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SOPHIA, A VOZ QUE FICA
Selecta de Rui Mendes

Uma Vida Vertical
Por LUÍS MIGUEL QUEIRÓS

Sábado, 03 de Julho de 2004
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Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto, no dia 6 de Novembro de 1919. O seu pai, João Henrique Andresen, era neto de um dinamarquês, Jan Henrik, que se fixou no Porto e que ali fez fortuna, primeiro no sector da cabotagem, depois no negócio dos vinhos. A mãe, Maria Amélia de Mello Breyner, "leitora desabalada" que, segundo Sophia, criticava a filha por "não ler nada", pertencia a uma família aristocrática de fortes tradições liberais. Entre os seus antepassados mais ou menos directos contam-se Pedro de Mello Breyner, que deu nome à Rua do Breiner, no Porto, e Tomás de Melo Breyner, que foi porta-bandeira de D. Pedro IV.

O exemplar sentido de justiça de Sophia, bem como a coragem de que sempre deu provas ao longo da vida, são qualidades que nunca escassearam nos vários ramos da sua família materna.

Pedro de Mello Breyner, que, na segunda metade do século XVIII, desempenhou diversos cargos públicos no Porto, designadamente o de governador da Relação, notabilizou-se pelo seu empenho em melhorar a situação dos presos, encurtando penas, proibindo que os detidos carregassem pesadas correntes de ferro, e, delicadeza que Sophia talvez apreciasse acima de qualquer outra, pondo fim à humilhante prática de se expor os condenados à boçal curiosidade do público. Ironicamente, ele próprio veio a acabar os seus dias na cadeia, pagando o preço das suas convicções liberais. Encarcerado pelos miguelistas, morreu na Torre de S. Julião da Barra, em 1828, sem ter tido a consolação de assistir à vitória das tropas liberais no cerco do Porto. Um dia que certamente lhe teria parecido "inteiro e limpo", como esse outro dia que Sophia pôde viver um século e meio mais tarde. No cerco do Porto lutaram, aliás, dois Mello Breyner: António, filho de Pedro Mello Breyner, gravemente ferido em combate, e Tomás, a quem D. Pedro IV incumbiu que cravasse a sua bandeira nas areias do Mindelo.

A infância e adolescência, passou-a Sophia na quinta portuense do Campo Alegre, adquirida pelo seu avô Andresen no final do século XIX. "Um território fabuloso", assim a evocaria mais tarde a própria autora. É claro que um exíguo quintalejo pode ser, para uma criança, um território fabuloso. Mas não era bem o caso. Uma parte do que dele resta é hoje o Jardim Botânico do Porto. "Era tão grande a Quinta dos Andresen que o filho primogénito, João Henrique [pai de Sophia], administrador das minas de S. Pedro da Cova, não precisava de galgar os muros para atirar à caça de arribação", escreve Fernando Assis Pacheco, num belo texto intitulado "Sophia, a vida tirada a limpo", que a "Visão" publicou em 1995.

Um dos costumes da casa, como recorda o escritor Ruben A., primo de Sophia, nos seus volumes autobiográficos, era o de se organizar, pelo Natal, um espectáculo protagonizado pelas crianças da família. Foi justamente uma destas celebrações que originou o primeiro contacto de Sophia com a poesia. Tinha três anos e ainda não sabia ler, mas uma criada, desgostosa por ver a menina excluída do elenco de artistas, ensinou-a a recitar "A Nau Catrineta".

A sua verdadeira iniciação na poesia portuguesa, ficou a devê-la, no entanto, ao avô materno, outro Tomás de Mello Breyner, 4º conde Mafra, que lhe deu a ler Camões e Antero. "Vivi muito com ele, mais do que normalmente uma criança vive com um avô", escreveu Sophia, que com ele aprendeu, também, que "nem todos os intelectuais são inteligentes" e que convém "rejeitar os exageros, o pedantismo e o cabotinismo". Médico reputadíssimo e autor de um livro de memórias, o currículo deste avô inclui ainda a curiosidade um tanto dramática de ter sido um dos médicos que procedeu ao embalsamento dos cadáveres do rei D. Carlos e do príncipe Luís Filipe, após o regicídio de 1908.

Não menos marcante do que a Quinta do Campo Alegre, a julgar pelas muitas referências que a autora lhe faz nos seus poemas e contos, foi a casa de férias na queirosiana praia da Granja, onde a família passava os verões. Era uma casa branca, no meio das dunas. "Abria-se a porta da sala e dava directamente para a areia, tanto assim que se fartavam de entrar as pulgas do mar", recordou Sophia numa entrevista à revista "Noesis".

"Casa branca em frente ao mar enorme", diz o verso inicial de um poema do seu livro de estreia, que termina assim: "Em ti renascerei num mundo meu/ E a redenção virá nas tuas linhas/ Onde nenhuma coisa se perdeu/ Do milagre das coisas que eram minhas." Vinte anos mais tarde, em "Livro Sexto" (1962), o tom é já mais pungente: "(...) Pois o tempo me corta/ O tempo me divide/ O tempo me atravessa/ E me separa viva/ Do chão e da parede/ Da casa primitiva// Musa ensina-me o canto/ Venerável e antigo/ Para prender o brilho/ Dessa manhã polida/ Que poisava na duna/ Docemente os seus dedos/ E caiava as paredes/ Da casa limpa e branca// Musa ensina-me o canto/ Que me corta a garganta".

Os estudos, fê-los no Colégio do Sagrado Coração de Maria, no Porto, onde estudou dos 7 aos 17 anos. Numa célebre entrevista a José Carlos Vasconcelos, publicada em 1991 no "Jornal de Letras", é com palavras de apreço e gratidão que evoca as educadoras do colégio e, em especial, a sua "óptima professora de português", D. Carolina. Chegou, depois, a frequentar durante alguns anos o curso de Filologia Clássica, na Faculdade de Letras de Lisboa, mas abandonou-o a meio, regressando ao Porto. Ainda assim, esta experiência universitária proporcionou-lhe um primeiro contacto sistemático com a cultura e civilização gregas, que se tornariam referências fundamentais da sua obra poética.

Poeta e mãe

Desde os doze anos que escrevia versos e, em 1940, por intermédio de Luís Forjaz Trigueiros, que integrava o círculo de amigos dos verões na Granja, publicou os seus primeiros poemas nos "Cadernos de Poesia", que Ruy Cinatti, Tomaz Kim e José Blanc de Portugal tinham acabado de fundar.

O primeiro livro, uma escolha dos muitos poemas que então já escrevera, saiu em 1944, tinha Sophia 25 anos, numa edição de 300 exemplares financiada pelo pai. Chamava-se apenas "Poesia" e, na sua concisa e despojada perfeição, continua a ser um dos mais espantosos livros de estreia da poesia portuguesa contemporânea.

Em 1946 casou com o advogado e jornalista Francisco Sousa Tavares e radicou-se definitivamente em Lisboa. Vivia há muitos anos na Travessa das Mónicas, numa casa cujo jardim foi desenhado pelo arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles. Sophia e Francisco tiveram cinco filhos: Isabel, Maria, professora e poeta (com o nome Maria Andresen de Sousa, publicou um belo livro de poemas em 2001, intitulado "Lugares"), Miguel, advogado, jornalista, "opinion maker" e autor de vários livros - entre os quais "Não te Deixarei Morrer, David Crockett", de que já terão saído umas vinte edições, e o romance "Equador", que foi bem recebido pela crítica e se tornou, também, um invulgar fenómeno de vendas -, Sofia e Xavier, artista plástico e autor de obras reproduzidas em algumas edições recentes de livros da mãe.

Nesses anos em que foi vendo nascer os filhos, Sophia escreveu relativamente pouco. "Não sentia necessidade", explicou, com a sua proverbial concisão, na já referida entrevista a José Carlos Vasconcelos. De facto, desde 1944, data do seu primeiro livro, até 1957, publicou apenas mais três livros de poemas. Mas logo no ano seguinte editou mais um livro de poesia, "Mar Novo" e estreou-se na literatura para crianças com "A Menina do Mar" e "A Fada Oriana".

Oposição ao salazarismo

Essa segunda metade dos anos 50 coincide com o momento em que Sophia e Francisco Sousa Tavares, ambos católicos e ele monárquico, se começam a situar cada vez mais abertamente na oposição ao salazarismo. São vários, de resto, os poemas de "Mar Novo" nos quais se pode ler um ataque ao regime. "Exacta é a recusa/ E puro é o nojo". Ou: "Porque os outros se mascaram mas tu não/ Porque os outros usam a virtude/ Para comprar o que não tem perdão./ Porque os outros têm medo mas tu não."

Em 1958, Humberto Delgado candidata-se à Presidência da República. Francisco Sousa Tavares apoia o general e, em consequência, vê-se banido da função pública. No ano seguinte, está já envolvido na conspiração que ficou conhecida como "Revolta da Sé". E, em 1965, subscreve o célebre "Manifesto dos 101", um documento com fortíssimas críticas ao regime, redigido por um grupo de católicos, entre os quais Nuno Bragança, Bénard da Costa e a própria Sophia, que, no ano anterior, vira o seu "Livro Sexto" - onde Salazar é retratado como um "velho abutre" cujos discursos "têm o dom de tornar as almas mais pequenas" -, receber o Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE). Foi, aliás, o último prémio de poesia atribuído pela SPE, extinta em 1965 na sequência da atribuição do prémio de novelística a Luandino Vieira. Até à criação da Associação Portuguesa de Escritores, em 1973, muitos sócios da desaparecida SPE foram levados por Sophia para o Centro Nacional de Cultura, a que Sousa Tavares presidia desde 1957.

As causas de Sophia

Ainda antes do 25 de Abril, Sophia integrou a Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos. E, quando finalmente desponta "o dia inicial inteiro e limpo", Francisco Sousa Tavares corre ao Largo do Carmo e, empoleirado num tanque e de megafone em punho, apela ao povo para que apoie os militares revoltosos. Alguns dias depois, no 1º de Maio, milhares de manifestantes gritaram em Lisboa uma palavra de ordem lançada por Sophia (e depois imortalizada num célebre quadro de Vieira da Silva): "A poesia está na rua."

Em 1975, a escritora foi eleita deputada à Assembleia Constituinte, pelo círculo do Porto, nas listas do Partido Socialista. Esta sua breve experiência parlamentar pôs fim a um longo período de participação intensa na vida política, que ela própria, sempre sintética quando falava de si própria, resumiu assim: "Antes de 25 de Abril de 1974, fiz parte de diversas organizações de resistência, tendo sido um dos fundadores da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Depois de 25 de Abril de 1974, fui deputada à Assembleia Constituinte (1975-1976) e detesto escrever currículos..."

Ao contrário do marido, que se manteve na política activa - foi deputado e ministro da Qualidade de Vida, tendo militado sucessivamente no PS e no PSD, com passagem pelo Movimento dos Reformadores -, Sophia dedicou os últimos 30 anos de vida à escrita. Mas nem por isso deixou de intervir sempre que achou que as causas o justificavam.

Para citar apenas alguns exemplos, recorde-se o texto que redigiu, em 1991, para um abaixo-assinado a favor da causa timorense, que envolveu nomes como Maria Barroso e Natália Correia, e instituições como a Cruz Vermelha e a Assistência Médica Internacional. "A muitos Timor parecerá pequeno e distante. No entanto, é em Timor que neste momento se trava a luta pela dignidade humana", escreveu então.

Foi também Sophia quem redigiu o texto de introdução a um abaixo-assinado apelando à interdição das minas antipessoal, lançado pela Cruz Vermelha durante a Expo'98. Na altura, em declarações ao PÚBLICO, explicou que aceitara o convite da Cruz Vermelha porque "o problema das minas é um dos grandes horrores da nossa época". E acrescentou: "Hoje em dia, aceito muito poucas coisas, e só as que são importantes para muita gente."

Essencialmente, o que sempre a moveu foi o combate pela dignidade. Não surpreende, por isso, que em 1996 tenha enviado um texto para os jornais criticando o facto de a Câmara Municipal de Lisboa ter integrado nas comemorações do 25 de Abril uma parada em que vários actores desfilariam pelas ruas caricaturando situações e protagonistas do Estado Novo. Num dos "sketches" previstos, um padre distribuía batatas fritas em vez de hóstias, e talvez tenha sido esta caricatura da comunhão que ofendeu as suas convicções católicas e a levou a reagir publicamente. Mas vale a pena reler o que então escreveu: "(...) A caricatura das personagens políticas e a denúncia dos seus crimes interessava vitalmente quando era actual, tal como muitos e eu própria a fizemos, na cara do próprio Estado Novo, antes de 1974. Feita hoje, tantos anos depois - sem distância e sem pedagogia -, é uma forma de senilidade política. Seria mais útil e mais corajoso denunciar os males que perduram (...)."

Entre eles, além da morosidade da justiça e dos fenómenos de marginalização e miséria, Sophia lembrou "as formas de promoção e de auto-reclame que se usam nas campanhas eleitorais" e "a avidez dos 'boys' de todos os partidos". E sugeriu: "Corajoso é combater o que está à nossa frente e no poder, e só o que é corajoso é divertido."