Estava alerta há mais de
24 horas. Doíam-lhe os joelhos naquela posição acocorada. Mas sabia que
cedo ou tarde o sol havia de nascer. E poderia soltar a corda do arco em
tensão contra a silhueta no coração da noite ainda. Ela era de ferro,
mas mortal. Como todas as mulheres, por mais belas que sejam. E
sedutoras na sua firmeza cruel da suposta indiferença. Mas um urso
atravessou-se na paisagem: era indescritível de peso e dignidade. Alvo
de alvura, alvo para a seta; olhos rutilantes, focinho húmido.
Hesitou imenso: por detrás
dele, finalmente, saíra a tal, que ele queria fulminar. Percebeu-se
estonteado, duvidoso, amedrontado. Não queria matar o urso… Mas se a
seta vazasse os dois? Não seria a última oportunidade? Se ela escapasse
naquela aurora, teria de esperar meio ano: é assim no Polo Norte. E ele
viera da Patagónia, quase percorrendo um meridiano inteiro. A seta
decidiria o discurso de um arco gasto: ela apaixonava-se ou morria. Uma
coisa ou outra lhe seria tranquilizadora, desde que a fuga permanente
terminasse ali mesmo.
Porém, o urso parou e
falou! “Achas a posse mais importante do que a beleza? Preferes o frio
da morte à febre da inquietação?”. Ele tremeu. Nunca imaginara que um
urso falasse. Ou talvez não falasse, talvez fosse delírio seu. Por isso
lhe respondeu: “Tu és um urso, nada percebes de paixões”. O urso ainda
esboçou um sorriso humano e disse, quase inaudível: “Então mata-me,
vá!”. Depois agigantou-se e começou a esvanecer-se em neve, não menos
alva de alvura, e acrescentou: “Tudo se passa na nossa cabeça, meu
amigo! Hás-de voltar, esta não foi a tua hora”.
Era ela, afinal, quem
falava. E aproximou-se para o beijar. Nesse preciso instante desfaleceu,
antes que os lábios dela tocassem os seus. Mas quando acordou viu o urso
de novo, de boca colada à dele, desfocado. Sentiu-se invadido de um
sopro infindável que jorrava como água na nascente a invadir-lhe os
pulmões.
Recuperou a visão
totalmente: era um enfermeiro pressionando-o no peito e realizando uma
manobra de boca-a-boca e o eco da frase repetiu-se: “Hás-de voltar, esta
não foi a tua hora”. O urso, perdão – o enfermeiro –, sorriu-lhe e disse
para o companheiro ao lado: “Este conseguimos. E ela?”.
Tremeu de alto a baixo ao
virar os olhos para junto do outro. Ela estava morta, com uma seta
atravessando-lhe o coração no meio do asfalto. E barreiras policiais de
volta, permitiam que, fora daquele cenário de chapas amalgamadas, o
trânsito fluísse nas outras faixas da auto-estrada. Perplexo, perguntou:
“Fui eu que a matei?”. Um dos polícias respondeu seco, mas amável: “Não
amigo, ela é que vinha a conduzir! Ia-o matando asi!”. “E a seta?”,
perguntou. Mas olharam-no como se estivesse a delirar e sentiu de novo
um jorro de água fria, agora nas veias.
“A seta era a de Cúpido.
Acabaste por me vencer!”, disse-lhe o cadáver da mulher.
Uns dias mais tarde, um
psiquiatra, a quem descrevia tudo isto, sorriu e ditou sentencioso:
“Tudo se passa na nossa cabeça, meu amigo!”. Era o urso. Ou pelo menos
era alvo de alvura dentro do que parecia ser uma bata. E o sol irrompeu
por entre os estores de ferro que ela, ali presente e feliz, abria com
um sorriso entre uma certa travessura e um desejo inconfessado. |
(jorge) castro guedes
encenador, natural do porto, nascido em 1954.
fundador e director artístico do tear (1977/1989), estagiou com jorge lavelli no théâtre national de la coline (paris) na temporada 88/89, autor e apresentador do magazine teatral "dramazine" na rtp2, onde foi consultor de teatro (90/93).
encenador convidado no teatro nacional dona maria II, serviço acart/gulbenkian, casa da comédia, teatro aberto/novo grupo, teatro villaret/morais e castro, teatro villaret/raul solnado, cendrev, filandorra, teatro universitário do porto, cenateca, plebeus avintenses.
director artístico do cdv - centro dramático de viana, companhia profissional residente no teatro municipal sá de miranda (viana do castelo).
professor convidado da escola superior de teatro e cinema (lisboa), escola superior de música e artes do espectáculo (porto), escola superior artística do porto, academia contemporânea do espectáculo (porto), convenção teatral europeia (lisboa), escola superior de hotelaria e turismo do estoril.
autor de "à esquerda do teu sorriso", peça em um acto, editora campo das letras; e de outras à espera de publicação.
acidentalmente copywritter na mccann/erikcson (90/92). |