ÓDIO
As gotas da loucura banhavam-nos a todos.
O Ultramar tramou-nos bem tramados.
À noite, arregalava os olhos o mais que podia. Eu de sentinela, ouvia os roncos dos meus companheiros e os sons da selva negra.
O sangue da noite sempre foi negro.
E aqueles momentos eram anos e anos para mim.
Tinha o meu quinhão de desespero a bailar na foice de um desejo de derrota. Desespero. Desejo. Derrota.
Em ÓDIO propõe-se um lugar em mutação. Inicialmente, encontra-se delineado de forma clara e rigorosa, convertendo-se progressivamente num amontoado de objectos. No final, a distribuição dos elementos existentes constrói imagens que ali coabitam. Esta tarefa ininterrupta é desempenhada por alguém que rememora o seu passado. O lado prático da sua acção, com um objectivo que se vai deixando adivinhar, tem o contraponto na desordem das imagens que evoca, na desconexão entre estas. Assim, à fragmentação do que é dito, justapõe-se a continuidade da acção. É esta que nos pode indicar a procura de um sentido, por parte de quem os descreve, para os fragmentos de memória. Se esta figura é sistematicamente assaltada pelo horror, é da ordem estética que a sua acção releva. Habitam-na o trauma e o terror, investe na busca de um sublime possível.
Se o espaço é mutável, também quem nele circula não permite classificações imediatas. A sua identidade não é fixa. Aquele corpo - de mulher, dir-se-á - fala no masculino. O trauma de guerra extravasa o teatro desta e invade os espaços domésticos. Assim foi com a Guerra Colonial Portuguesa, que deixou marcas nos lares da metrópole, nos corpos de mulheres e familiares dos combatentes. Assim, o discurso em ÓDIO não é tanto o de um só indivíduo mas o que se apossou de vários seres, diferentes homens e mulheres.
Francisco Camacho
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