ANTÍMIO DAMIÃO
Antímio Damião (Portugal). Autor / Desenhador / Estudante de Filosofia na NOVA/FCSH
Na biblioteca municipal, encontrei, ao acaso, por entre as páginas de um livro, a reprodução de uma fotografia ou de uma pintura hiper-realista. A imagem, sem legenda ou referência autoral, mostra duas figuras de negro caminhando à beira da estrada, à entrada de uma curva, de costas para o espectador e afastadas uma da outra por uma relativa distância. À frente vai o homem, encurvado e com um saco de compras na mão direita, seguido da mulher, de pose soturna e mãos nos bolsos do sobretudo. No entardecer sombrio, vêm-se as luzes mortiças de três candeeiros e, ao fundo, o frontispício de uma casa moderna de três andares. Por detrás da casa, para lá da estrada, árvores altas e imponentes cercam o caminho, oferecendo assomos irreais a um cenário já em si onírico. Não obstante a sua verdade, a imagem está-me nestas mãos que tremem sem saber ao certo se ela é parte de um sonho ou da própria vida.
Pouco importa provar a existência do amor como não interessa saber se ele resistirá a mil vidas para vir a reencarnar em duas ou mais almas predestinadas a reencontrarem-se através da metempsicose ou de outro meio desconhecido. Interessa, sim, provar que todo o amor é luz desaforada, impossível de travar, pois, na verdade, até os cegos sentem a luz.
No capitel do Pórtico da Vida, talharam uma mensagem compreendida apenas à luz da primeira lua cheia de Agosto e ao primeiro canto do galo degolado. Só assim é possível ver com absoluta clareza o recado que aí figura desde tempos imemoriais e que, ao que parece, consiste apenas de uma só palavra: “Atravessai”. Dizem que para lá do pórtico há mil e uma portas à disposição, e que por detrás de cada uma há uma vida por viver. As portas são exactamente iguais, o que dificulta a escolha da vida certa. E mesmo que assim seja, será que um homem é capaz de escolher a porta certa ou o acesso a qualquer uma delas está já decidido à partida? O mapa desse lugar jaz há séculos nos sótãos do mundo, perdido na eterna noite do espírito. Para encontrá-lo, há que consultar o cartógrafo mais velho da cidade, que vive há muito numa casa a cair de podre, num beco sujo e recôndito. Ele fará o que for possível para se lembrar do mapa, mas, dada a sua idade avançada, já pouco se recorda do que lhe foi confiado na juventude. Ainda assim, esforça-se o mais que pode para ajudar quem o visite e o indague. “Eu vi-o”, é costume ele dizer, embora já quase ninguém acredite nas suas palavras, pois, com o passar do tempo, perderam em sabedoria e, em sua vez, ganharam em ambivalência.
O medo do homem deve-se, em parte, ao facto de querer saber a verdade antes que a alma deixe o corpo. Nada do que faça ou possa vir a fazer poderá mudar o que quer que seja, pois só ele sabe e sente que apenas no fim da vida poderá entender tudo. O mundo desfaz-se qual cerúmen extraído da pele escamada de um ouvido, e as eras, por mais que passem, não destituem o homem da sua condição aporética. Assim, quando algo parece começar, tudo termina sem explicação.
“Que mais queres?”, pergunta Ele. “Uma resposta”, dirá o homem, com firmeza. “De nada te adianta”, volve Ele. “Mas não há dia em que eu não a queira e não ta peça”, diz o homem. E vai Ele: “E quem te garante que a resposta que queres obedece ao teu pensamento?”
Nesse tempo, era arrebatado por texturas e contrastes, pela aspereza táctil das pedras, pelo sabor acre das bagas de sabugueiro, pelo néctar mélico das flores e pela destreza das abelhas que zuniam à sua volta. Agora, paraplégico e confinado a uma cadeira de rodas, já raramente as vê ou consegue apanhar. Por tal motivo, todos se compadecem dele menos eu, pois, por recordar debalde a importância magna do espírito, sou desprezado como se nunca tivesse razão. “Que mal fiz eu?”, costumo perguntar. “Nenhum”, respondem-me todos. E, precisamente por isso, forço-me à mais bela solidão.
Que terras inóspitas nos esperam nos confins do mundo? E quão altos serão os picos das montanhas esquecidas pelos mapas? E por quanto tempo será preciso viajar para encontrá-las? A viagem, por incumbência do ser, a isso compele. O périplo nasce da vontade de encontrar o inalcançável. E a viagem bane de nós a morte: chave do começo e do fim da vida.
A alegada luz das luzes pode não ser a salvação como tão comummente se pensa mas a aniquilação da alma por intermédio da sua diluição na luz última, que, por tragar as almas mortas, se expande desde os primórdios, criando, assim, uma dimensão radiante que tudo consome e devasta, que não permite formas ou cores, que restringe tudo à mais infinda brancura, ou seja: e se a entrega da alma à luz for, afinal, a sua eliminação?
O meu mestre fala muito. Aliás, de tanto falar acaba às vezes por não se fazer compreender e a exprimir o que, à primeira vista, parece ser um chorrilho de palavras sem sentido, mas que, em última análise, acabam por revelar os mais belos poemas e verdades. Ele está irremediavelmente preso àquilo em que acredita, especialmente à imaturidade devida da vida, que, de resto, não é mais que um absoluto e infinito mistério. Há dias, perguntou-me o que eram anacronismos. Coisas vãs que resistem no tempo, respondi, perante o seu sorriso. E, de facto, de que vale ser-se para si mesmo e para outrem quando não há espírito que, ao sentir a morte, não questione com sinceridade o que foi? Vivemos como esquizofrénicos à chuva, separados de nós mesmos e sujeitos à bátega que nos oprime: eis a glória decadente do homem, respondeu ele; do mesmo modo que, já tarde na noite, emitiu um conjunto de sons bizarros que, afinal, fazem parte de uma língua que ele tem criado em sonhos e que de vez em quando traz para este lado da realidade. A arte das palavras retrata tanto a sua vida que, quando esta se for, aquelas tomarão o seu lugar. Ontem de noite, uma mariposa esvoaçava entre a persiana e a janela, cegada pela luz da sala. Ele parou a olhá-la e enunciou as diferenças que separam os animais nocturnos das bestas diurnas. Enlouquecera?, perguntei de mim para mim, depressa percebendo o erro da minha incompreensão, visto que do seu olhar transpareceu um brilho puro e sensato, reforçado pela imagem venerável das suas ralas cãs e rugas escavadas. Para variar, fez um longo monólogo sobre a apatia, expressa no facto de as pessoas já não saírem tanto de casa como antigamente. Depois, emudeceu. Mais tarde, após as orações da praxe, fomo-nos deitar e, às tantas, esperei que ele adormecesse. Ao primeiro ronco, levantei-me discretamente e fui apagar a vela no criado-mudo. A seguir, voltei a deitar-me e acomodei-me o melhor que pude na minha fina esteira de verga.
Tal como todas as proezas, o suicídio pode ser um sucesso ou um fracasso. Um suicida triunfa se se suicidar, porém, à mínima hesitação, tem muitas probabilidades de falhar. Um suicídio falhado é o triunfo do suicida que de repente decide continuar a viver mas o fiasco do suicida que deseja morrer de qualquer maneira. Triunfo e derrota nada significam para o suicida, cujo sucesso depende única e exclusivamente do cumprimento voluntário da sua morte. Por outro lado, se um suicida se tentar matar novamente após uma tentativa falhada – o que, diga-se de passagem, é pouco provável – a sua vida passará a ser pior que a levada até então. Neste caso, a sua vontade pode até desaparecer, mas nada garante que ela não venha a ressurgir.
Acossado pela letargia, viajo a um lugar remoto da imaginação, onde nada de valor vale coisa nenhuma. Àquela é pedido que preencha lacunas e propósitos do mundo, de modo a enformar e a possibilitar o que não existe. A imaginação funciona como uma espécie de espírito transgressor que, inadvertidamente, fica preso na fronteira entre a vida e o sonho. Ora, se eu, por algum motivo, confundir o sonho com a realidade ao ponto de, mesmo acordado, me sentir ainda dormido, é chegado o momento de empurrar sobremodo e sem cerimónia o espírito aí retido.
O homem é um funâmbulo na corda bamba da vida. À mínima rajada de vento, é sacudido por um desequilíbrio que, a contragosto, o faz olhar lá para baixo, para o chão duro onde se julga já estatelado. Porém, ao reconsiderar a sua posição, ele descobre que afinal tem ainda os pés em cima da corda e nela está equilibrado. No entanto, tem a sensação de que, por vezes, nesses breves instantes de pânico, a alma sai-lhe do corpo e levita acima da corda e de si mesmo, para, logo depois, ao ir-se, ela regressar de imediato ao corpo como se nunca de lá tivesse saído.
Nas faces dos jovens há um rubor e um humor despreocupado, uma rebeldia que, ao contrário dos adultos, traz à memória os amores inquietos da juventude repleta de caminhos sombrios. Não obstante, quando a inquietação de viver se refreia, os jovens perguntam uns aos outros o que fazer para descobrir a hipocrisia dos adultos. A resposta é simples: basta colocá-los diante de um espelho.
Aquando garoto, ateava fósforos e lançava-os, um por um, às medas de feno no palheiro da minha casa. Certo dia, o feno ateou-se e, apavorado, corri a fechar-me no quarto e fiquei a ver o fogo a alastrar-se. Em pouco tempo, o fogo subia já o castanheiro do quintal e espalhava-se perigosamente diante da janela como uma sarça ardente. A dada altura, ouvi lá fora os bombeiros, que logo forçaram a entrada no quarto, arrombando a porta ao pontapé e à machadada. Estremeci à sua entrada e voltei-me de repente. O meu pai irrompeu por entre eles e, vendo-me de sorriso feito e com a caixa de fósforos na mão, agarrou-me pelos cabelos e puxou-me dali para fora. Depois, no rescaldo do incêndio, moeu-me de pancada. Hoje em dia, tremo só de pensar que poderei vir a ser enterrado a seu lado. Até lá, passo o tempo à janela, à espera de outro incêndio que supere em beleza e tamanho o fogo anterior.
Era o fim do Verão quando o emigrante subiu ao morro do barrocal perto da estação ferroviária. A cidade estendia-se na lonjura verde-seca da colina, coroada pela muralha inconclusa do castelo. Lá em baixo, as pessoas percorriam as ruas estreitas da cidade, enquanto ele, pela enésima vez, se aprestava a partir a fim de ir ganhar a vida lá fora. Desceu até à estação e apanhou o comboio. Um dia, se tudo corresse bem, voltaria de vez à sua terra natal. E tal aconteceu anos depois, à custa de muitos e bastos sacrifícios. Ao sair na estação de comboios, entreviu com saudade o velho morro, a cujo topo já não subiu. Em vez disso, atravessou a avenida principal de uma ponta à outra, percebendo que tanto ele como a cidade haviam mudado com o tempo. Acometido de um vento frio, abotoou o capote até ao cimo, acendeu um cigarro e, em passada lenta mas decidida, chegou a casa, onde havia muito que ninguém o esperava. Pousou a mala no chão e deixou-se cair no sofá. Se calhar, concluiu para si mesmo indagando a sala vazia, talvez lá ficasse mais algum tempo.
Conheço uma história desde miúdo; uma história que o meu avô costumava contar junto à lareira, quando o uivo do vento se ouvia lá fora e os animais da quinta se silenciavam como que de propósito para o ouvir falar. Dizia ele que para lá dos montes inacessíveis há um gigante com uma cabeçorra de mil léguas e mil horrores, que, por entre as colinas, nos espreita com um enorme olho arregalado e outro fechado, escondido nas sombras das vertentes. Não contente com isso, o colosso ceifa a vida dos que por lá trepem e atinjam o cume. Quando o Sol desponta, o monstro vai-se, não sem antes deixar cair uma ou outra pestana que se desmorona vale abaixo, com estrondo, despertando os aldeões que dormem e se julgam em paz nas suas casas. Por vezes, há quem jure vê-lo à luz do dia, mas tal não passa de um rumor infundado. Aliás, a história em si e a autenticidade do gigante são claramente insustentáveis. No entanto, o meu avô, já falecido, acreditava piamente na sua história, tal como os demais habitantes da aldeia, que ainda acreditam nela. Eu, por outro lado, pergunto a mim mesmo porque será que ao perscrutar os montes à chegada do crepúsculo, eu, homem imbuído de modernidade, ainda receie a aparição do mostrengo.
Os espíritos recém-falecidos, montados na garupa do vento, sobem às árvores para daí subirem ao céu e à luz da lua que a todos comporta. Assim sendo, as copas das árvores agitam-se com maior fervor nas noites de Inverno, enquanto os espíritos se elevam no ar para lá da abóbada celeste.
Um apeadeiro jaz só em território estéril, rodeado de uma fila esquelética de árvores e arbustos rasteiros. Supôs-se que o Governo o restauraria, mas, com o passar dos anos, a noite foi caindo sobre ele, meiga e solitária, dia após a dia, sem que um único comboio ali parasse. O guarda-freio que aí trabalha gostaria muito de viajar na noite sem medida, mas, pelo visto, receia o dia em que tal aconteça, pois, para lá da meseta, ele nada conhece do mundo senão a confusão dos povos e a queda de todos os impérios dos homens. Já o filho, que aí reside e cultiva com ele a terra arável ao lado do apeadeiro, mostra saber um pouco mais que o pai, uma vez que aproveita cada minuto do seu tempo livre para ler os poucos livros que o primeiro guarda-freio ali deixou antes de morrer. Um dia, pensa ele, um dia deixará tudo para trás e tentará a sua sorte longe dali. Porém, o pai sabe que o filho planeia algo nas suas costas, logo, não permitirá tal ousadia. O filho, prevendo já esta eventualidade, sonha todas as noites com a sua fuga de modo a torná-la realidade. E, de facto, o sonho é tão belo e intenso que o ego se lhe some do espírito e a alma parte sozinha e afoita, à procura do mundo que a deslumbrará.
Na minha aldeia, os aldeões tratam-me como um leproso ou, em todo o caso, um convidado indesejável. Na praça, nos dias movimentados do mercado, o despeito que me têm é por de mais evidente e por vezes opressivo. Longe vão os tempos do “senhor professor” acarinhado por todos, do vulto a ter em conta nas reuniões municipais no antigo edifício dos Correios. Em contrapartida, pela repulsa e suspeita demonstradas, sou hoje tratado como o mais reles dos homens. Na verdade, tenho saudades do antigo vedor, já falecido. Se ele aqui estivesse, encararia toda esta gente e faria com que todos engolissem as suas próprias palavras. Com efeito, ele era o moralista da aldeia, agora órfã de um homem afim. Seja como for, o tempo passou e aprendi a esquecer o que antes achava importante. Como tal, tanto me faz o que pensem de mim. Foram-se os anos gloriosos e restam apenas os que hão-de vir. Por ora, nestas tardes longas em que sair à rua passou a ser um suplício, sento-me à janela da sala e olho, saudoso, para as ruas vazias e para a fonte seca da praça, ao mesmo tempo que observo uma mosca que, há mais de uma semana, sobrevoa atarantada e de rasante o vidro baço da janela.
Dado o conflito mútuo e inato do casal, vai-se a ilusão do amor. Os amantes culpam-se, afastam-se e enganam-se com silêncios e discussões. Os abutres que rondam o seu apartamento não se fazem rogados nem esperam por ninguém, por isso atacam e pousam as garras no dorso dos amantes, elevando-os pelos ares. A mulher, ser de leves carnes, é a primeira a ser levada. Porém, uma outra mulher voa por ali e fita o homem antes que os abutres o levem. Esta solta os cabelos e voa até ele. Os abutres, assustados com a aparição súbita da mulher, soltam o homem, que cai desamparado. A mulher voadora investe sobre ele, salvando-o por um triz de se estatelar no chão. A mulher pega nele e, em voos amplos e circulares, por ali ficam a esvoaçar como dois apaixonados, à luz melancólica do entardecer. Anos mais tarde, o homem descobrirá, pouco surpreso, que essa mulher, afinal, era um abutre.
Um celibatário ouviu um bando de crianças no recreio escolar. Acometido pela curiosidade, aproximou-se da escola primária para ver as brincadeiras da criançada. Espreitou por sobre o muro e descobriu a escola vazia. Incrédulo, coçou a cabeça, jurando não haver nada de mal com a sua audição. Mais tarde, já refeito do susto, foi ultrapassado por um bando de garotos que, no passeio, passou por ele a correr. O Sol brilhava com uma tal intensidade que o celibatário levou a mão aos olhos a fim de aplacar a luz. Entretanto, os miúdos dobraram a esquina, e o celibatário, que muito gostaria de ser um deles, perdeu-os de vista. Estes feitos, como é óbvio, são perfeitamente válidos, embora a coexistência de ambos seja praticamente impossível.
O público que esgota o anfiteatro vibra com um espectáculo inexistente, e apenas um e outro espectador se apercebem do absurdo da situação. Os que despertam para a Verdade aplaudem sem saber ao certo se devem ou não fazê-lo, se podem ir embora ou se devem ficar, embora suspirem e observem, atónitos, as reacções entusiásticas do público que, em geral, aplaude o que não vê e não entende. Com efeito, é deselegante não saber de antemão qual o fim da peça, ainda que, em última instância, alguns perguntem por isso ao espectador do lado. A dada altura, uma senhora de idade diz que o ponto se demitiu. “Era só o que faltava”, sussurra um senhor, claramente insatisfeito. “Quero o meu dinheiro de volta”, diz outro. Os protestos avultam-se e o porteiro interpela os espectadores desagradados. “Silêncio, senhores”, pede ele com a autoridade que lhe compete, “se não pretendem ficar, queiram pelo menos seguir-me, por favor.” Alguns espectadores obedecem, porém, outros, entretidos com não se sabe bem o quê, ali ficam, de olhos pregados ao palco, em silêncio e à espera do final da peça, mesmo sabendo que não a vêem.
O inconformado tende a apressar os seus pensamentos, por isso erra mais do que os outros, embora, graças às suas muitas conjunturas, erre melhor que os demais, pois estes dispõem de mais tempo para pensar do que ele.
Quando o sol vai alto e o calor aperta e distorce a linha do horizonte, quando o pó da terra dança no vento e se imiscui no silêncio das tardes quentes, quando em frente se olha sem nada ver, é chegada a hora de partir. O condutor aventura-se por estradas e declives que o levam a todo o lado e a nenhures, perde-se nas teias do tempo e tudo faz para perpetuar o movimento, até ao dia em que as rodas param, as lágrimas cessam, e tudo se lhe alivia.
A impossibilidade da plenitude espelha-se nos barcos e comboios que rumam a sítios aonde nunca iremos. Longe está a estranheza do mundo. Como tal, para quê a angústia? É preciso crer que nada é senão nós, que o fim recomeça aqui ou noutro reino, desta ou daquela forma, que há outros mundos para lá deste, onde beleza, bem e amor convergem em abundância, e onde a melhor versão dos homens louva a sua pequenez.
Os gémeos passam por ela a alta velocidade e as coisas turvam-se como um borrão de cores e linhas. Depressa, mais depressa; Alice perseguindo o coelho atrasado, sempre atrasado; a ânsia de chegar ao pouso último e de ficar onde tudo acaba; a desorientação. “Há quanto tempo dura esta viagem? Para onde vai aquele caminho? Onde está? Aonde veio parar? Que árvore é aquela cujos ramos entrelaçam a lua?”, pergunta a menina Alice. Ao fundo da rua, vê uma janela iluminada e encaminha-se para lá. Ao chegar, percebe que é a sua casa. Aproxima-se e espreita lá para dentro, pela janela, e vê-se deitada num caixão, no centro da sala, de mãos inertes sobre o peito e rodeada pela família e por cotos de velas acesas. Missão cumprida, pensa ela, enquanto o gato risonho se esfuma por sob o caixão.
O alpinista sente o cinzel do tempo a desgastá-lo, pedaço a pedaço, como se subisse a montanha para não mais poder descer. Foi-se a vontade de reinventar o que quer que seja e o que quer que ele tenha sido. As sombras ganham terreno – o desejo do sono último. Porém, os seus lamentos, ainda que muitos, não alcançam ninguém. A inércia preenche o vazio do quarto. O pouco que ele foi desintegra-se. Tomado pelo cansaço, frui coincidentemente do mesmo destino do vizinho, o andarilho, que, para além de ter perdido o norte, não dormiu nada a noite passada e, uma vez mais, por culpa disso, já não sai de casa. É deste modo triste e factual que o alpinista e o andarilho sabem o que os espera. E uma vez satisfeita a vontade de ambos, não terão outro remédio senão aceitar o fim mútuo. Qualquer homem que não se reja deste modo não obedecerá nunca ao alarme da vida mas ao toque persistente da inquietação e do medo que, com o passar do tempo, o enlouquecerão. O propósito de cada um remete-os à sua verdadeira condição, e, para se salvarem, há que desconstruir as coisas de modo a que eles possam criar, para si mesmos e para os outros, uma língua nova e única. De dia para dia, tanto o alpinista como o andarilho pressentem a escassez do tempo, a sua lesta passada, o murmúrio insistente dos anos, o anúncio da hora derradeira, do esfumar de todas as expectativas, da única luta da vida ganha pelos derrotados. Como peças reles na engrenagem do mundo, emperraram no exercício mecânico das suas funções e, como seres inconscientes, oscilam à beira do abismo para o qual olham e, surpreendentemente, ainda hesitam em cair.
©ANTÍMIO DAMIÃO