A importância do teatro
de raiz e tradição populares é decisiva não só para a compreensão do
próprio teatro português no seu todo histórico, como parte integrante do
nosso património cultural, mas mesmo como elemento de estudo sociológico
e antropológico, julgo eu… Porém nada ou muito pouco tem sido feito. E
pior: trata-se de um edifício a desmoronar de quem importa, no mínimo,
registar a memória da existência, mesmo que sejam ruínas.
Aliás (numa componente
de natureza mais urbana), algo de idêntico se poderia dizer quanto ao
teatro de revista. Sobre o qual também se justifica o aprofundamento de
duas peças muito interessantes, que são o livro de Vítor Pavão dos
Santos e o guião do “Passa por mim no Rossio” do Lá Féria. Mas adiante,
que não é disso que aqui se trata: venho falar do teatro popular de raiz
rural, descendente dos autos medievais (e dos romances de cavalaria da
mesma época, como é o caso vertente da “Floripes” das Neves).
Existem, de facto,
recolhas de autos populares de enorme significado e utilidade. Eu
conheço duas edições, ambas datadas da década de 70: a de Azinhal Abelho
na Colecção Metrópole e Ultramar, Editora Pax; e a de Leite de
Vasconcellos com coordenação e notas de Machado Guerreiro, da
responsabilidade da Universidade de Coimbra. É muito provável que
existam outras, sobretudo teses a nível académico, mas possivelmente
mais centradas nesta ou naquela vertente particular e reduzidas a uma
expressão literária ou, quando muito, fotograficamente ilustrada. Tal
como existe, abençoadamente, o filme documental de Manoel de Oliveira
“Acto da Primavera” (sobre o “Auto da Paixão” na Curalha). Mas era
utilíssimo alargar a recolha de imagens no âmbito de um estudo teórico
sobre essas práticas e para a sinalização mais exaustiva da coisa.
Com os meios
tecnológicos ao nosso dispor (nomeadamente o vídeo), acho que não seria
sequer muito caro constituir uma pequena equipa operacional,
naturalmente enquadrada por quem tenha a base mínima de conhecimento
sobre a matéria, e partir por aí fora não só à recolha de imagens e som,
mas também de testemunhos e fazendo investigação no terreno. Digo-o um
pouco à semelhança dessa obra preciosa que Giacometti e Lopes Graça
realizaram nos anos 60 relativamente à música tradicional portuguesa.
Das festas dos “Caretos”
em Trás-os-Montes às duas “Floripes” (tão diferentes: o auto nas Neves e
a lenda em Olhão), das “Danças Dramáticas” na Ilha Terceira às
“Cavalhadas” em Valongo, há por aí um manancial de muitas mais
expressões teatrais e para-teatrais de raiz popular a recolher. E, já
agora, não apenas ao nível do espaço nacional, mas mesmo lusófono: quer
o “Bumba meu Boi” no Brasil, quer o “Tchiloli” em São Tomé. Mas isto são
meros exemplos! Urge uma recolha sistematizada para se constituir num
acervo que está por fazer.
Pode ser que a
declaração pela Unesco do tango como património imaterial da humanidade
dê uma ajuda. Porque certamente não será da humanidade, mas este teatro
de raiz e tradição populares é um património imaterial (a registar
materialmente), que, não sendo caso completamente único na Europa, tem a
virtude de daqui se ter espalhado por outros continentes num registo
cultural muito português com um vigor e amplitude enormes.
À partida julgo que um
tal trabalho se enquadraria perfeitamente na missão do Inatel, pois
trata-se, no fundo, de uma vertente da própria etnografia. Mas,
obviamente, o carácter científico que um tal levantamento implica e o
seu âmbito para lá das fronteiras nacionais não dispensam uma equipa
própria profissionalizada para o realizar (em anos, certamente) e um
universo mais largo de apoios e parceiros, mesmo que contando com
parcerias locais das delegações distritais e de núcleos de associados da
Fundação Inatel e algum financiamento desta.
Talvez se possa desafiar
a Associação de Municípios para que as autarquias se comprometam num
pré-levantamento e custeiem despesas locais. Talvez o Ministério da
Cultura para que disponibilize alguns meios – nem que seja através das
Delegações Regionais para não serem pouco mais do que figura decorativa
- e reconduza depois o material para o Museu do Teatro, que seria seu
sítio natural de estar. Talvez se possa fazer ainda uma parceria com uma
Universidade através de uma Faculdade de Letras ou de um qualquer
Departamento, no sentido de preparar o estudo e trabalhar os resultados.
Talvez se possa encontrar um enquadramento que dê acesso a fundos
europeus para reforços financeiros; ou talvez com o recurso a um
mecenas privado com sensibilidade cultural possa ajudar. Talvez a
CPLP ou outras organizações no âmbito das comunidades lusófonas se
possam interessar proactivamente. Talvez o Instituto Camões tenha uma
palavra a dizer no que e com o que possa colaborar. Talvez o Ministério
dos Negócios Estrangeiros possa dar apoios logísticos para a componente
internacional. Talvez a Fundação Oriente ajude nessa área do planeta. Ou
a própria Fundação Gulbenkian queira retomar o bom hábito perdido de se
interessar por coisas assim. Talvez também a RTP se queira redimir do
telelixo que já começou a invadir mesmo a 2 e retomar essa sugestão que
dei quando seu consultor. Talvez tudo isso junto, não sei!...
Não sei e pessoalmente
não me estou a propor a nada. Talvez alguns dos recém-licenciados em
Estudos Teatrais ou saídos dum curso de actores das Escolas Superiores,
em vez de irem para o mercado dos Call Center, possam, com
colegas e meios dos Departamentos Audiovisuais dos Institutos
Politécnicos, fazer isto com gosto, empenho e a preços
competitivos….
O que eu pessoalmente
sei e (me) dou conta é da necessidade imperiosa de isto ser feito. |
(jorge) castro guedes
encenador, natural do porto, nascido em 1954.
fundador e director artístico do tear (1977/1989), estagiou com jorge lavelli no théâtre national de la coline (paris) na temporada 88/89, autor e apresentador do magazine teatral "dramazine" na rtp2, onde foi consultor de teatro (90/93).
encenador convidado no teatro nacional dona maria II, serviço acart/gulbenkian, casa da comédia, teatro aberto/novo grupo, teatro villaret/morais e castro, teatro villaret/raul solnado, cendrev, filandorra, teatro universitário do porto, cenateca, plebeus avintenses.
director artístico do cdv - centro dramático de viana, companhia profissional residente no teatro municipal sá de miranda (viana do castelo).
professor convidado da escola superior de teatro e cinema (lisboa), escola superior de música e artes do espectáculo (porto), escola superior artística do porto, academia contemporânea do espectáculo (porto), convenção teatral europeia (lisboa), escola superior de hotelaria e turismo do estoril.
autor de "à esquerda do teu sorriso", peça em um acto, editora campo das letras; e de outras à espera de publicação.
acidentalmente copywritter na mccann/erikcson (90/92). |