TEC - Teatro Experimental de Cascais

A Boba. Programa
Teatro Experimental de Cascais, Estoril, Março de 2008
Outros tempos
“Inquéritos médicos às genealogias reais portugueses (Avis e Bragança)”

As responsabilidades políticas da realeza começavam a criar nas raças reais um fundo de excitabilidade nervosa. A organização cerebral apurava-se, requintava e perdia em poder de resistência. Depois, vinham as perturbações nutritivas nascidas duma alimentação defeituosa, duma vida que se começava a «queimar pouco». Daí, desordens braditróficas, perversões de nutrição. O artritismo, diátese da realeza, fixou-se. Os reis envelheciam «revoltos de carne» e calvos. A polisárcia de Afonso II apenas lhe permitia, mesmo na guerra, o uso dum simples saio de escarlata. Morreu de lepra, - talvez de sífilis. Abusava da carne e do vinho, - que abundava. Os nossos reis comiam devoradoramente. Afonso III quis regulamentar a sua mesa, naturalmente por indicação de Magister Petrus ou de Magister Bartholomeus, físicos palatinos, e impor-se um regimen dietético: «que na cosinha del Rey non adubem senon de duas carnes, e a huma seja de duas guizas e aquesto seja em o paço». O próprio D. Pedro I «era muyto viandeiro, suas salas eram de praça em todos lagares per onde andava, fartas de viandas». Nem a terapêutica religiosa do jejum lhes valia. Entretanto, a consanguinidade começava a ser matéria comum nos cruzamentos reais. Algumas vezes, por necessidade política, os casamentos faziam-se com manifesta diferença de idades. Afonso III tinha quarenta e tantos anos quando consumou matrimónio com Beatriz de Gusmão, «a rainha rabuda», que apenas completara os treze. Foi quase um crime. D. Dinis, produto desta união, escolheu para mulher uma pobre infanta taciturna, doente, cheia de alucinações, de perturbações nervosas, - neta paterna de Santa Izabel da Hungria, terceira neta materna de Humberto III, o Santo, de Sabóia. Essa Infanta, tão digna de respeito pela sua doença e pela sua incomparável bondade, foi Santa Izabel de Portugal. As nossas raças reais começavam a degenerar. O segundo génito desta união, Afonso IV, era uma criatura violenta, sombria, quase lúgubre, absorvida no delírio da razão de Estado. Casou com uma segunda prima, D. Beatriz, muito devota de S. Francisco, sempre rodeada de frades, de capelães, inteiramente dominada pelo confessor, o franciscano frei Estêvão da Veiga. De novo o sangue de Izabel da Hungria, de Fernando o Santo de Leão. Acusa-se já a degenerescência na fraca resistência dos filhos: quatro, D. Afonso, D. Dinis, D. João, D. Isabel, morrem ao nascer; D. Leonor, segunda mulher de Pedro IV de Aragão, o Ceremonioso, casa aos 17 anos, e sempre «oprimida de achaques» morre aos vinte, sem filhos. Apenas dois génitos vingaram: a infanta D. Maria, mulher de Afonso XI de Castela, seu primo co-irmão, - e D. Pedro, depois rei. A primeira foi mãe de Pedro o Cruel de Castela, um verdadeiro louco moral, ruivo, gigantesco, sanguinário, uxoricida, quase matricida, «ceceoso un poco en su. Hablar», marcado de estigmas, «toujours hardy et courageux», prodígio de avareza e de devassidão, de ferocidade e de animalidade. O segundo foi o nosso rei D. Pedro I, um epiléptico, ao mesmo tempo lúgubre e patusco, cheio de insónias, de terrores nocturnos, gago, cruel, violento, crivado de psicopatias sexuais, dançando de noite pelas ruas ao som de trombetas de prata e acusando o ictus convulsivo sob uma forma vaga de «acidentes». Uma forte herança mórbida, largamente capitalizada durante algumas gerações por consanguinidades sobrepostas, dera finalmente, como produtos terminais do ramo dinástico de Bolonha, um epiléptico e um louco moral.

Sobreveio então a intercorrência regeneradora duma bastardia. Certa fêmea plebeia, Teresa Lourenço, fecundada por esse degeneradão gago e cruel, conseguiu corrigir em parte as taras pesadas da linha paterna, e assegurou, por um génito forte, uma nova dinastia. Esse génito, D. João I, não tem já o tipo alto, esguio, ariano, loiro, decerto dolicocéfalo, constante na realeza portuguesa dos primeiros períodos; vem baixo, atarracado, trigueiro, cabelo preto, crânio curto, indicando a influência directa do tipo materno, celto-eslavo, escuro, plebeu. Conserva ainda o feitio epiléptico do pai, acusa vagos acidentes seguidos de amnésia e suspeitos de «pequeno mal», atribuídos pela medicina do tempo, segundo D. Duarte, a uma cadela danada que o mordera em criança; mas, apesar disso, o trabalho de regeneração é evidente, e acentua-se mais tarde pelo cruzamento feliz com o veio normando de Lancaster. Os filhos de D. João I foram, sem dúvida, os mais brilhantes exemplares das genealogias reais portuguesas. Mas as taras hereditárias da linha paterna, neutralizadas em parte por duas intercorrências regeneradoras, conservaram entretanto a todos eles um fundo de predisposição, um desequilíbrio manifesto e essencial, que os tornou particularmente sensíveis às mínimas influências externas.

Júlio Dantas
(1876-1962)

Teatro Mirita Casimiro / Teatro Experimental de Cascais
Cruzeiro- Monte Estoril
Tel.: 214670320
E-mail: t.e.c@netcabo.pt 
www.tecascais.org

encenação Carlos Avilez
Dramaturgia
Maria João de Rocha Afonso
Realização plástica
Fernando Alvarez
Canções originais
Luís Pedro Fonseca
Coreografia
Natacha Tchitcherova
Consultadoria de prestidigitação
Fernando Marques Vidal
Fotografias de cena e cartaz
Susana Paiva
Luminotecnia e direcção de montagem

Manuel Amorim
Sonoplastia e montagem Augusto Loureiro
Contra-regra e montagem Rui Casares
Assistência de ensaios Jorge Saraiva

MARIA VIEIRA em A Boba

de Maria Estela Guedes

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