Silas Corrêa Leite e a voz dos deserdados da terra

 

 

 

 

 

 

 

ADELTO GONÇALVES


Adelto Gonçalves é mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo-Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


Em novo livro, autor recolhe flagrantes da história oral vivida nas favelas de São Paulo  

 

I

Quem já percorreu os labirintos dos arquivos públicos sabe que a documentação, majoritariamente, reflete a posição das classes dominantes e de seus lacaios. Por isso, quando um dos deserdados da terra consegue fazer com que ouçam sua voz esse acontecimento torna-se motivo de regozijo. Foi o caso de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), catadora de papéis que vivia numa favela do Canindé, em São Paulo, que ficou conhecida por seu livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, publicado em 1960, com auxílio do jornalista Audálio Dantas (1929-2018), obra traduzida para 14 idiomas.

Nessa linhagem, o poeta, romancista e contista Silas Corrêa Leite (1952), de origem humilde, também é uma espécie de deserdado da terra que encontrou na literatura uma forma de fazer com que a voz dos excluídos seja ouvida. Começou sua vida profissional cedo, tendo sido aprendiz de marceneiro e garçom em Itararé, cidade na divisa entre os Estados de São Paulo e Paraná, além de engraxate, boia-fria e vendedor de doce de groselha. Começou a escrever aos 16 anos, passando a produzir crônicas para o jornal O Guarani. E logo foi aprovado num concurso para locutor na Rádio Clube local.

Em 1970, migrou para São Paulo, onde morou em pensões, cortiços, passou fome e dormiu na rua.  Já empregado, formou-se em Direito e Geografia, sendo especialista em Educação pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, além de ter cursado pós-graduações nas áreas de Educação, Filosofia, Inteligência Emocional, Jornalismo Comunitário e Literatura na Comunicação, curso este que fez na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP).

Com tamanho histórico, nunca deixou de aproveitar essa vivência nos livros que escreveu. A sua mais recente incursão no mundo dos desfavorecidos acaba de chegar às livrarias: é o livro de contos Favela Stories (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2022), que reúne historietas que se transcorrem em bairros da periferia da grande cidade de São Paulo, as agora chamadas comunidades que, apesar da nomenclatura politicamente correta, continuam tão carentes (ou mais) quanto eram ao tempo em que eram conhecidas apenas como favelas. A rigor, são fragmentos de história oral que foram recolhidos pelo autor durante os 22 anos em que atuou como professor de Geografia e História em aglomerados subnormais, como se comprova no último relato da obra:

“(…) Você entra no prédio, quase um clube na curva da quebrada, e ali crianças, jovens, gente mestiça, parda, negra, quase negra, a quem você acena, cumprimenta na medida do possível, entre sonhos, fotos, jornais, tudo amontoado, você está na célula de uma comunidade, no coração de uma favela (a poucos metros do Palácio dos Bandeirantes, do governo paulista), no âmago da dor brasileiríssima, ao longe (e tão perto) a via marginal Pinheiros, a ponte, do outro lado do rio um shopping chique de ricaços, um túnel, uma cidade alheia àquela realidade que você sente, pisa, sofre, e que vai aprender a recompor de alguma maneira dentro de você (…)”.

II

Neste relato ainda se constata a dureza de uma profissão pouco reconhecida, a de professor, e que, infelizmente, hoje é considerada a última opção para aqueles que não conseguem um emprego melhor na vida.

“(…) Agora você é testemunha viva, a se levar consigo por onde for, outra escola (professores em São Paulo, o estado mais rico da nação, ganhando 35% a menos do que os professores do Piauí, o estado mais pobre da nação), a mesma escola carente, também tem regência de aula, na comunidade excluída…, conteúdo, afeto, toque, alunos-filhos, alunos-cidadãos… e você sendo, talvez, a única esperança deles. A última. Dos filhos deste solo. Pátria Amada, Brasil. Que só é rica para os ricos, para os pobres (a maioria da população) não é. O que isso quer dizer? Privatarias (privatizações-roubos impunes) suspeitas e os nouveau riche da terceirização inumana, amoral, neoescravista (…).

Outro exemplo é este conto que se intitula “Morumbi S/A” em que se reproduz um pouco do dia a dia na comunidade:

“Escurece na favela, que eles rotulam comunidade. Cheiro de sexo, maconha e esgoto a céu aberto. Ao longe o Palácio dos Bandeirantes, de um incompetente e corrupto governo do cínico estado mínimo dito neoliberal. O neoliberalismo-abutre e a abandonada periferia sociedade anônima. De vez em quando as católicas autoridades constituídas de terno, gravata, farda, túnica e toga passam para receber o religioso terço do dízimo-propina para seus filhotes permanecerem subvivos e também dopados até as fuças. Farmácias e igrejas aos montes nos arredores. Por isso comentam que a palavra Morumbi, em tupi-guarani, quer dizer beronha, mosca varejeira do lixo. Afinal, somos nós ou eles, tá ligado, mano?”

Essa sociedade injusta, que vem desde tempos coloniais, está reproduzida em cada parágrafo. Como se pode constatar neste pequeno relato intitulado “Escrava rainha”:

“Gastavam mais com importados cachorros de raça, com caríssimas gruas de segurança, com guaritas e com vigias fortemente armados do que com a pobre senhorinha negra e magricela, a hipertensa empregada doméstica que, vez em quando, ainda oferecia o seu gordo seio leitoso para o júnior branquelo carente de uma desmiolada mãe perua da alta sociedade da cidade”.

III

A preocupação de Silas Corrêa Leite em reproduzir o clamor dos excluídos já aparece em Campo de trigo com corvos, contos (Joinville-SC, Editora Design, 2007), obra finalista do prêmio Telecom, Portugal 2007, em que o autor recupera flagrantes da luta de classes na pequena cidade de Itararé onde os privilegiados e seus rebentos “passeiam pra lá e pra cá em carros chiques num consumismo neobobo de jecas com grifes”, como se lê na primeira narrativa do livro.

Com título que remete a um quadro do pintor pós-impressionista holandês Vincent van Gogh (1853-1890), a obra é resultado do trabalho de um exímio “domador de estórias”, como o definiu no prefácio o poeta, contista e crítico português Antero Barbosa, ex-professor da Universidade do Porto, ao destacar sua capacidade de inventar histórias: “Deitando mão de uma linguagem que, afora o popular, o linguajar, a gíria, agarra os elementos específicos de dialetos, sintaxe indígena, eivando a escrita de vocábulos originados do tupi. Exercitando uma experiência genialmente rasgada noutros países de língua de expressão portuguesa por Mia Couto e Luandino”.

IV

Nascido em Monte Alegre, hoje Telêmaco Borba, no Paraná, mas tendo vivido até a juventude em Itararé, Silas Corrêa Leite, além de contista, é poeta, romancista, letrista, professor, bibliotecário, desenhista, jornalista, ensaísta e membro da União Brasileira de Escritores (UBE).

Nos últimos tempos, lançou Gute-Gute, barriga experimental de repertório (Rio de Janeiro, Editora Autografia, 2015); Goto, a lenda do reino encantado do barqueiro noturno do rio Itararé (Florianópolis, Clube de Autores Editora, 2013); Tibete, de quando você não quiser ser gente, romance (Rio de Janeiro, Editora Jaguatirica, 2017); O Lixeiro e o Presidente  (Curitiba, Kotter Editorial, 2019); Ele está no meio de nós (Curitiba, Kotter Editorial, 2018); Transpenumbra do Armagedon (São Paulo, Desconcertos Editora, 2021); Cavalos Selvagens, romance imaginativo (Curitiba/Taubaté: Editora Kotter  e Letra Selvagem, 2021); A Coisa: muito além do coração selvagem da vida (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2021); e Lampejos (Belo Horizonte, Sangre Editorial, 2019). É autor ainda de Porta-lapsos, poemas (São Paulo, Editora All-Print, 2005) e O Homem que Virou Cerveja, crônicas (São Paulo, Giz Editorial, 2009).

Consta de mais de cem antologias, inclusive no exterior, como na Antologia Multilingue de Letteratura Contemporanea, de Treton, Itália,e  Christmas Anthology, de Ohio/EUA. É autor do primeiro livro interativo da Internet, o e-book O Rinoceronte de Clarice, que virou tema de tese de mestrado na Universidade de Brasília (UnB) e de doutoramento na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

 

Favela Stories, de Silas Corrêa Leite.
Cotia-SP: Editora Cajuína, 108 páginas, 2022.

E-mail da editora: contato@editoracajuina.com.br
E-mail do autor: poesilas@terra.com.br Site do autor: poetasilascorrealeite.com.br

 

Campo de Trigo com Corvos, de Silas Corrêa Leite
Prefácio de Antero Barbosa.
J
araguá do Sul-SC: Design Editora

144 páginas, 2007.
E-mail da editora: atendimento@designeditora.com.br