o homem...a ciência provou mais uma vez
que o homem... Homem? Mas é um rato. (Gritando para a revista)
Não sejas estúpido. Volta para a tua toca... ou para o som do clarinete
dos vendedores de queijo!
Henriqueta: Já chega! O senhor quer
fazer o favor de se retirar?
Apolinário: Eu fico calado.
Criada: ( Voltando) E os
lençóis, minha senhora? As toalhas, e falta também aspirar o quarto.
Henriqueta:
Diz-lhe que a partir das dezanove tudo estará composto. Até lá pode
muito bem ir dar uma volta até à cidade e voltar. Ou se preferir tem um
café do outro lado da rua.
Criada: Talvez fosse boa ideia
levá-lo à cidade. Lá sempre tem o cinema. Aqui é tudo tão entediante.
Henriqueta: Levá-lo?
Criada: Propor-lhe minha senhora.
Henriqueta:
E porque não levá-lo? Não é o que temos por costume fazer mas
decerto o velho não fica aborrecido se a viatura contar com mais uns
quilómetros. Por falar nisso: já está a pé?
Criada: Sim, minha senhora. Esteve
toda a manhã frente ao espelho e agora está na despensa.
Henriqueta: Na despensa? Qual
despensa?
Criada: Passa-se alguma coisa, minha senhora?
Henriqueta:
(Sentando-se) Não, nada. Fraqueza. Nesta idade quando se está muito
tempo de pé...é o cansaço. E depois não sobra nada. Só cansaço. Um
terrível cansaço. Uma agonia... que nos consome como se fôssemos...
palha... uma imensa chama cá dentro.
Criada: Quer um chá?
Henriqueta: Não. Tudo menos chás.
Sabem a janela, a vidro de igreja. (Levantando-se) Está a ouvir?
Criada: O quê minha senhora?
Henriqueta: (Olhando em frente
para cima) Vem lá de cima. Ouves?
Criada: É a chuva a bater no toldo
do pátio.
Henriqueta: São sinos.
Criada: Sinos? Está a delirar minha
senhora.
Henriqueta:
Vem lá de cima. Vês o sineiro como o faz girar? É o filho do Severino. É
o filho dele. Assim à distância julgaria tratar-se de um fantasma.
Daqueles que ainda escolhem os locais de culto para dormirem.
Criada: (Tendo seguido a
senhora) Não está lá ninguém minha senhora. Há anos que não há
missa.
Henriqueta: Fazes pouco de mim.
Todos vocês. Que sabes tu? Chegas aqui com esse ar de sonsa. Pensas que
eu não sei que falas com o Eduardo?
Criada: Quem é o Eduardo, minha
senhora?
Henriqueta:
Quem é o Eduardo. O meu filho. O irmão das minhas filhas. Já calculava
que não haverias de saber o nome dele.
Criada: Como assim?
Henriqueta:
Tem uma maneira muito sua de se apagar. De se tornar
desinteressante, sem o ser, e chato, sem o ser efectivamente. Calculo
que o tenhas achado atencioso.
Criada: Para ser sincera...
Henriqueta:
Fogo de vista, minha linda. Essa é sobretudo a sua estratégia mais
recorrente. Nada que enganar. Tem a quem sair. Agora vai. O rapaz já
deve estar farto de esperar.
Criada: Sim senhora.
Henriqueta: (Retendo-a) E
diz-lhe que a água quente é sempre muito demorada.
Criada: Sim minha senhora.
Henriqueta: (Seguindo-a) Ter sempre
cuidado com os espelhos. Nunca deslocá-los do sítio.
Criada: Sim, minha senhora.
Henriqueta: Há pantufas na despensa
do primeiro piso. Os degraus ouvem-se muito de noite.
Criada: Sim minha senhora.
Apolinário:
Lendo em voz alta para a Henriqueta e para a Criada que param para o
ouvir com ar condescentente) À noite ela ainda cantava, afirmou o
marido. Depois enfiei-lhe dois balázios. (Meditando) É isto a
vida. O antes e o depois. Nada mais. Um tempo de ascensão e outro de
declínio.
(Entra o
personagem Homem. A sua entrada surprende-as. Veste cores claras,
vivas mesmo. Fica muito tempo a observá-las. Apolinário esboça com
ironia o gesto de afastar a luz dos olhos. Depois subitamente sobe para
a mesinha).
Apolinário:
Três formas de se esfolar um urso: Uma,( tira a manga direita do
roupão) Duas( tirando a esquerda) E três! ( Joga
furiosamente o roupão para o canto da sala). Adeus! Não suporto
concorrência. ( Sai. Os outros três olham passivamente sem dizer
nada. O «Homem» fica muito tempo a observá-las. Estas esperam que este
lhes dirija a palavra. Como isso não acontece, é a criada que começa.):
Criada: Boa tarde senhor. Vou já
acompanhá-lo ao seu quarto. Tem aqui as chaves. ( Tira um molho de
chaves do bolso) Porta de entrada...terraço, casa de banho, pátio...
Henriqueta:
Fez muito bem em ter subido. A Manu vai já indicar-lhe o caminho.
Sinto-lhe um ligeiro cansaço. Satisfeito ao menos? Esta é uma casa
modesta, o ar aqui é muito menos poluído não acha? E tem a aldeia que é
um encanto. A vila é já a alguns quilómetros. E depois tem a cidade.
Olhe...chegue aqui. Veja só que magnífica vista. É uma capela. Sabe que
tive aqui o padre Edmundo? Um excelente padre. Esteve aqui muitos anos
no início...depois...vejo que está tudo do seu agrado. Sei que ainda é
cedo para elogios, mas acho que nos vamos dar bem. (olha para a
criada como se dissesse: atura-o tu.) Agora vou deixá-los. ( Sai
na direcção oposta).
Criada: Por aqui senhor...senhor...(
Ele não fala. Ela sai. Ele segue-a)
(Aparecem o Velho bêbedo e o Espanhol.
Só é Espanhol de nome. Não tem qualquer sotaque.)
Velho:
E depois conheço um óptimo exportador
de Wiskie. As tralhas passavam para a outra despensa...é só falar com
ela. E depois um bar aqui não é de todo uma ideia descabida não sei se
me entende...além disso não percebo porque é que há mais de dez anos
nunca ninguém lá pôs os pés. Um dia ainda descubro as coisas...os
segredos que lá tem...Mas sentemo-nos...sei que fez uma longa
viagem...da cidade até aqui...ainda por cima à noite... ( Ruído
lá fora ao longe) Olhe...Já se ouve o
barulho da greve...O meu amigo desculpe a indiscrição mas...o que é que
pensa fazer depois disto tudo? Já houve quem dissesse que não tenciona
dar seguimento ao negócio...que está mais virado para o leite...outros
que vai construir casas para arrendar...não vai fazer isso pois não?
Pode dizer...eu sou uma pessoa séria.
(Aparece
Vera atravessando o palco. Pára.)
Vera:
Terei ouvido bem? Uma pessoa séria? Ouviram todos? Cuidado com as
cabeças. É uma pessoa séria que vai passar. Francamente paizinho. Não é
altura para brincadeiras.
Velho: Filha, meu passarinho.
Conta-me tudo. Estás tão triste...
Vera: Devias poupar as bebidas para
a passagem de ano! Não admira que ela não fale contigo.
Velho: É uma velhaca. É má como as
cobras.
Vera: O que é que fazes aqui nesse
estado?
Velho:
Queria falar com ela. Não estou tão bêbedo que não consiga falar. Vem cá
minha filha. Vem cá...livrar-me deste Espanhol. Vem...
Vera: Ah! É o senhor...
Espanhol: Encantado!
Vera: Encantada! Soube que vai
arruinar uns quantos sopradores de vidro.
Esoanhol: Menina...
Velho:
Espere. Espere. Sentemo-nos. Vera, filha, isso não são modos de se falar
com um futuro investidor. Um dia vais agradecer-me por teres conhecido o
homem que trouxe o progresso, a modernidade...há que ser-se
absolutamente moderno...nos dias que correm...
Vera: E
a fábrica?
Velho: Ainda
não se sabe...que posso eu dizer?
Vera: Pode
explicar o que vai suceder com as famílias desempregadas.
Espanhol: Eu
acho que vou...
Vera: Livre-se
de fugir.
Velho: Vera,
filha, é inútil contornarmos os factos.
Espanhol: Com
sua licença menina...
Vera: Não me
venha com «menina». Diga antes: Senhora responsável pela qualidade do
vidro laminado. Diga!
Velho: Agora é
que foi!...
Espanhol: Só
pode estar a brincar!
(Vera
subitamente vai buscar uma vassoura)
Vera:
Ainda acha que estou a brincar?
Espanhol: (
Defendendo-se na cadeira) Ajude-me! É a sua filha por amor de Deus!
Velho:
Nunca peça nada a um bêbedo!
Vera:
Diga!
Espanhol:
Senhora...responsável...( Levantando-se) Não tenho que me
sujeitar...quem é que pensa que é? (Dirige-se para a porta. Vera
antecipa-se. O mesmo para o lado oposto.)
Espanhol: ( Ofegante) Menina! (
Senta-se em cima da mesa com a mão no peito).
Vera:
Menina outra vez?
Velho: faça-lhe a vontade ou vamos
ter festa.
Espanhol: Menina...
Vera: Ai...
Espanhol: (
Deitando-se na mesa.) Eu não sei que fiz para merecer isto...Isto
são bárbaros!...Peço-lhe...eu sou...claustro...eu tenho claustro...fo...fo...
Vera: Fo...fo...
Espanhol: Bia!
Vera: Não! Senhora responsável pela
qualidade do vidro laminado!
Espanhol:
Senhora responsável pela qualidade do vidro
laminado...peço-lhe...deixe-me sair pela minha saúde...
Velho: Vera, filha, deixa lá o
pobre homem. Deixa-o em paz. Este homem tem muito que fazer.
Vera:
Ainda não respondeu à minha pergunta. Uma vez que o nosso património não
lhe diz respeito, diga-me ao menos...as famílias...os
trabalhadores...terão que se sustentar do ar suponho.
Espanhol: Serão
indemnizados...agora peço-lhe...
(Entra Senhora Henriqueta)
Henriqueta: Mas o que é que vem a
ser isto?
Espanhol: São eles minha senhora.
Henriqueta: O que é que fizeram?
Espanhol:Não me deixaram sair.
Henriqueta: E porquê?
Espanhol: Obrigaram-me a falar.
( Já mais recomposto)
Velho: Não tive nada com isto. É a
tua filha...está como ele. Como o Eduardo.
Henriqueta:
(Para Vera que continua com a vassoura na mão). Pousa isso ou levas
uma sova. ( Indo ao encontro do Espanhol e depois para o Velho por
estar bêbedo)E tu não sei como é que foste dar com as chaves outra
vezmas uma coisa te garanto: da próxima vez que te voltar a dar um
daqueles ataques ficas por tua conta e risco. (Levantando o
Espanhol): Pronto...ora aqui vamos nós. ( para Vera) E tu
menina...vai buscar um copo de água.
Espanhol: ( Convalescendo)
Pois...menina! (Saem)
Velho:
Fizeste-a bonita. Oh! Sim! Agora é que deitaste tudo a perder. Imagina
só o que um homem destes podia fazer por nós. Estive prestes a conseguir
que nos construísse um bar na despensa, mas agora nada feito.
Vera: O
desgraçado só está aqui porque não tem onde dormir! Mas porque é que eu
estou a falar contigo, santo Deus?
Velho:
Já estou melhor. Então tens falado com ele.
Vera:
Com o Eduardo?
Velho:
Com quem mais?
Vera:
Sim, tenho-o visto. Esteve aqui hoje de manhã.
Velho:
Hoje de manhã? E não me disseram nada?
Vera:
Porque é que tu achas que só de manhã é que ele põe cá os pés?
Velho:
Porque o espertinho sabe que eu estou de ressaca. Se lhe ponho a vista
em cima aponto-lhe o dedo e digo-lhe o que é que acho da sua vidinha
revolucionária. Agora deu-lhe para agitador.
Vera:
Ora, tu farias o mesmo se não te pusesses nesse estado. A tua revolta
contra a revolta dos outros deve-se ao facto de os não poderes
acompanhar. Porque estás velho...perdido! (Vai ter com ele e
abraça-o)
Velho:
Não te ponhas com filosofias. Não há velhice que aguente. ( Para ela
que continua a abraçá-lo) Agora aproveita esse estado de espírito e
ajuda-me a ir até á despensa. Ver se chegamos antes dela.
Vera: (
Levando-o) Não, não! Nem penses que te vais enfrascar outra vez.
Velho:
Não se discute com um bêbedo!
Vera:
Já parou de chover. Vamos até ao terraço...apanhar um pouco de ar...
Velho:
Ar? Quem é que precisa de ar quando se tem uma pinga maravilhosa na
despensa?
Vera:
Vá, não se discute com pessoas demasiado sóbrias.
Velho:
Pessoas demasiado sóbrias...hoje em dia somos nós.( Como se
recitasse): « Se eu a dormir, nesse momento acordasse, talvez
conseguisse ver a verdade em toda a sua glória. Mas como não teria a
certeza de a conseguir ver, prefiro mil vezes afundar-me neste torpor e
pensar que estou certo».
Vera: Quem é que terá dito isso?
Velho:
Deixa cá ver. Alguém que gostava de castanhas assadas. Ah! Ah! Gostaste?
Alguém que gostava de castanhas assadas! Ah! Ah! Ora como a maior parte
dos filósofos gostava delas...não faço a mínima ideia. Sim, é o que se
pode chamar um silo...silo...silogismo! Todos os burros são mamíferos! O
homem é mamífero...o homem é um completo e grandessíssimo asno! Ah! Ah!
Gostaste?
Vera: Sim, vamos...Não querias
chegar antes dela?
Velho: Não o digas duas vezes. (
Acelera o passo. Saem.) |