NELSON BOGGIO

Fábrica do Vidro

ÍNDICE GERAL

Primeiro acto      

Cena I

Ao pé de uma encosta que separa a aldeia do bosque. Segunda de manhã. Senhor Fredi e Ualt sentados num pequeno parque. Atrás dos dois há uma rocha de dimensões consideráveis que costuma servir de mesa.

Fredi: Os sopradores de vidro anunciaram sair mais cedo hoje da vidraria.   

Ualt: E... 

Fredi: Sente-se. 

Ualt: Eles já sabem?  

Fredi: Não vai ser fácil. Nada fácil mesmo. Tem a cara pálida. Está com febre?  

Ualt: Tenho o coração frio.

Fredi: Não se está a dar bem com os ares do bosque?  

Ualt: Não é nada disso. É uma espécie de aperto. Sinto-o a estrangular-me por dentro. Outra vez!  

Fredi: O quê?  

Ualt: Outra vez.  

Fredi: Está assim tão mal?  

Ualt. De cada vez que olho para baixo sinto-me sufocar. Está a ouvir?

Fredi: É o seu coração. 

Ualt: O meu coração. Está a ouvir?  

Fredi: Não.  

Ualt: Mas disse tratar-se do meu coração.  

Fredi: Calculei. Disse que tinha o coração frio. Experimente deitar-se de barriga para baixo.  

Ualt: À medida que fala estende-se ao comprido em cima da rocha. O Eduardo nem me dirigiu a palavra. No sábado mal saiu, isto deviam ser umas onze horas, foi direito a casa. Tinha um daqueles cachecóis aos quadrados... horrorosos. Parecia um farrapo.  

Fredi: É do tempo senhor Ualt. É do tempo. Está frio. É do tempo.  

Ualt: Pois. Aquela besta. Nem me falou. Continuou a falar com o filho do vigário. O baleia, ou orca, ou lá o que é. Meteu-se no meio da multidão e lá abalou. O parvo. Quem é que julga que é?  

Fredi: Afecta-nos a todos.  

Ualt: Precisamente. Era precisamente isso que eu devia ter dito. Mas pelos vistos esta gente orgulha-se com o sofrimento. Não são só eles. Querem-no todo. Só para eles. (Pausa) Acha mesmo que já sabem?  

Fredi: Fez-se o que se podia.  

Ualt: As notícias correm. 

Fredi: Acaba-se sempre por descobrir senhor Ualt.  

Ualt: Greve? 

Fredi: Nem mais. Acabo de lhe dizer que está anunciada para hoje. Tínhamos encomendas ainda.  

Ualt: Tem a certeza de que eles já sabem?  

Fredi: Sim, foi o que ouvi.  

Ualt: Ouviu?  

Fredi: Foi o que ouvi. E acabou de me dizer que o chefe de departamento da secção número um, o Eduardo, nem lhe dirigiu a palavra... 

Ualt: Os homens antecipam as desgraças a fim de eliminarem qualquer surpresa. Qualquer criatura que se preze, vive sempre numa espécie de felicidade comprometida. Por isso não lhe posso dizer em concreto se acho que ele sabe. Sim, estava esquisito, mas daí a saber... 

Fredi: É coincidência a mais.  

Ualt: (Fazendo pressão contra o peito continuando deitado) Sim, coincidência. Uma altura em tudo imprópria para revelar aquele comportamento. Mas como é que ele soube? Melhor, como é que o senhor teve conhecimento que ele sabe?  

Fredi: A senhora D. Henriqueta tem o hábito de se confessar uma vez por semana. O senhor vigário é como todos sabemos uma excelente pessoa. Mas quando está bêbedo...ouvi-o falar sobre a greve...pensei imediatamente na senhora Henriqueta.  

Ualt: A senhora D Henriqueta? A mãe do Eduardo?  

Fredi: É o que me parece.  

Ualt: A mãe dele fala a dormir. Deve ter sido isso. Foi ele. E aquele padre.. Sou mesmo estúpido. Ter ido ao confessionário numa altura destas... Há que desacreditá-lo...O senhor está aqui há mais tempo do que eu e ainda não se apercebeu que esta corja não faz mais nada que não seja desejar o mal dos outros? Espalhar boatos? A dona Henriqueta. Sabe o que ouvi a respeito dela? (Respondendo ao mutismo de Fredi). Uma cruz invertida na mesa de cabeceira.  

Fredi: Como assim? Não está a insinuar...  

Ualt: Como se uma cruz invertida não significasse nada.  

Fredi:  Mesmo eu que não tenho por hábito ir a missas... quando medito e  decido ir dar uma volta à capela...mesmo eu não vejo isso com bons olhos.  

Ualt: Nunca confiar. Saiba que tem um aquário com uns peixes exóticos. Peixes, criaturas de Deus. E a cruz mesmo ao lado.  

Fredi: Não terá sido descuido? 

Ualt: Sabe-se lá a influência que sofrem.  

Fredi: Peixes disse o senhor um dia. Apenas peixes. Lembra-se do que o senhor me disse quando tínhamos ido à pesca no açude? O dia mais ridículo das nossas vidas. Além disso, nenhum de nós tinha qualquer importância em cima do muro. Afastados dos nossos cargos não éramos mais do que uns animaizinhos sem importância. O senhor pescou alguns pequenos demais. Lembra-se do que lhes fez?  

Ualt: Admito-me sensibilizado com o discurso, mas se a cruz não estivesse como estava e calculo que esteja ainda, o caso seria outro. Mas assim é o cúmulo. 

Fredi: E como é que sabe que a velha tinha a cruz dessa maneira?  

Ualt: Ora, sempre me disseram que tinha maus hábitos. Maus hábitos. 

Fredi: Não se trata de um boato? Uma maldade?  

Ualt: Soube de fonte segura.  

Fredi: Dá a entender que a senhora Henriqueta não é senão maldosa...uma excelente católica que cantava como um anjo nos tempos de igreja...dá a entender dito assim, que esta mesma mulher, que combateu com o pouco dinheiro que tinha, a demolição da pequena capela...e que manteve o velho padre no activo...dá a entender que não é senão perversa!  

Ualt: Ora aí está! Perversão. Um tema que diz respeito a muitos mas aflorado por poucos. Vou-me certificar de o desacreditar, meu bom conselheiro... 

Fredi: Como?  

Ualt: Indo num pulo à praça gritar que esta história da venda, não passa de uma mentira.  

Fredi: Têm-lhe respeito e confiança os vidreiros.  

Ualt: Na verdade, não me parece que lhes tenha dito. Ponho as minhas mãos no fogo. Irão continuar a trabalhar como carneiros até à data estipulada. Deixemos o tempo resolver tudo.

Fredi: Mas essa da velha Henriqueta é nova.   

Ualt: Foi o próprio Eduardo quem mo disse. O próprio filho. Dizer-se que a nossa própria mãe tem uma cruz invertida. Quando o sangue está quente, tendo sido guarnecido com um bom vinho e com uns bons nacos de carne, até os segredos mais bem guardados nos sobem à boca.  

Fredi: E que mais disse ele?  

                          (A cabeça de Eduardo aparece atrás dos dois e volta a esconder-se). 

Ualt: Que é uma mãe muito estranha. Que se levanta de hora em hora para ir à despensa. Sempre que volta para o quarto balbucia uma espécie de reza. E já está a ver a velha Henriqueta com aquele cabelo de cenoura e olhos que metem medo ao susto. Mas deixemos isso, não vamos desperdiçar tempo com ninharias. Daqui a uma semana parto em definitivo e quero desde já que me marque encontro com esse Espanhol para arrumarmos as contas.  

Fredi: O senhor vai mesmo para a frente com isto?  

Ualt: Como assim?  

Fredi: Quer mesmo vender a fábrica?  

Ualt: Que diz? Não é altura para brincadeiras.  

Fredi: Só digo que talvez haja uma solução.  

Ualt: Explique-se.  

Fredi : Está frio. Parece-me que vem aí mau tempo.  

Ualt: Nada melhor do que o frio, para solidificar os ossos. Acho que vou ter saudades deste cheiro a mosto. E do som dos lenhadores às sete da manhã com as suas famílias nas amoreiras. 

Fredi: O que eu lhe quero dizer é que talvez se consiga uma solução.

Ualt: Sou todo ouvidos.  

Fredi : Há um homem que mora no alto desta serra. Enviou um rapaz que me falou dele. Um velho mestre do vidro, um científico. Conheci-o há pouco tempo. Parece que esteve em Itália e fez parte de um grupo de vidreiros muito fechado. Poucos sabem mas este homem revolucionou a indústria. Os fornos de recozimento por exemplo. Fez com que o seu grau de aquecimento pudesse ser controlado. Foi aceite com a particularidade de não poder sair da região. Nem sequer lhe retribuíram algumas importantes contribuições. Era um simples maçon a quem pagavam uma miséria. Até ao dia... 

Ualt: Até ao dia em que fugiu com uma fórmula de um louco tão louco quanto ele. Já todos ouvimos essa lega lenga distorcida pela boca dos curiosos. Mas então por que espera ele? Que nos salve a todos da miséria. Que fabrique um vidro de qualidade superior. Lamento, mas ganho mais com a venda da fábrica.  

Fredi: Sobrefusão de lágrimas.  

Ualt: Não percebi.  

Fredi: A fórmula está pronta. Os testes começaram. Daqui a uma semana disse-me que o levasse a si ao laboratório.  

Ualt: (Mais composto) Sobrefusão de lágrimas. Nunca ouvi semelhante coisa.  

Fredi: Peço-lhe que reconsidere.  

Ualt: Não me parece. ( Levantam-se)

Fredi: Ainda há tempo para um passeio no bosque.  

Ualt. Estou decidido. (Ouvindo-se o partir de galhos secos) Quem está ai? Quem? Acuse-se imediatamente. Mas que surpresa. Quase que o confundi com um carneiro. E nada melhor do que um carneiro para balir como um urso.  

Eduardo: (Aparecendo com ramos de eucalipto na mão) O melhor remédio para as costas.  

Fredi: São para si?  

Eduardo: Para a minha mãe.  

Ualt: Tenha mais calma. Olhe o que lhe digo sempre. E depois é a falta de respiração. Sim, sim, é absolutamente verdade. Temos de tomar as coisas pelo tempo que lhes é mais justo. Não apressar nada. O meu amigo tem todo o tempo. Para quê correrias? 

Eduardo: A minha mãe fica já em caminho. É só seguir por aqui. Muito bom dia.  

Ualt: Sei de uma planta que costuma crescer junto aos montes de silvas. Muito boa para as costas. Siga em frente. Vai ver que não vão faltar. Em frente, em frente. (Eduardo sai. Fredi e o senhor Ualt entreolham-se).

Nelson Boggio nasceu em Proença-a-Nova, no distrito de Castelo Branco. Aos 16 anos ingressa na escola profissional ACE no Porto onde teve as sua primeiras experiências teatrais com  o encenador Rogério de Carvalho, com os actores e professores João Paulo Costa e António Capelo, entre outros. Enquanto aluno da escola participou como figurante na peça de teatro O Coriolano, de Shakespeare, dirigida por Jorge Silva Melo. Entrou em peças encenadas pela escola. Desde Gil Vicente com direcção de António Capelo, a peças como Os sete pecados mortais dos pequenos burgueses, de Brecht com Kuniaki Ida com o qual desenvolve também a máscara neutra. Tem também ateliers à volta do Clown com Alan Richardson.  Aos dezanove anos entra para a Escola Superior de Teatro e Cinema, onde volta a reencontrar o professor e encenador Rogério de Carvalho, e onde começa pela primeira vez a trabalhar em cena os textos clássicos gregos. Tem também como professores o encenador José Peixoto, o Professor Luca Aprea em corpo, o professor Francisco Salgado, Álvaro Correia, João Mota, Carlos J. Pessoa, com o qual trabalhou três peças de teatro na sua companhia O teatro da garagem.  Participou na peça Os Anjos de Teolinda Gersão a convite do professor e encenador João Brites, em Palmela. Participou como actor na peça “Les Bonnes/ As Criadas” de Jean Genet com encenação de Paulo Alexandre Lage, em Julho de 2005 na Casa Conveniente em Lisboa.