Para Marx – hoje relançado, ao menos como analista dos sistemas económicos, indispensável à própria compreensão da lógica capitalista – o valor das coisas resulta do trabalho incorporado nelas. A raridade e as leis da oferta e da procura são subsidiárias. A génese do valor reside na quantidade do trabalho incorporado.
Dito isto - de forma tão simplista e superficial, claro – compete-me trazer aqui, então, o meu ponto de vista marxista (talvez fora melhor dizer marxiano) nesta matéria para falar de arte. Não porque politica ou filosoficamente o seja, marxista, mas porque essa formulação – perante a degradação do valor do trabalho incorporado no campo da criação e da produção artísticas – me parece oportuníssima!
A massificação da produção “artística” nas sociedades contemporâneas, longe de representar a democratização da criação artística (duvido mesmo que a criação em si possa ser democratizada) é um processo de degradação acelerada da produção artística. A ideia de que todos e cada um, sem preparação prévia, sem apetrechamento técnico específico e a mais das vezes sem sequer uma centelha de talento, pode expressar-se artisticamente (lá isso pode!) fazendo disso (isso é que não faz!) produto artístico é o maior inimigo de uma verdadeira democratização das artes, que é, deveria ser, o usufruto da criação de que apenas alguns – dotados, mas sobretudo preparados – são realmente capazes. Concursos como “Atreve-te a Cantar”, onde a mediocridade substitui qualquer critério de auto-exigência, muito têm contribuído, ao nível da população em geral, para fazer crer que a arte está ao alcance de todos e, pior – muito pior –, como resultado de mera vontade pessoal e, vá lá, uma pouca persistência, muita sorte e um estúpido sorriso de descontracção na execução da coisa!
Porém, se este fenómeno é próprio e “naturalmente” resultante de uma sociedade de consumo - em que a perversão não reside só no exagero do consumo em si mesmo, mas tanto ou mais na valorização da quantidade de consumo como factor de determinação da importância, grau ou estatuto da pessoa - é muito mais preocupante a tendência para contaminar certas elites com esta mesma praga ideológica, onde a “criatividade”, a “originalidade” ou a “imprevisibilidade” (que, a mais das vezes, é, afinal, tão previsível!) são a medida. Para fazer arte, à luz destes cânones pósmodernistas e conceptualistas, bastará o talento (duvidoso) que se atribui a esta ou aquela expressão. Sobretudo no domínio das artes plásticas e das artes performativas, sobretudo no teatro, porque no canto ainda vai valendo o desafinar e na dança pode partir-se uma perna…
Neste quadro o conceito marxista do trabalho incorporado como valor da mercadoria (ao caso artística) parece-me extremamente útil para ser recuperado e medir com materialidade objectiva o que é e o que não é arte. Eu, que nada sei de fotografia, posso ter a sorte (o acaso) de bater uma chapa absolutamente divinal, quiçá superior a uma de Sebastião Salgado, que isso não faz de mim um fotógrafo de arte. Porque onde em mim há acaso e arbitrariedade, nele, além da sensibilidade (muita), há o domínio das técnicas e, nestas, a prevalência de uma enorme quantidade de trabalho incorporado em anos de aprendizagem, aperfeiçoamento, treino. O que em mim pode ser, na melhor das hipóteses, expressão sensível de alma (aceite-se a terminologia romântica) num golpe de sorte, nele é procura, experimentação, decisão consciente.
É por isto que, muito sinceramente e sem preconceitos de modismos ignorantes, quando vejo umas pontas de cigarro dentro de um copo de água feitas “instalação artística” me rio a bandeiras despregadas, do mesmo modo que, embora não fazendo o meu gosto, respeito e me inclino perante o trabalho paciente, técnico e pormenorizado de um desenho do Medina. E é por ser tão flagrante este paradigma idiota que prevalece sobre o valor do trabalho incorporado e do trabalho incorporado como valor em arte que aqui resolvi trazer isto à liça…
De resto, bem lá no fundo, o desvario do capitalismo financeiro super-especulativo que o levou a si mesmo à mais estrutural crise económica de que há memória e para que, como o tempo mostrará, já não há remédio, é, em tudo identificável, no campo da arte, com a super-especulação de produtos inexistentes enquanto tal: um pseudo-objecto artístico resultante de arbitrariedade e do acaso de composições sem norma e sem trabalho incorporado é em tudo semelhante aos títulos do over-gambling dos “produtos” financeiros… Ambos – este no campo da economia e do material, aquele no campo da criação e do imaterial – são meras expressões da ideologia neoliberal, mesmo quando cuidadosamente travestida de preocupação social e/ou roupagem de uma certa esquerda politikamente muito correkta…
Saturado o mercado do vazio dos produtos de rendimento fictício, inflacionado, a partir de uma não-produção – leia-se de uma não-representatividade material: sem trabalho incorporado nem matéria prima concreta – seguir-se-à, mais tarde ou mais cedo, no domínio das artes um mesmo destino de esvaziamento desse “valor” de certos subprodutos artísticos. Em breve, estou absolutamente certo disso, a reflectir-se desde logo no carácter também especulativo das artes plásticas hodiernas; e, a prazo, na própria avaliação com que, actualmente ainda, estas manifestações “artísticas” são intelectualmente avalizadas pela crítica comprometida (comprometida com interesses e capelinhas) e por uns quantos decisores amigados com o poder político…
Criação artística sem trabalho incorporado, sem domínio factual de técnicas específicas, sem dispêndio de tempo e energias na preparação e na execução, criação artística não suportada em conhecimento próprio, é, quando muito, um ensaio de talento para um percurso artístico que só se pode fazer com suor e com tempo. O talento – indispensável, é certo – não é mais do que a faísca que incendeia todo o combustível que o trabalho é.
Muito prosaicamente, como dizia um velho electricista meu conhecido: “se o teatro desse choque não havia tanto malandro em cima de um palco!”…
|
(jorge) castro guedes
encenador, natural do porto, nascido em 1954.
fundador e director artístico do tear (1977/1989), estagiou com jorge lavelli no théâtre national de la coline (paris) na temporada 88/89, autor e apresentador do magazine teatral "dramazine" na rtp2, onde foi consultor de teatro (90/93).
encenador convidado no teatro nacional dona maria II, serviço acart/gulbenkian, casa da comédia, teatro aberto/novo grupo, teatro villaret/morais e castro, teatro villaret/raul solnado, cendrev, filandorra, teatro universitário do porto, cenateca, plebeus avintenses.
director artístico do cdv - centro dramático de viana, companhia profissional residente no teatro municipal sá de miranda (viana do castelo).
professor convidado da escola superior de teatro e cinema (lisboa), escola superior de música e artes do espectáculo (porto), escola superior artística do porto, academia contemporânea do espectáculo (porto), convenção teatral europeia (lisboa), escola superior de hotelaria e turismo do estoril.
autor de "à esquerda do teu sorriso", peça em um acto, editora campo das letras; e de outras à espera de publicação.
acidentalmente copywritter na mccann/erikcson (90/92). |