Falavam de ciganos, bailarinas e sílabas. Eram amigos há
mais de 40 anos. João Cabral escreveu: "que dirá Sofia
um dia?" Um dia, passados muitos anos, Sophia disse:
"Será que ele vai achar o céu muito abstracto?
Em três versos de um poema, perguntou João Cabral: "Sob
o sol de alma marinha / sob o sol inabitável / que dirá
Sofia um dia?" Um dia passados muitos anos, Sophia de
Mello Breyner Andresen abre estes versos no colo,
repete-os sorrindo como se só ela os ouvisse, e o que
então diz é uma pergunta: "Será que ele vai achar o céu
muito abstracto?"
Os amigos conhecem-se. Sophia e João Cabral de Melo Neto
eram amigos há mais de 40 anos. É uma longa e bela
história que começa com o amor de João Cabral aos
substantivos concretos. A primeira vez que se
encontraram, na Plaza Mayor de Sevilha, ele disse-lhe:
"Gosto muito da sua poesia: tem muito substantivo
concreto." Que poderia então dizer Sophia um dia? A
vontade do mais concreto céu, ainda que o poeta apenas
acreditasse (por temor) no inferno.
"Li algures", recorda Sophia na sua casa de Lisboa onde
João Cabral esteve tantas vezes, "que ele morreu a
rezar... Parece-me maravilhoso... Mas não falávamos de
Deus, nunca falámos de Deus." De que falavam? Com lenta
precisão, Sophia resume: "De ciganos, de bailarinas e de
sílabas."
Ele conheceu-a antes de ela o conhecer a ele. Lia-a.
Sabia-lhe os versos. Sabia já que ela era "o grande
poeta da minha geração em Portugal". Sophia não se
lembra ao certo do ano em que se encontraram, mas,
tomando a data da primeira dedicatória que João Cabral
lhe fez, terá sido em 1958. E é então possível imaginar
Sophia a caminho de Sevilha tal como a desenhou nesse
ano Arpad Szenes - o retrato está nesta mesma sala em
que falamos - belíssima como uma "madonna" num esboço de
Bellini.
"Foi maravilhoso, era em Setembro, o tempo estava
óptimo... Dois amigos nossos iam a Sevilha ver o João
Cabral e convidaram-nos. Ele arranjou-nos um hotel
óptimo, num antigo palácio, com um pátio lindo... Mas
antes tínhamos combinado encontrarmo-nos às 8h da noite
na Plaza Mayor. Foi então que vi um homem pequenino, um
pouco triste, que me disse: 'gosto muito da sua poesia,
tem muito substantivo concreto'! Nessa altura eu não
conhecia a poesia dele... Passámos uns dias
extraordinários: íamos almoçar sempre a casa do João
Cabral, durante as tardes líamos versos - eu lia os meus
e os dele, porque ele não gostava de ler em voz alta -,
à noite íamos ver as bailarinas dançar flamenco! Ele não
gostava de música, gostava de dança. Era um homem triste
divertido, uma coisa rara. Dizia com uma graça: 'nenhuma
mulher andou apaixonada por mim'!"
Foi assim, num luminoso Outono andaluz, dizendo os
versos de João Cabral diante de João Cabral, que Sophia
descobriu o poeta que depois tanto quis partilhar com
quem a lia - dedicando-lhe poemas, escrevendo sobre ele,
antologiando-o.
"O João Cabral tem um despojamento... como um extremo...
é prodigioso, inesperado. Ele achava que a inspiração
não lhe dava para linhas compridas! E nunca escrevia
cartas, dizia-me: 'Nós somos amigos há tanto tempo
porque não escrevemos cartas. Quem escreve cartas é que
se zanga."
Entre os livros de João Cabral que Sophia foi buscar à
sua estante-dos-livros-de-que-gosta, estão, por ordem
cronológica, "Duas Águas" (dedicatória de Sevilha, 1958)
"Terceira Feira" (Madrid, 1962, "A Educação Pela Pedra
(Berna, 1966) "Museu de Tudo (Dakar, 1976), "Auto do
Frade" (Rio, 1984) - a amizade entre os dois poetas
atravessa a geografia dos lugares em que João Cabral
esteve como diplomata.
O exemplar da antologia "Duas Águas" está tão manuseado
que a contracapa já não existe e a capa se descola
agora, enquanto Sophia a folheia em busca dos papéis que
João Cabral nunca soube que existiam, aqueles em que a
poeta portuguesa, com a sua letra miúda, o traduziu para
francês (ver reprodução): excertos de "Vida e Morte
Severina" e de "Uma Faca Só Lâmina", um dos poemas
favoritos de Sophia.
"Ele não gostava nada de ser traduzido... e eu nunca lhe
disse, nem nunca as publiquei." Relê devagar, recita
devagar. Francês era uma das línguas que João Cabral
falava e, como o poeta disse tantas vezes em
entrevistas, as únicas traduções para as quais suportava
olhar eram as feitas para línguas que desconhecia em
absoluto. Como japonês. Aí, dizia João Cabral,
parecia-lhe "lindo".
Agora Sophia está absorta a olhar a fotografia do amigo
na contracapa de um dos livros: "Vê como ele era triste?
Havia uma espécie de austeridade nele. Detestava o
barroco... há uma história extraordinária que o [poeta]
Murilo Mendes contava: uma noite o João Cabral estava
muito em baixo e anunciou ao Murilo que se ia matar. O
Murilo não dormiu toda a noite, preocupadíssimo. De
manhã, quando o João Cabral apareceu, o Murilo perguntou
o que se tinha passado e o João Cabral respondeu: 'eu
lembrei-me que me iam enterrar aqui [em Sevilha] e o
cemitério era barroco e eu tenho tal horror de
barroco...'!"
Recorda Sophia, falando no presente como se João Cabral
não tivesse partido, como se ainda fosse possível,
finalmente, ela partir para o visitar no Brasil, onde
nunca estiveram juntos: "É um homem de uma finura, um
aristocrata... E com algo de muito português, que lhe
vinha das origens." De João de Melo e Azevedo, açoriano
chegado ao Recife no século XVIII, que haveria de casar
com Teresa Cabral de Vasconcelos.
A última vez que se encontraram terá sido "há uns 12
anos", no Porto. O que Sophia hoje diz é como se tivesse
sido ontem. E ainda estivesse a ser.
|