TEC - Teatro Experimental de Cascais

A Boba. Programa
Teatro Experimental de Cascais, Estoril, Março de 2008
Mas… não a tinham assassinado?

Afirmam que sim. Mas a verdade é que, 653 anos após a, sabemo-lo hoje, fictícia data da morte da dama galega, a morta mais viva da cultura portuguesa regressa ao nosso convívio em mais uma renovada perspectiva.

A história de Inês já foi contada e recontada de muitas e variadas formas: do ponto de vista de D. Pedro, de D. Constança, de Afonso IV, de servos e criados, de Afonso Madeira, de Afonso Coelho... Inês vive ainda na poesia, na ópera, no cinema, na prosa, na escultura, na pintura, no teatro, mais viva que morta, actuante e de ímpar importância na lusa forma de amar.

“A História é uma ficção controlada”. Será? Ou será que a lenda tomou há muito o lugar da História na forma como nos faz chegar os ‘factos’ que envolveram a Colo de Garça?

Diz-nos a História, pela pena do Conde de Sabugosa em História Genealógica, que D. Beatriz mandou “a Maria Miguéis anã, trezentas livras” em testamento. E é essa boba, essa figura menor em vários sentidos que Estela Guedes escolhe alcandorar à posição de, mais do que protagonista, motor de uma história que todos afirmamos conhecer. Conhecemos?

A figura desprezada e socialmente insignificante “também tem direito à História”, proclama a certo momento. À que viveu, à que afirma ter decidido. Foi ela, a pessoa usada por todos qual objecto de uma domesticidade quotidiana, que se deixa em testamento aos filhos, quem puxou, afirma, os cordéis de um assassinato que marcaria até hoje a face da cultura portuguesa.

Percorrendo tempos e vozes, atravessando perspectivas várias, a Miguéis – pois assim se chama - apresenta-se perante os nossos olhos para repor a inesperada verdade de um feito que todos pretendemos conhecer tão bem.

Dominando um espaço que a outros pertence, a um tempo visível aos nossos olhos e invisível aos dos seus contemporâneos, a margem de manobra e capacidade de manipulação de que afirma gozar revelam-se muito para além do que estaríamos à espera. Minúscula num mundo gigantesco, vivendo perto dos grandes com a função de os entreter e a quem é permitida uma liberdade de expressão imperdoável noutros casos, é a um tempo espelho e agente de acções cuja responsabilidade a outros pertence. Sem nunca fazer concessões, goza do privilégio – que o estatuto de louca/boba tristemente concede – de lhe ser permitido colocar à verdade à frente dos olhos de (quase) todos, mantendo-se apartada dela: “Não sou igual a vós, não reproduzo os vossos valores.”

O ser repelente e usado é também senhora de emoções que revela: crítica em extremo perante o poder, revela uma afeição sincera pelas suas três senhoras – Beatriz, Inês e Teresa Lourenço – que a tomaram por companheira. É com lucidez que olha para os bastidores do poder, uma vez que lhes conhece as fraquezas e os podres. Com a mesma lucidez analisa-se e expõe-se aos nossos olhos no que tem de mais ridículo. Inveja e ciúme das três mulheres junto de quem viveu? De Inês provavelmente, sim. Mas não é com amargura que Miguéis fala dela: é com carinho, com pena, com uma atitude calorosa que encontra na recordação dos dias felizes da Atouguia a expressão mais clara.

Pessoa levada ao limite da sua resistência pelo pouco caso que dela fazem, Miguéis vem reivindicar o seu lugar na História. O lugar que lhe pertence, afirma. E reduzir à sua insignificância de joguetes da Fortuna os grandes que, a seu tempo, julgaram dominar o mundo: “Dou-vos gozo com o punhal da língua…”

Fiquemos então com a Miguéis que, vinda do caixote da reciclagem, se senta, senhora e dona, no ponto de controlo de toda a situação, antes de voltar ao nada de que veio.

Maria João da Rocha Afonso

Teatro Mirita Casimiro / Teatro Experimental de Cascais
Cruzeiro- Monte Estoril
Tel.: 214670320
E-mail: t.e.c@netcabo.pt 
www.tecascais.org

encenação Carlos Avilez
Dramaturgia
Maria João de Rocha Afonso
Realização plástica
Fernando Alvarez
Canções originais
Luís Pedro Fonseca
Coreografia
Natacha Tchitcherova
Consultadoria de prestidigitação
Fernando Marques Vidal
Fotografias de cena e cartaz
Susana Paiva
Luminotecnia e direcção de montagem

Manuel Amorim
Sonoplastia e montagem Augusto Loureiro
Contra-regra e montagem Rui Casares
Assistência de ensaios Jorge Saraiva

MARIA VIEIRA em A Boba

de Maria Estela Guedes

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