Se a liberdade de expressão foi um ganho enorme nas
artes com o 25 de Abril, abolindo-se a censura política, depressa se
formou, aceleradamente a partir da década de 90, uma outra forma de
censura que, lentamente, no teatro (que é do que eu sei e quero falar)
tem aniquilado essa liberdade de expressão. E isto ao mesmo tempo em que
à “Política do Espírito” de António Ferro não sucedeu nenhuma verdadeira
estratégia cultural realmente democratizante. Com uma ou outra
intervenção, efémera e logo desfeita por outros ministros, este ou
aquele destes tentou elencar prioridades, programas e estruturar um
sistema mais ou menos objectivo. Mas no essencial são os “serviços” (e
mais do que estes aqueles de quem estão ao serviço de interesse e gosto
particular no aparelho de Estado ou num “pseudo-contra-poder” instalado
em parte da comunicação social e de institutos e instituições
corporativas mal disfarçadas) que têm dominado e determinado a
repartição de verbas e a colocação estratégica de directores,
presidentes ou técnicos dos institutos e direcções-gerais, que se
sucedem com nome diferente.
Habilidosamente posicionados individualmente numa
esquerda radical – à esquerda dos partidos do arco do poder, para fazer
sentir a este “complexos” e “culpas” de passados e teias de
cumplicidades de alguns dos seus dirigentes – surgem os “opinion makers”
a demonstrar um apetite voraz por uma política de exclusividade do gosto
em detrimento de uma política estruturada e estruturante efectivamente
cultural. O paradoxo é total: o Estado demite-se de ter uma Política
Cultural (boa ou má), mas atende e deixa-se levar por decisões de
“júris” ou conselheiros e assessores que pouco mais conhecem do que o
que está mais ou menos na moda e/ou com quem privam numa certa
promiscuidade de interesses, amizades ou mesmo que seja de meros
alinhamentos de gostos.
Claro que eu estou certo, certíssimo, que um dia,
sendo a direita poder, influenciada pelo lado contrário da mesma moeda,
em nome de um ultra-liberalismo mais ou menos caceteiro, vai-se fechar a
comporta dos subsídios a eito, facilmente explicando com números à
opinião realmente pública (não necessariamente coincidente com a
publicada) a inutilidade e custo de “gastos supérfluos” com um sector de
alcance reduzido e nulo enraizamento na comunidade. E nessa enxurrada
irão todos na chusma. O caso paradigmático no teatro da autarquia
portuense sob a batuta de Rui Rio é apenas a amostragem do efeito do
cansaço da estúpida e inconsequente dispersão de verbas e ausência de
critérios culturais da vereação antecessora que se “orgulhava” da
atomização (de criação de grupos e de públicos cada vez mais reduzidos)
que provocou no Porto com uma política de muito pouco a muitos e a
aceitação passiva da irrentabilidade social dos resultados obtidos.
Isto - a par da tentação pelo evento na vez da
consolidação de trabalhos continuados e do maravilhamento pelas
megalomanias de projectos de luxo nos grandes centros sem que haja
aquele outro trabalho de formiguinha no todo nacional – tem feito com
que o Estado se comporte totalitariamente em matéria de gosto (ditado
por outros, que nem ele!) e se demita em absoluto de estabelecer de
forma clara e inequívoca as matrizes, os meios e os objectivos de curto,
médio e longo prazo para a nossa vida cultural. Pois, ai Jesus, que isso
é que era um atentado às liberdades… Mas não! O Estado e o os Governos
sufragados têm o direito e mais do que direito o dever de estabelecer
metas, fiscalizar, escolher e traçar caminhos em vez de ir a reboque de
meras considerações e apreciações de gosto. No gosto é que não se
deveria meter e objectivamente mete. Vivemos, de facto, uma ditadura
feroz das preferências pessoais dos “donos” da cultura e uma completa
ignorância do que se faz e se obtém com outros agentes menosprezados
numa anarquia e num caos completo de uma verdadeira Política Cultural.
Francamente não sei – duvido muito que sim – se há
conserto a tempo para este estado de coisas, mas à nova ministra fica
aqui dado um ponto de vista diferente antes que certos “tubarões da
opinião feita” a engulam na insaciabilidade de mais para o mesmo… que
são eles mesmos auto-comprazendo-se no aplauso fácil de uns aos outros e
de costas viradas para uma real transformação cultural das populações.
Para já conta com o meu natural e obviamente necessário benefício da
dúvida. Até porque às vezes – talvez ilusão – ainda me alimento da
esperança que o 2º Governo de José Sócrates decida enfrentar os lóbis
deste sector com a mesma coragem com que o fez relativamente a outros,
até mais poderosos, no 1º Governo. Porque afinal eles são, citando
extravagantemente Mao-Tsé-Tung, “tigres de papel”.
Castro
Guedes
Encenador |
(jorge) castro guedes
encenador, natural do porto, nascido em 1954.
fundador e director artístico do tear (1977/1989), estagiou com jorge lavelli no théâtre national de la coline (paris) na temporada 88/89, autor e apresentador do magazine teatral "dramazine" na rtp2, onde foi consultor de teatro (90/93).
encenador convidado no teatro nacional dona maria II, serviço acart/gulbenkian, casa da comédia, teatro aberto/novo grupo, teatro villaret/morais e castro, teatro villaret/raul solnado, cendrev, filandorra, teatro universitário do porto, cenateca, plebeus avintenses.
director artístico do cdv - centro dramático de viana, companhia profissional residente no teatro municipal sá de miranda (viana do castelo).
professor convidado da escola superior de teatro e cinema (lisboa), escola superior de música e artes do espectáculo (porto), escola superior artística do porto, academia contemporânea do espectáculo (porto), convenção teatral europeia (lisboa), escola superior de hotelaria e turismo do estoril.
autor de "à esquerda do teu sorriso", peça em um acto, editora campo das letras; e de outras à espera de publicação.
acidentalmente copywritter na mccann/erikcson (90/92). |