MARIA JOÃO DA ROCHA AFONSO
Sou de uma aldeia asturiana, uma aldeia muito pequena chamada Besullo, perdida nas montanhas. Agora já não está tão perdida porque tem uma auto-estrada que, no entanto, não conheço. A Besullo dos meus antepassados era uma aldeia perdida, não no sentido do Palácio Valdês, mas sim realmente perdida na paisagem, nos montes, onde era muito difícil chegar. […]
Entre as gentes desta velha Besullo existia uma grande tradição oral de velhos romances, que se está a perder. Quando eu era menino, e já tenho muitos anos, esta tradição oral estava muito viva. Aquelas gentes, depois das tarefas do campo, punham-se a recitar ou a cantar essas velhas melodias, muito lentas e muito estranhas, que agora, claro, sei que o não são: romances famosos dos séculos XIV, XV e XVI, com temas de lobos, pastores, príncipes, encantamentos. Sobretudo, os temas dos encantamentos dominavam.
A névoa contribui para que as coisas não tenham um contorno seguro, antes um esfumado para que não se saiba onde as coisas começam e acabam. Numa palavra, que não haja distância.[1]
Neste confessado encantamento do rapazinho de uma aldeia perdida das Astúrias residirá porventura o deslumbre de Alejandro Casona ((1903-1965) pela história dos amores de Inês de Castro e D. Pedro de Portugal. Fiel à máxima enunciada por Mark Twain de «não deixar que a verdade estrague uma boa história», o autor espanhol oferece-nos uma peça em que a História é distorcida a bem da eficácia do enredo e do convocar de empatia do público para com as personagens e a situação apresentada.
Um amor romântico como o deste par, que se sobrepõe a razões de Estado, a alianças políticas, a conveniências geoestratégicas, a convenções sociais, recuado no tempo e envolto nas brumas da falta de informação fidedigna, permite-lhe recriar a seu bel prazer um texto que, apesar de assentar num facto antigo de vários séculos, ganha uma vida nova e fresca nas suas palavras, possibilitando assim um trabalho de palco ainda hoje extremamente atraente para quem lhe queira pegar.
Em tradução, o texto de Alejandro Casona, que saiba, foi montado duas vezes em Portugal: em 1958, pela companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, com tradução de Acúrcio Pereira, encenação de Amélia Rey Colaço e com Carmen Dolores (Inês) Mariana Rey Monteiro (Infanta), Rogério Paulo (D. Pedro) e Raúl de Carvalho (D. Afonso IV) e, em 2005, pelo Teatro Experimental de Cascais, na tradução que agora apresentamos, encenação de Carlos Avilez e com Vanessa Agapito, Maria Camões, Renato Godinho e João Vasco nos papéis referidos.
É de lamentar que não tenha sido feito mais vezes. E isto porque, entre outras, Coroa de Amor e Morte tem uma característica que o afasta do historicismo estrito que limitaria o interesse de uma recriação: Casona conseguiu pôr-nos à frente dos olhos uma galeria de personagens a que seria facílimo retirar o peso da etiqueta da História – e, portanto, a datação estrita – e considerar como representações do que de humano existe numa relação amorosa madura, adulta, orgulhosa de o ser contra um mundo de circunstâncias que clama contra si e deseja contrariá-la. Ao contrário do que seria de esperar, em Coroa de Amor e Morte, a intrusa, o terceiro elemento do triângulo amoroso não é Inês, mas Constança: é ela que chega tarde, que vem destruir uma harmonia conjugal estabelecida. E o confronto entre as duas mulheres faz-se de igual para igual. A orgulhosa e despeitada espanhola é derrotada pela tranquila segurança da esposa que se sabe incondicionalmente amada.
Ao reconhecer a derrota, a infanta espanhola assume também a sua incapacidade para desempenhar o papel de «noiva da paz» que os pais de ambos os príncipes desejaram para si. E só a força bruta e desapiedada da razão política personificada por Afonso IV terá a capacidade de lhe entregar a posição à qual está destinada. Mas até mesmo essa força, aparentemente imune a sentimentos mais calorosos, abre brechas face à ingenuidade e candura de um neto que, desconhecendo que o é, se toma de piedade por um «rei pobre e tão velho». Por instantes, Afonso vacila… para logo reagir violentamente. Mais tarde, será ainda Inês a vencer o duelo com o rei que não compreende a opção pelo amor, ele que põe a razão de Estado à frente de tudo o mais. Mas não será esse o seu papel de rei? No fundo, será que tem mais escolha do que Inês?
Nada é monolítico nas personagens desenhadas por Alejandro Casona: todas nos são apresentadas de vários pontos de vista, por vezes até opostos, revelando a humanidade que existe em cada uma delas, permitindo a identificação com cada um de nós que tantas e tantas vezes tomamos atitudes e fazemos opções contraditórias, no amor e não só. Quando da sua coroação, o próprio Pedro o reconhece ao afirmar a responsabilidade generalizada pela morte de Inês:
Não sou eu quem tem direito a esta coroa. Outras fontes mais dignas a usarão para além da morte. Que esta mulher, que todos matámos, nos dê uma vida nova. Que a sua imagem de amor nos devolva a todos o amor… e a paz. (Todos se ajoelham, enquanto Pedro coroa Inês) Deus te salve, Dona Inês, rainha de Portugal!
Misturando a memória dos romances de tradição oral da infância vivida na aldeia perdida da província espanhola com a narração do caso amoroso mais conhecido da História de Portugal, Casona insere-se numa longa linha de criadores que se maravilharam com o episódio. E torna-se também parte da resposta que poderemos dar à pergunta que Afonso IV dirige à «Colo de Garça»:
Mas… que pretendes com esta loucura? Que nova religião queres fazer de ti?
A religião que faz de si? A «recordação dos versos», a História feita lenda, transbordando dos anais para a tradição de todo um povo que se apropriou dos factos indo muito além da própria História, a perenidade de um tema trabalhado por todos aqueles que, ao longo dos séculos, utilizando as mais variadas formas de arte, cultivaram e mantiveram vivo o espírito e a narrativa do triste amor daquela que «depois de morta foi Rainha.»
12 Outubro 2017 . Maria João da Rocha Afonso
[1] Excertos da entrevista de Casona com Marino Gómez Santos, publicada no Diario Pueblo, com o título “Alejandro Casona cuenta su vida”, em 15, 16 e 17 de Agosto de 1962.
Alejandro Casona
COROA DE AMOR E MORTE
Trad. Maria João da Rocha Afonso
Caleidoscópio Ed., 2017