CASTRO GUEDES, encenador

Crónica de Natal  e Presépio em 2009

 

quem sabe o que é o Natal?

dos anjos? dos passarinhos? dos sinos? dos azevinhos?

ou de um et coetera e tal

que vem por bem ou por mal em festa do eterno início?

 

desse início-recomeço festa ao rés do precipício

das passadas que não meço nem se me dá de ser vício

mas que não seja só prendas

daquelas com que pretendas dar sustento ao artifício

 

eu gosto dela quentinho

com boa mesa – bom vinho – amizades e carinho

e ter no fundo a certeza de que o universo todo

no desconcerto é certinho

 

muito lamento entretanto que o Homem-do-saco

o tal

sendeiro – bruxo – macaco

que me atormentava tanto em pequeno – vejam lá

ao crescer é o Pai Natal

hipotecando-me em prendas o dia que lá virá

 

no presépio o burro afoito de tanto correr no emprego

está com as pernas num oito

arfando desassossego

 

e sorte tem ele

vereis

pois que a ovelha – coitada – sem emprego nem dez reis

deixou no prego os aneis p’ra dar aos filhos consoada

depois de tanto mungida

depois de tão tosquiada

 

talvez com usurpação

de nome que se daria ao cordeiro do Senhor

um dos tais filhos da dita

que no meio da desdita lá chegou a ser doutor

com Bolonha de permeio

bacharel – licenciado – pós-graduado – mestrado

é hoje uma mais-valia por elevada função

de caixa em supermercado

 

a vaca palhas rumina e teme a avaliação

que penalize auto-estima

ou que lhe apouque a pensão

 

mais ao fundo os três reis magos

aos camelos dão afagos aprestando-se à viagem

pois os camelos – coitados – com dois dedos de forragem

cobrem caminhos sem fim sem gasóleo nem portagem

 

 

São José

Virgem Maria

trocando olhares entendidos da miséria dia-a-dia

em que se encontram perdidos na busca do que não há

pensarão porque se adia a ida pr’ò Canadá

ou para a Austrália quiçá

na ânsia de um novo dia

que lhes traga a alegria de viver que não há cá 

 

já o Menino Jesus

antevendo milagreiro essa desgraça de truz

de vir a morrer na cruz por ser ele o agnus dei

ou só por ser carpinteiro

pensa com as suas palhinhas na play-station brincando

na perdição das alminhas que se deixam ir tentando

compradas por sucateiro que faz das prendinhas lei

 

brilhante só a estrela

que brilha e brilha e rebrilha como se o mundo fosse ela

aparece na tv essa magna maravilha

dando o corpo aventureiro em fugaz telenovela

consta até que tem prevista

uma carreira de artista e romance com banqueiro

esse nem está neste enredo

tem um consórcio com o medo – outro com a alta finança

vende presépios a eito – compra armamento sem jeito

sempre em favor da criança (tem lá por casa dois netos…)

importa fatos de treino – carros – pessoas – faiança

negoceia sentimentos – dá de barato os afectos

para cumprir o preceito: «venha a nós o vosso reino»

que mais dia menos dia salvará a economia

 

que fazer? bradar aos céus?

renas por cá? ora adeus

frango capão – bacalhau – polvo – peru do Natal

estes sim são cá dos meus

 

rabanadas – aletria – se calhar uma filhó

bem regadas de alegria

em memória de uma avó que sem ela eu nem seria

 

com um abraço aos amigos que hão-de ficar contentes

e um outro aos inimigos mesmo com ranger de dentes

que bem visto é como os figos

mesmo sem flor dão sementes

 

quanto ao mais – concidadãos

aprendei a dar as mãos contra o que der e vier

que p’lo Natal sois irmãos

e o Natal sempre vem – disse-o um poeta tão bem

quando algum homem quiser.

                                       Boas Festas e Feliz Natal!

- Jorge Castro
17 de Dezembro de 2009

(jorge) castro guedes
encenador, natural do porto, nascido em 1954.
fundador e director artístico do tear (1977/1989), estagiou com jorge lavelli no théâtre national de la coline (paris) na temporada 88/89, autor e apresentador do magazine teatral "dramazine" na rtp2, onde foi consultor de teatro (90/93).
encenador convidado no teatro nacional dona maria II, serviço acart/gulbenkian, casa da comédia, teatro aberto/novo grupo, teatro villaret/morais e castro, teatro villaret/raul solnado, cendrev, filandorra, teatro universitário do porto, cenateca, plebeus avintenses.
director artístico do cdv - centro dramático de viana, companhia profissional residente no teatro municipal sá de miranda (viana do castelo).
professor convidado da escola superior de teatro e cinema (lisboa), escola superior de música e artes do espectáculo (porto), escola superior artística do porto, academia contemporânea do espectáculo (porto), convenção teatral europeia (lisboa), escola superior de hotelaria e turismo do estoril.
autor de "à esquerda do teu sorriso", peça em um acto, editora campo das letras; e de outras à espera de publicação.
acidentalmente copywritter na mccann/erikcson (90/92).