Ao pé de uma
encosta que separa a aldeia do bosque. Segunda de manhã. Senhor Fredi e
Ualt sentados num pequeno parque. Atrás dos dois há uma rocha de
dimensões consideráveis que costuma servir de mesa.
Fredi: Os sopradores de vidro
anunciaram sair mais cedo hoje da vidraria.
Ualt: E...
Fredi: Sente-se.
Ualt: Eles já sabem?
Fredi: Não vai ser fácil. Nada
fácil mesmo. Tem a cara pálida. Está com febre?
Ualt: Tenho o coração frio.
Fredi: Não se está a dar bem com os
ares do bosque?
Ualt: Não é nada disso. É uma
espécie de aperto. Sinto-o a estrangular-me por dentro. Outra vez!
Fredi: O quê?
Ualt: Outra vez.
Fredi: Está assim tão mal?
Ualt. De cada vez que olho para
baixo sinto-me sufocar. Está a ouvir?
Fredi: É o seu coração.
Ualt: O meu coração. Está a ouvir?
Fredi: Não.
Ualt: Mas disse tratar-se do meu
coração.
Fredi: Calculei. Disse que tinha o
coração frio. Experimente deitar-se de barriga para baixo.
Ualt: À medida que fala estende-se ao
comprido em cima da rocha. O Eduardo nem me dirigiu a palavra. No
sábado mal saiu, isto deviam ser umas onze horas, foi direito a casa.
Tinha um daqueles cachecóis aos quadrados... horrorosos. Parecia um
farrapo.
Fredi: É do tempo senhor Ualt. É do
tempo. Está frio. É do tempo.
Ualt:
Pois. Aquela besta. Nem me falou. Continuou a falar com o filho do
vigário. O baleia, ou orca, ou lá o que é. Meteu-se no meio da multidão
e lá abalou. O parvo. Quem é que julga que é?
Fredi: Afecta-nos a todos.
Ualt:
Precisamente. Era precisamente isso que eu devia ter dito. Mas pelos
vistos esta gente orgulha-se com o sofrimento. Não são só eles.
Querem-no todo. Só para eles. (Pausa) Acha mesmo que já sabem?
Fredi: Fez-se o que se podia.
Ualt: As notícias correm.
Fredi: Acaba-se sempre por
descobrir senhor Ualt.
Ualt: Greve?
Fredi: Nem mais. Acabo de lhe dizer
que está anunciada para hoje. Tínhamos encomendas ainda.
Ualt: Tem a certeza de que eles já
sabem?
Fredi: Sim, foi o que ouvi.
Ualt:
Ouviu?
Fredi:
Foi o que ouvi. E acabou de me dizer que o chefe de departamento da
secção número um, o Eduardo, nem lhe dirigiu a palavra...
Ualt: Os
homens antecipam as desgraças a fim de eliminarem qualquer surpresa.
Qualquer criatura que se preze, vive sempre numa espécie de felicidade
comprometida. Por isso não lhe posso dizer em concreto se acho que ele
sabe. Sim, estava esquisito, mas daí a saber...
Fredi: É coincidência a mais.
Ualt:
(Fazendo pressão contra o peito continuando deitado) Sim,
coincidência. Uma altura em tudo imprópria para revelar aquele
comportamento. Mas como é que ele soube? Melhor, como é que o senhor
teve conhecimento que ele sabe?
Fredi: A
senhora D. Henriqueta tem o hábito de se confessar uma vez por semana. O
senhor vigário é como todos sabemos uma excelente pessoa. Mas quando
está bêbedo...ouvi-o falar sobre a greve...pensei imediatamente na
senhora Henriqueta.
Ualt: A senhora D Henriqueta? A mãe
do Eduardo?
Fredi: É o que me parece.
Ualt: A
mãe dele fala a dormir. Deve ter sido isso. Foi ele. E aquele padre..
Sou mesmo estúpido. Ter ido ao confessionário numa altura destas... Há
que desacreditá-lo...O senhor está aqui há mais tempo do que eu e ainda
não se apercebeu que esta corja não faz mais nada que não seja desejar o
mal dos outros? Espalhar boatos? A dona Henriqueta. Sabe o que ouvi a
respeito dela? (Respondendo ao mutismo de Fredi). Uma cruz
invertida na mesa de cabeceira.
Fredi: Como assim? Não está a
insinuar...
Ualt: Como se uma cruz invertida
não significasse nada.
Fredi: Mesmo eu que não tenho por
hábito ir a missas... quando medito e decido ir dar uma volta à
capela...mesmo eu não vejo isso com bons olhos.
Ualt: Nunca confiar. Saiba que tem
um aquário com uns peixes exóticos. Peixes, criaturas de Deus. E a cruz
mesmo ao lado.
Fredi: Não terá sido descuido?
Ualt: Sabe-se lá a influência que
sofrem.
Fredi:
Peixes disse o senhor um dia. Apenas peixes. Lembra-se do que o senhor
me disse quando tínhamos ido à pesca no açude? O dia mais ridículo das
nossas vidas. Além disso, nenhum de nós tinha qualquer importância em
cima do muro. Afastados dos nossos cargos não éramos mais do que uns
animaizinhos sem importância. O senhor pescou alguns pequenos demais.
Lembra-se do que lhes fez?
Ualt: Admito-me sensibilizado com o
discurso, mas se a cruz não estivesse como estava e calculo que esteja
ainda, o caso seria outro. Mas assim é o cúmulo.
Fredi: E como é que sabe que a
velha tinha a cruz dessa maneira?
Ualt: Ora, sempre me disseram que
tinha maus hábitos. Maus hábitos.
Fredi: Não se trata de um boato?
Uma maldade?
Ualt: Soube de fonte segura.
Fredi:
Dá a entender que a senhora Henriqueta não é senão maldosa...uma
excelente católica que cantava como um anjo nos tempos de igreja...dá a
entender dito assim, que esta mesma mulher, que combateu com o pouco
dinheiro que tinha, a demolição da pequena capela...e que manteve o
velho padre no activo...dá a entender que não é senão perversa!
Ualt: Ora aí está! Perversão. Um
tema que diz respeito a muitos mas aflorado por poucos. Vou-me
certificar de o desacreditar, meu bom conselheiro...
Fredi: Como?
Ualt: Indo num pulo à praça gritar
que esta história da venda, não passa de uma mentira.
Fredi: Têm-lhe respeito e confiança
os vidreiros.
Ualt: Na
verdade, não me parece que lhes tenha dito. Ponho as minhas mãos no
fogo. Irão continuar a trabalhar como carneiros até à data estipulada.
Deixemos o tempo resolver tudo.
Fredi:
Mas essa da velha Henriqueta é nova.
Ualt: Foi o próprio Eduardo quem mo
disse. O próprio filho. Dizer-se que a nossa própria mãe tem uma cruz
invertida. Quando o sangue está quente, tendo sido guarnecido com um bom
vinho e com uns bons nacos de carne, até os segredos mais bem guardados
nos sobem à boca.
Fredi: E que mais disse ele?
(A cabeça
de Eduardo aparece atrás dos dois e volta a esconder-se).
Ualt:
Que é uma mãe muito estranha. Que se levanta de hora em hora para ir à
despensa. Sempre que volta para o quarto balbucia uma espécie de reza. E
já está a ver a velha Henriqueta com aquele cabelo de cenoura e olhos
que metem medo ao susto. Mas deixemos isso, não vamos desperdiçar tempo
com ninharias. Daqui a uma semana parto em definitivo e quero desde já
que me marque encontro com esse Espanhol para arrumarmos as contas.
Fredi: O senhor vai mesmo para a
frente com isto?
Ualt: Como assim?
Fredi: Quer mesmo vender a fábrica?
Ualt: Que diz? Não é altura para
brincadeiras.
Fredi: Só digo que talvez haja uma
solução.
Ualt:
Explique-se.
Fredi : Está frio. Parece-me que
vem aí mau tempo.
Ualt: Nada melhor do que o frio,
para solidificar os ossos. Acho que vou ter saudades deste cheiro a
mosto. E do som dos lenhadores às sete da manhã com as suas famílias nas
amoreiras.
Fredi: O que eu lhe quero dizer é
que talvez se consiga uma solução.
Ualt: Sou todo ouvidos.
Fredi :
Há um homem que mora no alto desta serra. Enviou um rapaz que me falou
dele. Um velho mestre do vidro, um científico. Conheci-o há pouco tempo.
Parece que esteve em Itália e fez parte de um grupo de vidreiros muito
fechado. Poucos sabem mas este homem revolucionou a indústria. Os fornos
de recozimento por exemplo. Fez com que o seu grau de aquecimento
pudesse ser controlado. Foi aceite com a particularidade de não poder
sair da região. Nem sequer lhe retribuíram algumas importantes
contribuições. Era um simples maçon a quem pagavam uma miséria. Até ao
dia...
Ualt:
Até ao dia em que fugiu com uma fórmula de um louco tão louco quanto
ele. Já todos ouvimos essa lega lenga distorcida pela boca dos curiosos.
Mas então por que espera ele? Que nos salve a todos da miséria. Que
fabrique um vidro de qualidade superior. Lamento, mas ganho mais com a
venda da fábrica.
Fredi: Sobrefusão de lágrimas.
Ualt: Não percebi.
Fredi: A fórmula está pronta. Os
testes começaram. Daqui a uma semana disse-me que o levasse a si ao
laboratório.
Ualt: (Mais composto)
Sobrefusão de lágrimas. Nunca ouvi semelhante coisa.
Fredi: Peço-lhe que reconsidere.
Ualt: Não me parece. (
Levantam-se).
Fredi: Ainda há tempo para um
passeio no bosque.
Ualt.
Estou decidido. (Ouvindo-se o partir de galhos secos) Quem está
ai? Quem? Acuse-se imediatamente. Mas que surpresa. Quase que o confundi
com um carneiro. E nada melhor do que um carneiro para balir como um
urso.
Eduardo: (Aparecendo com ramos de
eucalipto na mão) O melhor remédio para as costas.
Fredi: São para si?
Eduardo: Para a minha mãe.
Ualt:
Tenha mais calma. Olhe o que lhe digo sempre. E depois é a falta de
respiração. Sim, sim, é absolutamente verdade. Temos de tomar as coisas
pelo tempo que lhes é mais justo. Não apressar nada. O meu amigo tem
todo o tempo. Para quê correrias?
Eduardo:
A minha mãe fica já em caminho. É só seguir por aqui. Muito bom dia.
Ualt:
Sei de uma planta que costuma crescer junto aos montes de silvas. Muito
boa para as costas. Siga em frente. Vai ver que não vão faltar. Em
frente, em frente. (Eduardo sai. Fredi e o senhor Ualt
entreolham-se). |