Setenta vezes sete

 

 

 

 

 

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


  1. Tomás de Aquino (1225-1274), quando se deu conta das dificuldades com que se debatiam os principiantes nos estudos da teologia – uma verdadeira floresta de questões, muitas delas inúteis –, resolveu elaborar uma obra, breve e clara, que os ajudasse a saber questionar esse mundo misterioso que nos envolve como fonte de sentido do universo e da vida humana. Para este teólogo medieval, espantosamente inovador, o conhecimento da fé não exigia o suicídio da razão. Era, pelo contrário, o seu despertador. Como manifestou, num poema para a festa do Corpo de Deus, o seu lema antecipava, de certo modo, a ousadia da modernidade:atreve-te quanto puderes.

Depois de apresentar alguns dos caminhos da razoabilidade da afirmação da existência de Deus, parecia normal que tentasse mostrar como é Deus. Nada disso, acrescentando imediatamente: sobretudo como Deus não é.

Introduziu, desta forma, a chamada teologia negativa. A modéstia devia ser a característica fundamental da teologia. Não podemos meter Deus dentro dos nossos conceitos e é bom não esquecer que a Bíblia vive do conhecimento metafórico. Como disse o grande historiador, José Mattoso, é preciso recorrer à linguagem simbólica. Não sei como se faz. É preciso frequentar os poetas, os artistas, os contadores de histórias, os contemplativos, os filósofos, os pensadores… Sem metáforas, sem símbolos, não se consegue dar conta das contradições do real[1].

A que propósito lembro, aqui, a teologia negativa e a teologia simbólica? Ocorreu-me por causa do Evangelho deste Domingo[2]. Pedro, de forma generosa, consulta Jesus se deve perdoar sete vezes a quem o ofendeu. Já não era pouco!  No entanto, a resposta engraçada salta fora de qualquer contabilidade: não sete vezes, mas setenta vezes sete, isto é, sempre. Quando S. Mateus emprega esta expressão para dizer que devemos perdoar sempre, ainda complica mais a questão. Poderia dar a ideia de que nem sequer precisamos de tribunais. É tudo igual, sem distinção entre o bem e o mal, quase a consagração da injustiça.

A pergunta de Pedro já ultrapassava, em muito, a antiga lei de Talião: olho por olho, dente por dente. Era uma forma da justiça perfeita, nem mais nem menos. Já constava no Código de Hamurabi, o primeiro código de leis da História. Teve a sua origem na Mesopotâmia entre 1792 e 1750 a.C. que punia o criminoso de forma semelhante ao crime cometido e que transitou, em parte, para o Antigo Testamento.

A lei de Talião procurava ser uma justiça razoável. Procurava evitar a tentação da pura arbitrariedade na vingança, mas a matemática perfeita desta justiça não podia ser aplicada ao Deus de Jesus Cristo. O amor que Deus nos tem salta fora de qualquer contabilidade. É incondicional. Deus não é um contabilista. Ao revelar-se como o excesso do amor, torna-se o espelho do que deve ser o nosso comportamento.

As histórias evocadas, neste capítulo do Evangelho de S. Mateus, são para mostrar que Deus é um amor sem medida. Serve-se das mais variadas situações, para dizer que o Deus de Jesus Cristo é completamente diferente.

As nossas experiências são experiências de contraste. É nessas experiências e nas suas diferentes expressões humanas, que se revela a originalidade do amor que Deus nos tem, a Sua absoluta diferença. A história dos seres humanos é narrativa de Deus[3]. Nós, pelo contrário, somos sempre tentados a transpor para Deus as nossas medidas e leis, como se pudéssemos saber como Deus é. Tomás de Aquino destacou, por isso, que o trabalho da teologia é, sobretudo, o de mostrar como Deus não é! Não cabe nas nossas medidas idolátricas.

  1. Nos Evangelhos, Deus não suporta a exclusão farisaica dos chamados pecadores. São muitas essas referências. Basta ler o capítulo 18 de S. Lucas e os seus paralelos.

Como tem procurado destacar o Papa Francisco, o nome de Deus é Misericórdia, é sempre inclusivo, por isso, a Igreja não pode estar no mundo para condenar, mas para promover o encontro com aquele amor visceral que é a misericórdia de Deus. Para que isso aconteça, é necessário sair. Sair das igrejas e das paróquias, sair e ir à procura das pessoas onde elas se encontram, onde sofrem, onde esperam.

Este Papa, para que a misericórdia divina contagiasse a vida humana, foi ao ponto de estabelecer um ano completamente dedicado ao exercício da Misericórdia, porque a própria justiça é mais justa com a misericórdia[4].

A ideia e a realidade de um ano inteiro dedicado a mostrar a centralidade da misericórdia divina não pode ser para esquecer. Pelo contrário, deve penetrar constantemente a vida da Igreja, a prática dos cristãos.

  1. O Papa Francisco diz e faz. Mas sobretudo, provoca os outros a dizer e a fazer. Tinha denunciado, no programa do seu pontificado –A Alegria do Evangelho –, a economia que mata, nos seguintes termos: «Assim como o mandamento não matar põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social. Esta economia mata».

A partir daí, nasceu o projecto A Economia de Francisco, um movimento, um grupo de trabalho, um lugar de encontro e debate entre jovens economistas, empreendedores e change-makers de todo o mundo, em torno da necessidade de fazer um acordo para mudar a economia actual e instilar uma alma na economia de amanhã: visa repensar os axiomas que alicerçam o sistema económico dominante, reexaminando as suas bases e seguindo o que se pode definir como a visão e a missão  de Francisco de Assis: estar em fraternidade com o mundo – humano e não humano. É importante sublinhar que este impulso se estende muito além da experiência cristã, católica e ocidental, propondo um diálogo com diferentes fés, perspectivas e áreas do saber.

A Economia de Francisco nasceu de um apelo do Papa em 2019 para uma reunião a fim de promover um processo de mudança global que veja na união de propósitos não só os que têm o dom da fé, mas todos os seres humanos de boa vontade, para lá das diferenças de credo e de nacionalidade, unidos por um ideal de fraternidade, atento sobretudo aos pobres e aos excluídos[5].

Economia de Francisco é a economia da prática da misericórdia para que não haja excluídos, isto é, a economia que não mata, que procura uma vida para todos.

 

[1] Entrevista, Revista História (Jornal de Notícias, Maio 2016)

[2] Mt 18, 21-35

[3] Cf. Edward Schillebeeckx, L’histoire des hommes, récit de Dieu, Cerf, 1992

[4] Cf. Francisco, O nome de Deus é Misericórdia. Conversa com Andrea Tornielli, Planeta, 2015

[5] Cf. A Economia de Francisco. Um Glossário para reparar a linguagem da economia, UCP, 2023, pp. 21-22


17 Setembro 2023