Longe de mim propor-me dissertar sobre as questões pedagógicas no ensino do teatro. A minha breve e esporádica passagem como professor convidado no ensino superior e no ensino técnico-profissional não só não me habilita para tal, como foi feita apenas em complementaridade da minha actividade principal: a de encenador. É nessa qualidade e com a experiência de direcção artística de estruturas de criação e produção teatrais profissionais que aqui vêm estes comentários.
Ainda há umas poucas dezenas de anos, apesar do Conservatório desde Garrett, a maioria dos profissionais de teatro em Portugal vinham do teatro de amadores. Exemplos ainda hoje no activo atestam da boa não-escola que essa escola também foi. Mas o tempo é outro e eu mesmo, apesar de vir daí, enquanto director artístico de uma companhia, privilegio – quando não exijo mesmo – as habilitações académicas aos candidatos aos elencos.
Nas mais recentes gerações que hoje temos há aspectos particularmente positivos: para lá da inclusão de cursos de cenotecnia nas escolas, os actores – que é o que aqui me traz - dominam alguns “instrumentos” antes desvalorizados ou esquecidos, notando-se um muito maior adestramento corporal e o conhecimento básico de técnicas específicas, tal como acrobacia, por exemplo. Mas é do outro lado, do que me parece desacertado, que valerá a pena reflectir: o que está bem é deixar estar…
Em geral há uma “moda” que passa pela não preparação específica para os teatros ditos convencionais (as salas à italiana), que são o lugar por excelência para a prova das verdadeiras aptidões de um actor: projectar a voz sem perda das inflexões, transmitir sentimentos e emoções para o espectador lá na última ordem de camarotes ao fundo, saber abrir a figura para o público (ser visto), redesenhar movimentos e expressões íntimas em escala não intimista… são coisas fundamentais, básicas, que se perderam. Como se perderam memórias e conhecimentos do teatro português em particular e o léxico de base (esquerda alta, cruzar, ficar inferior, ir a 2, etc.), utilíssimo para a comunicação do encenador para o palco.
Igualmente lacunar é, do ponto de vista da História Universal do Teatro, os formandos virem tão desinformados em termos dos grandes movimentos e épocas, autores, tendências e géneros, parecendo mesmo por vezes que apenas reconhecem nomes também de “moda” como Sarah Kane enquanto Ésquilo soa-lhes a coisa estranha!
Por outra parte o work in progress – tendência dominante – tem, de facto, algumas vantagens. Mas a preparação paciente, persistente e continuada de disciplinas “clássicas” e “regras” ou os conhecimentos práticos universais de base estão subalternizados. É pena: ver actores a sibilar os “ss” ou actrizes que não sabem andar de salto alto.
De resto, tenho para mim que a missão principal de uma escola de teatro é dotar os candidatos a actores de técnicas básicas e conhecimentos gerais abrangentes para a prática, também ela abrangente, com escolhas individuais posteriores – escolhas ou aproveitamento de oportunidades reais de “mercado” – já na profissão. “Conformatá-los” a estéticas, correntes ou preferências contemporâneas – muitas delas naturalmente passageiras e de que ninguém se lembrará no futuro - parece-me muito mau.
Aliás, no que há profissão respeita, a inexistência de uma regulamentação clara de certificação profissional tem contribuído para um “universo de disparates” que fazem com que a própria formação académica esteja desvalorizada. Mas esta questão – a do estatuto e da certificação profissionais – do actor daria pano para mangas para um outro artigo por si só. No caso, porém, só queria sobre isso acrescentar o seguinte: sou de entender que à formação académica deveria ser mesmo acrescentado um estágio profissional obrigatório para a obtenção final dessa certificação.
Por último um breve “recado” de natureza político-administrativa para o Ministério da Educação: é mesmo grave (no caso vertente do teatro, claro) que não esteja devidamente definida e parametrizada a diferença entre o ensino técnico-profissional e o ensino superior, provocando ruído e distorção nas próprias aprendizagens, que se confundem e não, como deveria ser, se complementem. |
(jorge) castro guedes
encenador, natural do porto, nascido em 1954.
fundador e director artístico do tear (1977/1989), estagiou com jorge lavelli no théâtre national de la coline (paris) na temporada 88/89, autor e apresentador do magazine teatral "dramazine" na rtp2, onde foi consultor de teatro (90/93).
encenador convidado no teatro nacional dona maria II, serviço acart/gulbenkian, casa da comédia, teatro aberto/novo grupo, teatro villaret/morais e castro, teatro villaret/raul solnado, cendrev, filandorra, teatro universitário do porto, cenateca, plebeus avintenses.
director artístico do cdv - centro dramático de viana, companhia profissional residente no teatro municipal sá de miranda (viana do castelo).
professor convidado da escola superior de teatro e cinema (lisboa), escola superior de música e artes do espectáculo (porto), escola superior artística do porto, academia contemporânea do espectáculo (porto), convenção teatral europeia (lisboa), escola superior de hotelaria e turismo do estoril.
autor de "à esquerda do teu sorriso", peça em um acto, editora campo das letras; e de outras à espera de publicação.
acidentalmente copywritter na mccann/erikcson (90/92). |