Sonhos caminhantes

MANUEL RODRIGUES VAZ

Sonhos Caminhantes
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Homenagem a Cabo Verde que é um Hino à Terra-mãe


Publicação original na revista África, nº 21, pp: 76-77.


Foi recentemente apresentado na Associação Cabo-verdiana de Lisboa, o livro de poemas Sonhos Caminhantes, do poeta cabo-verdiano José Luís Hopffer C. Almada, recolha refundada de obras anteriores que acaba por ser um hino à sua terra natal e também um testemunho inolvidável de amor e solidariedade com as gentes do seu país.

Editados anteriormente com assinatura de heterónimos, Caminhos insepultos, sob o nome de Erasmo Cabral de Almada, e Terra-longe/Diásporas (Todas as moradas da saudade), sob o nome de Nzé de Sant’y Ago, aparecem agora em novas versões mais depuradas e limadas, atingindo uma plenitude de obra máxima, num estilo torrencial e grandiloquente, em que o verbo é sublimado pela palavra, usada com certeira precisão em jatos feitos de vocábulos que vão jorrando num manancial de significantes e semantismos infinitos, expressando de maneira indelével a alma dos africanos que é grande como o mar, e que é perto/longe e não tem fim.

Verdadeira enciclopédia da Diáspora cabo-verdiana, Sonhos Caminhantes apresenta-se como resultado sazonal de obra que o autor ambiciona ser maior, pretensão conseguida pelo esforço realizado com um inventário exaustivo de todas as atividades e situações do quotidiano cabo-verdiano, em listas infindáveis, ao mesmo tempo que liga o seu País ao Mundo, como bem acentua Gabriel Fernandes, autor de prefácio, quando diz: «José Luís Hopffer C. Almada não apenas põe-nos a par da sua autodescoberta, como nos interpela à (re)descoberta do mundo a que pertencemos: um mundo no qual, contra todas as expectativas, o Adão se apresenta negro e se instala no cume de Pico de António; um mundo onde o desejo de regresso perpassa o plano de partida e ambos dão forma ao sonho do reencontro; onde o ideal de pureza se inibe ante a exuberante presença da mistura onde a Terra-Longe continua longe mesmo quando nela se está, tamanho o contágio da Terra-mãe». Porque, como diz o autor no poema Exílio, «O mar é um rio /e quando /na extenuada vigília da lonjura /desagua /é uma ribeira sem amanhã /compulsivamente exaurindo-se /na saudade faminta /da ilha estéril e interdita».

De vários modos, ao ler estes poemas, especialmente na repetição cadenciada dos epígonos iniciais, é forçoso lembrarmo-nos da poesia combativa de outra grande poeta cabo-verdiana, a Yolanda Morazzo, neta do grande vate cabo-verdiano José Lopes, esse gigante da arte de Minerva e “da Hespéria oriundo”, como diz Manuel Veiga, que este poemário do Hopffer nos faz evocar, ao fazer-nos sentir a dor do seu tempo, “as secretas lágrimas vertidas”, a universalidade e inclusão do seu pensamento, o sentido do seu verbo e da sua sintaxe, o chão hesperitano da sua mensagem e a grandeza de um ideal que, como um iluminado precoce, chegou a antever a dignidade das suas ilhas respeitadas, como acontece no seu Jardim das Hespérides. Caberá aqui fazer notar a presença do poeta brasileiro Manuel Bandeira, pelas recorrentes referências a Pasárgada, que aliás são muito comuns na poesia cabo-verdiana, e pelas repetidas evocações da infância encantada, horizonte perdido irremediavelmente. Como ele dirá: «Sinto-me só. /Sinto saudades dos meus companheiros /Os meus companheiros trilhamos caminhos da terra-longe. /Da terra-longe ou da pasárgada. /Sei somente que esses caminhos desaguam a norte. /Do norte os meus companheiros mandam mantenhas para o sul.»

Com uma estrutura de composição que, curiosamente e, com certeza, não por acaso, tem muito a ver com o funaná, género musical tipicamente cabo-verdiano cuja música, de muitos acordes, estrutura-se num conjunto de estrofes principais que se alternam com um refrão, só que este vem no início, para melhor marcar o ritmo.

Alternando estrofes de poesia pura com melopeias cujo ritmo está muito em consonância da linha melódica do funaná, que varia muito ao longo da composição, com muitas séries de notas ascendentes e descendentes, também como nas letras do funaná, aqui são abordadas situações do quotidiano, fazendo menções às amarguras e felicidades do dia-a-dia, mas também críticas sociais, reflexões sobre a vida, saudades/ mantenhas, e situações idílicas.

Nome de referência no que respeita à difusão do património cultural de Cabo Verde, defensor de uma linha de preservação patrimonial, bem patente nas três publicações anteriores, Hopffer faz uma muito encantatória recriação do Génesis localizando-o no seu Cabo Verde natal, misturando num cadinho inesperado o seu Pico de António, sempre presente altaneiro, a sua Assomada, das noites de encanto, o seu Amílcar Cabral, arauto e obreiro dos tempos de libertação, com o sentimento de evasão, tão recorrente em toda a poesia cabo-verdiana. Aliás, como nota no Posfácio a professora Simone Caputo Gomes, da Universidade de São Paulo, o nome de Hopffer significa «profundo conhecimento tanto da arte da poesia como da realidade cabo-verdiana     como poeta, crítico literário, ensaísta, editor, pesquisador da cultura e ator de movimentos culturais.»

Por isso, é claro, é que se abre ao Mundo, às várias partes da Diáspora, assinalando: «Hei-de sentir /saudades estranhas /de terras estranhas situadas /para além das terras-longe /(…) /de garantias do futuro e do pão de cada dia os filhos saudosos da ilha /de luanda, de são paulo, do prenda, do bairro operário, do sambizanga, /da catumbela, do lobito, de benguela, de moçâmedes, de cabinda, /da farda negro-rubra, da kalashinikov, dos cheiros, dos odores,  /das maravilhosas paisagens da terra-mãe angolana dilacerada /pelas flagelações armadas dos mercenários e das tropas estrangeiras, da nação em construção nos ditames da sagrada esperança, /da pátria proclamada unida, de um só povo e uma só nação /de cabinda ao cunene, da pátria cansada, cantada /como trincheira firme da revolução em áfrica, /da pátria exangue assediada pela escassez, pelo açambarcamento, /pela especulação, pela guerra, pela repressão, pelo ódio vário fratricida».»

Resta salientar a capa sugestiva a partir de uma composição de Kiki Lima, e fazer notar que o arranjo gráfico deixa muito a desejar, aparece muito pouco trabalhado, pouco facilitando a leitura.

Título: Sonhos Caminhantes

Autor: José Luís Hopffer C. Almada

Editora: Pedro Cardoso Livraria, Praia, 2017