MARÍLIA LOPES
Corredor humanitário de Putin
Deixar tudo para trás: olhar com pena
a forma como tínhamos os livros nas estantes,
a forma como dispúnhamos os quadros nas paredes,
a forma como decorávamos os compartimentos,
a forma como colocávamos comida nos pratos,
dispostos em cima da mesa, com as nossas toalhas,
a forma como fazíamos as camas e como compúnhamos
o cenário almofadado dos afectos.
Deixar tudo: o último alcance das lanças.
O cão de pelúcia que ainda cabe no saco
e que há – de ficar de guarda das crianças.
E agora, enfim, a despedida: levar a inocência
Pela mão ao frio, à neve, à chuva
E malas cheias de roupa, colhidas em pranto.
Deixar tudo, partir como bom soldado:
coração triste, o rosto levantado.
Deixar tudo para trás, em debandada
E no tresmalho fazer pazes com pequenos nadas:
um carinho de alguém alheio, um abrigo de um caseiro,
um pouco de paz, acolhida à lareira de um lar intacto,
num país estranho, onde a linguagem
importe mais do que a língua, ou a bandeira.
Talvez o desnorte do caminho
se converta em fortaleza,
e a loucura expressa, em repúdio
do mais cínico corredor que a História reza.
A maternidade de Mariupol
“Atrocidade! Por quanto tempo mais o mundo
será cúmplice ao ignorar o terror?“- diz Zelensky.
Frito batatas na cozinha, enquanto tu entras
em manobras de paz, em trabalho de parto.
Gritas por socorro, que eu vejo nas imagens,
e com um garfo solto as louras batatas do óleo.
Com uma escumadeira, escorro-as para uma travessa.
E dirijo esta cena mecanicamente,
como marionete de literato cordel.
O que poderei fazer, a partir daqui?
Que poderei fazer? Desligar notícias
e em vez disso ouvir um tango de Gardel?
Os bombas à maternidade de Mariupol
atingem a humanidade e as mães de todo o mundo.
As crianças são flores debaixo dos escombros
Que também jazem no nosso olhar impotente
mesmo que estejamos em vias de jantar,
à hora do rotineiro jornal das oito.
E há sangue nos colchões e estilhaços de vidro:
as notícias – balas de horror – que nos lembram
que tu estás em Mariupol, quase a dar à luz
e que deixaste o colchão do hospital em sangue.
Retiro o arroz do lume e apago as guerras.
Ah, este privilégio inútil: ter um gás
que teima em recordar-nos de que o tempo urge,
e arde veloz, com tanta gente dizimada.
Ferve o óleo no meu coração que dispara:
acelera de medo e o teu ventre, esse, estala.
Som de guerra
Sirene d’uivo canino –
osso que estala por dentro
do crânio de um menino.
Sirene de espasmo alerta,
ouvida em tensão de medo,
ecoando boquiaberta.
Uma nota, talvez duas,
no ranger dos fortes dentes,
ante os destroços nas ruas.
Uma arma, talvez duas
apontadas ao inimigo,
que não sabe o que são tréguas.
E quando já se não escuta
o ruído das humanas perdas,
o som é um filho da luta.
Edifício 359
Devastação na ucraniana Estrada:
o edifício 359
lembra ao mundo: 22 pessoas
morreram numa cave, em Borodyanka.
Em que circunstâncias foram mortas?
Muitos estavam nos apartamentos
que as bombas destruíram.
Resta a carcaça e a enorme fenda
desses lares outrora em paz.
O mundo precisa de saber
o que aconteceu
a 108 famílias.
|a maior parte morreu na cave
do edifício 359
e com essa parte a humanidade,
e um gelo intenso
que a demove.
Madrugada de vinte e quatro
Madrugada de vinte e quatro
e a esperança perdida, em directo.
Não é fake ou sombra, é um facto:
acto ignóbil, verme insurreto,
bombardeamentos, invasão
das cidades da nossa Ucrânia,
que a sós resistem à guerra insana.
Sem a pesada mão de espada
que apunhala Kiev, sem piedade,
descansam já em solo ardente
os que removem a iniquidade,
como balaústres do futuro.
Esses que respiram ar escuro
entregam o seu amor à pátria,
o peito à bomba, a mão ao tiro,
o pé à estrada inoperante –
– a que então estoura e já se extingue,
não conduzindo mais ninguém,
senão o mundo à luta, ao ringue.