Sou uma cidade submersa

 

MAR BECKER


Mar Becker (Marceli Andresa Becker) nasceu em Passo Fundo (Rio Grande do Sul) e atualmente mora em São Paulo (São Paulo). Tem formação e especialização na área de Filosofia. Publicou “A mulher submersa”, seu livro de estreia (poesia), em maio de 2020, pela Editora Urutau. Os poemas selecionados são parte do livro “A mulher submersa”.


sou uma cidade submersa

quando à noite me deito contigo e te amo com todos os meus abismos

pela manhã sou uma cidade submersa

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porque é assim que amo, lendária e triste. porque não posso senão amar com o que em meu corpo é a história do fim de uma linhagem, estéril como sou

 

e quando pela manhã tu vais e eu permaneço na cama, nua

quando pela manhã a luz do sol começa a entrar pela janela e preenche o quarto

 

nessa hora o suor se reacende
o sal cintila em minhas coxas

 

e eu, estéril

eu então sou uma mulher estéril repleta de estrelas, de constelações

.

a mulher nascida na região da serra sem fim levanta-se

 

não há cor em suas unhas, e os fios do seu cabelo secam ao natural. a planta dos seus pés é mais áspera que a das mulheres nascidas nas cidades grandes, porque ela vive caminhando descalça no chão de pedra do quintal de casa. estende roupa. nos fins de semana come uva colhida de uma videira tímida

 

o fruto é miúdo, quase não vinga; ainda assim, há famílias que insistem no cultivo

 

essas famílias são tristes. há todo um reino de azuis em jogo

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ela se olha no espelho. tira a calcinha branca de algodão, velha

 

sei que é velha porque não a imagino mais tendo o aplique de laço que geralmente acompanha o modelo (no meio do laço, no ponto de encontro das curvas do laço, uma pedrinha de strass). o aplique se soltou, por causa do tempo, das tantas lavagens.

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nas tardes de domingo, depois de amar e ser amada, ela costuma dormir, de bruços. as pernas semiabertas, imóveis, numa geometria em que poderíamos vislumbrar o ângulo do telhado da casa

 

quero dizer: o telhado da casa como se o tivéssemos visto antes de sua constituição objetiva, numa fase de pré-realidade

 

ao anoitecer, acorda; levanta-se, caminha em silêncio pelo corredor, pela sala.

 

a mulher da região da serra sem fim lava a calcinha sempre no banheiro, sob esse outro paradigma náutico – quando no vapor o espaço-tempo resgata o mar como desolação. e a certa altura do banho nenhum limite separa o que é o vapor da umidade típica de sua respiração e o que é o vapor da água do chuveiro

.

 

por vezes uma pássara prenha entra em algum dos vãos do beiral do telhado. com o ninho já construído, ela se instala e põe seus ovos. em fevereiro e março, no período de chuvas mais intensas, é comum que um dos filhotes caia – recém-nascido, horrível. roxo. sem penas, só cabeça e bico

 

no dia seguinte, é varrido para um canto e fica amontoado junto com as cascas de uvas comidas

(tudo é cadáver, vindima e fome)

.

 

o banho demora uns dez minutos. ao longo desse tempo ela lava a calcinha, que vem molhada de sêmen. ao lavá-la, gosta de pensar que

em vez de escorrer com a água pelo ralo – o sêmen, tal como o álcool, volatiliza-se, dissipando-se com as gotículas de vapor do ambiente

 

nesse tempo, respira fundo, fundo, sentindo como se o homem que há pouco penetrou seu sexo estivesse agora penetrando seu pulmão

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em seguida, com a toalha enrolada no cabelo, como um animal inaudito

uma espécie mítica, meio mulher, meio rinoceronte, a toalha enrolada como um corno imenso no centro da cabeça

 

ela anda. abre a porta de acesso aos fundos. pega um prendedor da cestinha – e, de pés descalços, ainda morna e predatória, pendura a calcinha no varal

.

 

pernoitam e amanhecem nos varais, as calcinhas. as mulheres recolhem-nas perto do meio-dia, depois do período do vapor

 

vestem-nas. passam a tarde com elas. à noite surgem nuas nos quartos, e os homens amam-nas e dizem que seus grandes lábios cheiram a cerração

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e são longas as manhãs

com seus cabelos volumosos, ondulados, as mulheres mimetizam em menor escala a cena da travessia da claridade nas copas das árvores

 

a cerração imanta os quartos, imanta os móveis e as cortinas; e os mortos participam desse processo todo, no espaço; em silêncio

 

de fora, a certa distância, a casa nessas manhãs mal pode ser vista. o contorno dos telhados e das chaminés se perde

.

 

na casa fabula-se outra casa – em ruínas

.

 

havia noites em que eu e minha irmã dormíamos com nossas bonecas

 

antes de apagar a luz, dizíamos seus nomes, abraçando-as

depois tomávamos alguma distância, para olhá-las

 

para chamá-las pelo nome e imantar seus corpinhos de pano com relâmpagos

.

 

éramos as mais novas da casa

 

nossos cabelos, finos. a pele, repleta de sombreamentos, de marcas de nascença. à mesma hora dormíamos, no mesmo quarto; com os lábios entreabertos íamos respirando um enxame imaterial de mariposas

 

vinham pela boca da mãe e entravam nas nossas bocas

das nossas bocas seguiam

 

para a boca das bonecas

 

num ciclo escuro de perpetuação

da fome

MAR BECKER
A mulher submersa

Pontevedra/São Paulo, Editora Urutau, 2020
http://editoraurutau.com.br/titulo/a-mulher-submersa