Passei pelo Porto, onde comecei,
rapidamente por Paris, por Lisboa (convidado várias vezes e residente 4
anos), e acabei por me instalar em Viana do Castelo, onde até já tinha
estado antes, além de deambulações que fiz por outras terras, quer como
encenador, quer no palmilhar de continente e ilhas com um magazine de
teatro na rtp2. Esta opção, embora em certos momentos com hesitações e
várias contrariedades e contradições, faz-me sentir muito bem. Desde
logo porque tenho o privilégio de trabalhar num dos mais belos edifícios
de teatro portugueses, o Sá de Miranda. Mas também pelo público que aqui
vou tendo e, mais que tendo, sentindo e vendo crescer: quantitativa e
qualitativamente. E sobre tudo isto venho reflectindo imenso.
Vividas e vencidas diversas crises, a
companhia que dirijo, o Centro Dramático de Viana (www.centrodramaticodeviana.com),
aparte as terríveis carências financeiras com que se debate (o dobro das
que as outras em idêntica situação têm por estar financiada a metade de
semelhantes estruturas) e que comprometem a prazo a sua continuidade,
vai tendo uma vida pública muito saudável. Principalmente de há 5 anos
para cá, quando afinou estratégias, definiu objectivos e “cientificou”
métodos e análises, com inquéritos, estudos estatísticos, análises
especializadas e mesmo contratação de especialistas. E é, extrapolando,
disso que eu quero falar, partilhando-o como reflexão sobre o teatro na
Província em geral.
Assim e previamente quero posicionar-me
dizendo que sou dos que entendem que o teatro é tanto mais rico quanto
mais diversificado for: quer no plano estético, quer no plano produtivo.
E que a cada situação mais concreta corresponderá, necessariamente, uma
estratégia mais adequada. Todavia, julgo eu, há traços gerais que para o
que aqui vou chamando o teatro na Província se pode sobredeterminar ou
predeterminar.
Falo de cidades pequenas ou médias, excluo
os grandes centros ou cidades e zonas limítrofes deles, bem como casos
específicos de experimentação, pesquisa ou qualquer outra orientação
(comunitária ou artística) situados “por acaso” fora de um grande centro
ou da sua malha (sub)urbana. E falo do que me parece (dever) ser o eixo
central de uma vida teatral na Província. Não de um modelo exclusivo ou
totalizante, todavia o que deveria ser a coluna vertebral de um serviço
público de teatro. Ou seja os “centros dramáticos” (com esta ou outra
designação) que deveriam existir, mas que na prática se vão fazendo
substituir na medida do possível por estruturas privadas
(sub)financiadas.
É que tenho para mim que a intervenção
estatal (seja da administração central, seja da local) no terreno da
arte e da cultura se faz primordialmente e prioritariamente em direcção
ao usufruto da cultura e da arte por parte da comunidade. Pelo menos eu
considero-me muito mais um depositário dos dinheiros públicos do que um
avençado de um mecenas chamado Estado… Não estou à espera da tença do
Príncipe, mas sim ao serviço de uma comunidade a quem retorno em bens
culturais o investimento feito por via dos impostos.
Ora, pré-estabelecidas estas coordenadas –
e com a salvaguarda do reconhecimento e pleno direito às excepções, mas
como excepções e não como regra -, sou a pensar que o teatro na
Província deve ter uma forte componente pedagógica: de captação e
formação de públicos. O que, de maneira nenhuma – bem antes pelo
contrário -, quer dizer de mero entretenimento ao sabor de modas
popularuchas ou de duvidoso gosto ou mesmo tradição passadista.
Pedagógica justamente nessa dupla função: de captar e de formar
públicos.
Um teatro divorciado da sua própria
comunidade não terá qualquer eficácia por não chegar a ela. Um teatro
afinado pelo gosto reinante não terá qualquer eficácia por nada
acrescentar a essa comunidade. No primeiro caso será um exercício
onanista, no segundo um entretém civicamente desresponsabilizado. Agora
a medida entre uma e outra coisa é, reconheçamos, por vezes ténue e nem
sempre isenta de exageros para um lado ou para o outro seu oposto. Todo
o cuidado é pouco, toda a atenção tem de ser muita. Toda a flexibilidade
na apreciação imensa, toda a firmeza no comportamento dos agentes sempre
presente.
Dito isto direi também que um modelo
estético único num teatro na Província é completamente inadequado. Num
grande centro urbano ou suburbano, em que há toda uma rede diferenciada
de modelos estéticos, uma companhia ou grupo que repete à exaustão a
mesma estética ou mesmo estilos pessoais de um mesmo encenador não faz
mal nenhum, porque se dilui justamente nessa diversidade que existe, não
comprometendo a liberdade que representa a variedade da oferta. Numa
estrutura de produção na Província fácil é perceber que o inverso é que
é verdadeiro. Diversificar estética e estilisticamente a produção
artística, concorrendo preferencialmente com a chamada de vários e
distintos criadores de forma mais ou menos regular, é, do meu ponto de
vista (e escuso doravante repetir que tudo quanto diga é, obviamente, do
meu ponto de vista), uma necessidade imperiosa.
Todavia, por contraponto, direi também que
a manutenção por períodos mais ou menos alargados (10 a 20 anos no
mínimo dos mínimos), de uma(s) corrente(s) estética(s) recorrente(s) é
de uma complementaridade absolutamente necessária também. No sentido em
que vai “instruindo” o espectador na descodificação dos sinais
propostos.
A diversificação contribui para o alargar
de horizontes do espectador, a recorrência aumenta a eficácia pedagógica
na compreensão da própria gramática teatral no seu conjunto.
Porém, esta diversidade não se completa na
variabilidade estética. Pede igualmente a variabilidade de públicos,
quer por forma a cobrir generalizadamente a comunidade sociologicamente
considerada, quer a passagem (crescimento, evolução) dos públicos
captados no grau de exigência e conhecimento do objecto artístico. Quero
dizer da necessidade de caminhar de braço dado com o público: nem o
deixando ficar para trás pelos nossos passos serem demasiado longos, nem
ficando nós parados pela sua recusa em caminhar…
Realizar frequentemente (no nosso caso
fazê-mo-lo assumidamente uma vez por ano, mas julgo que isso depende de
cada terreno concreto) produções mais acessíveis (mais ligeiras mesmo,
se e quando necessário, desde que não totalmente despidas de pedagogia e
preocupações culturalizantes), a par de outras de “maior grau de
dificuldade”, mas ainda assim perceptíveis, é um excelente caminho. Que,
de resto, não vejo por que não possa – não possa e não deva – ser
complementado com incursões (mais pontuais) em domínios de nichos de
públicos: seja por produção própria, seja por acolhimento de outros.
Garantir a circulação de públicos do
concelho exterior à cidade propriamente dita – e mesmo ao concelho –
parece-me igualmente útil e (quase) obrigatório. No nosso caso temo-lo
feito, ultimamente, na inversão da tradicional lógica de itinerância.
Começámos – e assim o fizemos ao longo de mais de 15 anos – por ir aos
locais com produções adaptáveis a espaços por vezes verdadeiramente
inacreditáveis do ponto de vista técnico, mas agora procuramos inverter
a lógica trazendo esses públicos – organizadamente(1) – ao edifício próprio para o teatro, onde a dotação técnica
do espaço permite um usufruto qualitativamente mais elevado da produção
e o bem-estar do cidadão-espectador é também melhor.
Mesmo assim, parece-me (aqui não me sinto
absolutamente seguro), que sectores como estes públicos rurais ou
semi-ruralizados carecem de uma acção de animação sócio-teatral
complementar: seja na área da formação (oficinas para amadores e/ou algo
de semelhante, colóquios, intervenções de poesia ou histórias
dramatizadas, etc.), seja na da própria produção de espectáculos, ainda
que estes o sejam espaçadamente (2 a 3 anos).
Do mesmo modo – a par da procura de
“arrastar” de forma organizada(1) até ao teatro públicos juvenis através da
escola para produções não delineadas “obrigatoriamente” para eles -,
julgo que a vertente sócio-teatral na escola - com carácter recorrente,
regular, continuada no tempo – é indispensável. O sector do público
juvenil, até por ser componente putativa de públicos futuros, é de
primordial importância para uma companhia de teatro na Província. (Eu
acho, com efeito, que não só na Província, mas nos grandes meios é
possível e talvez desejável que o espaço seja ocupado por gente que na
matéria se especialize).
Também do mesmo modo, mas com um grau de
exigência que justifica e pede a produção de um espectáculo em formato
normal e preferentemente exibido na sala convencional onde os adultos
vão, para a infância. “Agarrar” este público de forma continuada e
regular é estratégia que, na Província, não se pode em circunstância
alguma ignorar ou desprezar.
Mesmo reconhecendo a extrema sensibilidade
do assunto – que se deve lidar ainda com mais “pinças” do que quando se
trata de teatro para adultos ou mesmo públicos juvenis – e,
consequentemente, o quanto desejável seria que o mesmo pudesse ser feito
exclusivamente por especialistas, não subscrevo de maneira nenhuma a
tese de que é, por isso, dispensável. Procurando-o fazer com dignidade,
certos cuidados pedagógicos e com o mesmo rigor, custos de produção e
empenho que o mais teatro, melhor ou pior tem mesmo de ser feito.
Ora, muito bem… Ditas estas coisas sobre a
produção artística, compete-me ainda fazer notar mais duas ou três
coisas essenciais…
O acolhimento pode – e deve – ser um meio
de alargar a confrontação dos públicos com um maior número de estéticas
e estilos, mas também de garantir a cobertura de nichos de mercado que,
pela sua exiguidade quantitativa, não “permitem” que se gaste tempo e
meios com produções próprias. E este acolhimento tanto pode ser com a
organização de festivais, quanto com um programa regular desencadeado
durante o ano. E se houver condições (públicos e dinheiros) para juntar
as duas coisas, tanto melhor…
Agora substituir uma companhia residente
por uma política de acolhimentos não tem de todo da mesma eficácia. Uma
companhia de residência não só garante (pela permanência em cena de cada
uma das produções) uma muitíssimo maior cobertura de pessoas em concreto
a verem teatro (2),
como é a única forma de ter uma acção de repertórios e estratégias de
formação cultural estruturada e estruturante. A “visita” de sucessivos
grupos ou companhias, além do mais, não acrescenta nada a uma caminhada
que se tem de fazer, paulatinamente, com os públicos e não na passagem
por uma terra indiferenciadamente...
Salvo se em residências temporárias, mas
regulares, quem faria, nessa opção todo esse trabalho de animação
sócio-teatral? Quem serviria de apoio e rectaguarda ao crescimento – ou
mesmo aparecimento – do teatro de amadores ou de grupos
profissionalizantes especializados em outras valências teatrais? Quem
estudaria, afinal, e serviria a própria comunidade? Quem desencadearia
acções de formação técnica? Quem reflectiria a e na realidade local?
Quem iria “buscar” organizadamente os públicos mais recuados
culturalmente e mesmo geograficamente? Quem se disponibilizaria para
realizar 20 ou 30 sessões gratuitas para as crianças? Quem realizaria
trabalho específico na e com a escola? Quem “acudiria” em “encomendas”
locais de dramatizações e animações temáticas? Quem disponibilizaria
gratuitamente uma sessão (ou mais) para a terceira idade? E mesmo quem
contribuiria, mesmo que modestamente, para a vida económica local com
rendas de casas, mercearia, talhos, água, luz e materiais cenográficos,
guarda-roupa, postos de trabalho? Quem, quem, quem…?
Entretanto, outros problemas – de foro
“interno” – se levantam a uma companhia de teatro na Província. Digo,
por exemplo, a gestão de elencos. Porque se por uma parte a inexistência
de um elenco artístico fixo inviabiliza a circulação (geográfica e mesmo
de ano para ano) das produções, a manutenção muito longa dos mesmos
elencos “cansa” e desinteressa os espectadores… Combinar, em soluções
mistas, ambas as coisas é, em si mesmo, uma outra arte que se pede às
direcções artísticas na Província. No nosso caso – pelo menos no plano
ideal porque a assunção plena é impedida pela manifesta insuficiência de
verbas – optámos por ter bases de 5 ou 6 actores por períodos de dois ou
três anos, renovando-os a 25% a 50% anualmente -, chamando “à peça”
outros actores para produções que sabemos antecipadamente terem uma
carreira balizada em períodos de tempo mais curtos.
Também em termos de divulgação há
especificidades, sendo que – por excepção e só por questão de prestígio
– o recurso a meios de massas nacionais (sobretudo tv) são deslocados na
equação custo/benefício. Aqui, ao contrário dos grandes centros, a
Província tem menos custos. Um mailing geral para a cidade é
economicamente comportável e a afixação de 40 ou 50 mupis (ou 100 que
sejam em cidades maiores) e 4 ou 5 outdoors (10 que sejam) mais umas
centenas (uns milhares mesmo) de cartazes de montra e umas tantas
distribuições de flyers em pontos nevrálgicos garantem uma cobertura
comunicacional bastante visível. Em Lisboa ou Porto estes números
diluíam-se sem qualquer presença no conjunto das muitas campanhas
publicitárias diversas que “poluem” o espaço urbano…
Já em contrapartida, na contratação da
“mão de obra” os custos na Província são muitíssimo maiores. Um mesmo
actor a quem em Lisboa se possa pagar um vencimento de 1000 euros porque
o completa com rádio, tv, dobragens, publicidade, aulas… na Província
nem por 2000 se arrisca a vir por, quanto mais não seja, ao fim de uns
meses fora da capital se arriscar a perder essa rede de contactos que
lhe garantem vencimentos paralelos. Neste ponto a única vantagem na
Província é o dispor dos actores a 100%, podendo imprimir um ritmo de
produção integralmente profissional ao que, na maioria dos casos, em
Lisboa se está na verdade a fazer semi-profissionalmente. Masque, como é
bom de ver, não resolve a impossibilidade de fazer os tais contratos
desejados…
Em desvantagem também ficará, na
comparação grandes centros/Província, esta última se falarmos da
necessidade de praticar bilhetes a “preços sociais”. Porque se em boa
verdade todo o teatro financiado o faz (o custo real de um bilhete de
teatro andaria por 60, 80 ou 100 euros), na Província a bilheteira é
obrigatoriamente mais fraca: quer em número potencial de espectadores
por produção, quer no preço individual que se pode praticar face às
debilidades do tecido sócio-económico a quem se dirige o espectáculo.
Até porque, em última análise, a “compra” do bem (serviço) cultural está
muito longe de estar enraizada, quanto mais não seja porque o teatro é
um fenómeno recente comparativamente a Lisboa e mesmo ao Porto no hábito
dos cidadãos.
Bem, e muita outra coisa haveria a dizer,
mas o artigo vai já longo e, como se diz numa peça de Marivaux, quando
os espectadores de um teatro dentro do teatro estão supostamente
fatigados, “fiquemos então hoje por aqui”…
Castro Guedes, encenador
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