Sete vezes José Régio & sua casa

NICOLAU SAIÃO

1 Régio e os escritores brasileiros

Que Régio foi apreciado e admirado por muitos escritores brasileiros é ponto assente. De Manuel Bandeira a Ribeiro Couto (que ele celebrou em comovido texto inserto no livro de homenagem póstuma ao poeta que conhecera em Portalegre numa noite singular) de Moreira da Fonseca a Cecília Meireles (que o antologiou com palavras à sua altura de excepção), de Jorge de Lima a Graciliano Ramos – diversos foram os autores do país irmão com quem trocou livros e menções de apreço. A sua atenção à literatura brasileira era consequência da sua atenção ao mundo das letras, que nunca esmoreceu ao longo dos anos que lhe couberam viver.

Detenhamo-nos um pouco sobre as dedicatórias de três dos escritores citados inscritas em livros remetidos a Régio ao longo do tempo. Elas trazem em si não só o selo da admiração mas, também, facultam pistas que nos permitem descortinar em que medida ou de que forma se perspectivava o seu interesse pelo autor de “Davam grandes passeios aos domingos…”.

Na edição aumentada de “Poesias completas”, da Americ.Edit., remetida a Régio em 1945, a dedicatória é a seguinte: “A José Régio – grande poeta de Deus e do Diabo – com o fraterno abraço do Manuel Bandeira”. O acento tónico é posto nos dois pólos que tanto moviam o misticismo de José Régio, os dados maiores do problema com que se debateu enquanto ser de religiosidade. Ao chamar a atenção para tal, Manuel Bandeira trazia à colação um dos pontos a que era o autor de “Mas Deus é grande” extremamente sensível, empenhado e indagador, sublinhando assim uma característica do seu pensamento e da sua poética.

Cecília Meireles, que em “Poetas novos de Portugal”(Edições Dois Mundos,1944) via em Régio um temperamento “dramático, oratório, gritando suas amarguras, discutindo-as com interlocutores que o ouvem da lama e das estrelas, falando-se e respondendo-se em voz alta, em monólogos arrebatados e arrebatadores”, inscreve no seu livro “Mar absoluto e outros poemas” a seguinte dedicatória: “A José Régio, essa veemente voz da poesia do mundo, com estima”. A tónica é posta pois na veemência, na força interior que atravessava o verbo de Régio, autor que ela entendia fazer parte da poesia do mundo, do universo da escrita maior que era o seu timbre. Para quem conhece a obra de Cecília Meireles, toda ela percorrida de atenção ao absoluto, percebe o que lhe subjaz e de que matéria é feito esse olhar e essa admiração.

A dedicatória de Moreira da Fonseca, um dos grandes poetas modernos do Brasil, cuja voz permanece pura e límpida, ática, definidora – e decerto permanecerá – é mais sucinta mas não menos significativa. Reza assim: “A José Régio, com viva admiração, of. o José Paulo Moreira Fonseca”. Está inscrita no livro Poesias, dado a lume em 1949 pela Livraria Editora José Olympio e foi enviado a Régio em Março de 1950. O que ela nos mostra é uma funda atenção de um dos – à altura – poetas novos do Brasil que, apesar de diferente nos seus temas e nos seus métodos de escrita, sabia compreender e apreciar a demanda poética e por isso vital do autor de “A velha casa”.

De entre outros, aqui ficam estes três exemplos do amor que a escrita de Régio despertava nesse país – distante geograficamente mas bem perto dele dum ponto de vista literário e humano.

«Portalegre», quadro de João Garção

 

Régio, como proposta e exemplo

Friedrich Holderlin, o grande poeta alemão cujo fado penoso o fez mergulhar nas brumas do espírito cerca de quarenta anos, disse num dos seus poemas “Quem pensou o mais fundo ama o mais vivo”. Esta frase pode aplicar-se, com inteira propriedade, a Régio e à sua obra.

Com efeito, toda a escrita do autor de “Davam grandes passeios aos domingos” é uma intensa celebração da vida ainda que por intermédio, até, de ritmos que apontariam para a nostalgia das moradas celestes. Os grandes autores, os autores nobres na completa acepção da palavra, é sempre para a vida e os seus prestígios, maiores ou menores, que norteiam o seu verbo, os seus amores e desamores, a íntima razão iluminada que os venha a salvar e permita também aos que os leiam a travessia de tempos ou lugares onde a ignomínia permanece ou tenta permanecer.

Basta ler os seus poemas, mesmo aqueles onde brilha a tristeza ou a dúvida, a sua prosa crítica, os seus romances e novelas, o seu teatro, para entender isto: em Régio, nenhuma ponta de cinismo ou de futilidade, de inflexões espúrias filhas das modas de arrabalde ou de megalópole vêm empanar o fulgor tanto do seu pensamento como do seu lirismo. Aquilo que articulou, com maior ou menor trajecto, tem sempre o selo da autenticidade, mesmo autocrítica, da fruição vital, mesmo dolorida – essa chancela vigorosa e certeira que possibilita às obras e aos homens que resistam ao decair dos anos e à erosão das épocas.

O desespero, por vezes, visitava-o e eis que lhe respondia – com o pundonor de Poeta – com a “Toada de Portalegre”. Era a dor de ter perdido alguém que o pungia – e eis as páginas vibrantes de drama e de força poética de “A velha casa”, onde se sente perpassar o vulto, discreto mas significativo, como nas maiores dores, de uma filha rememorada. Perturba-o o acordo/desacordo entre ele e Deus, entre ele e o símbolo do Homem encarnado e terreno cuja origem é de matriz divina? Eis os poemas que dessa luta resultam, sejam os de “Filho do Homem” como os outros onde se debateu com a grande equação metafísica.

“Quem pensou o mais fundo ama o mais vivo”… Sem dúvida e o infausto Holderlin, filho das musas e das parcas viu longe e alto. E repare-se que José Régio, mesmo tentado pela corda dos desesperados, jamais cedeu – mesmo apenas conceptualmente – ao abandono da cena. Digno, perscrutador, atento, de escrita vigiada e sem os arroubos fáceis de gente menor, sorveu até ao fim, “no gosto de mais um dia” a existência salubre dos criadores verdadeiros.

 

3 Relance sobre a pintura de Régio

Desenhar era, para Régio, uma naturalidade. Importa logo de início epigrafar esta naturalidade, que cultivara desde muito novo – quando ele e seu irmão Julio (como Joaquim Pacheco Neves assinala no seu livro Os desenhos de Régio) pintavam lado a lado nesse tempo de Natal colorido pelos prestígios da memória.

Independentemente de ser uma naturalidade era uma faculdade que ia bem para além do gosto inato de qualquer ser votado aos mundos onde o fulgor das coisas espirituais nos faz andar atentos à Arte. O mínimo que se poderá dizer de Régio é que era um bom desenhador – mesmo um excelente desenhador. Pintor de domingo? Bom – só se a maior atenção dada às letras e aos seus duros caminhos de concretização (para encher a célebre página branca é preciso muito esforço, muito suor, para além do talento, o que não está ao alcance dos zoilos) o remete para essa qualificação, aliás inadequada e frequentemente pacóvia. Claro que para um indivíduo como Régio não há hobbies deste cariz – são algo de demasiado fundo e grave, com a gravidade sagrada da vida e da mirada que sobre ela lança um ser de excepção como Régio foi.

Assentemos portanto que nele o interesse pela pintura e o acto de desenhar/pintar era um dos aspectos da sua rica vida de relação com os mistérios da arte entendida por extenso. Depois, se nos debruçarmos sobre o seu traço, os seus temas (a sua maneira ou, para utilizarmos a expressão do grande crítico português de artes plásticas, o arqtº Mário de Oliveira, a sua intenção) verificaremos que não andava longe do que se fazia naquele tempo: um figurativismo lírico em tons ora mansos ora adustos jogando com as cores complementares.

A visitação da figura humana é uma das constantes a que recorria, fossem essas figuras de entalhe sagrado ou profano. E, neste caso, haveria também que perguntar: onde fica traçada a linha que absolutamente separa o profano do sagrado? Pergunta que já a propósito de obras de diversos pintores autóctones ou estrangeiros – pense-se em Beckman, por exemplo, ou em Chagall ou, entre nós, em Mário Botas – se tem colocado, visto que uma figura de mulher é frequentemente a figura da Virgem (e vice-versa) e a figura de um mendigo pode ser a figura de Cristo, noutra encarnação, noutro místico enquadramento, noutra dimensão real ou onírica.

Régio revela-se inteiramente nessas silhuetas contorcidas, nesses rostos arrepanhados, nessas expressões de êxtase, de fúria, de inconcreta estupefacção – de interrogação, de medo, de alguma esperança. E, estranhamente, nalguma súbita frescura de um rosto, de um olhar, de um movimento, de uma feição secreta. Como Claude Roy, poder-se-ia perguntar: “Essa frescura será uma ilusão do nosso olhar ou a expressão da unanimidade das origens?”.

Na sua singeleza, há que ver os desenhos de Régio como os irmãos daqueles que Julio executava. Não é difícil, não é mesmo possível, não se ver nos de Régio a versão como num espelho trágico daquilo que em Julio é calma e lirismo, mas uma calma e um lirismo bafejados pelo sopro dum surrealismo metafórico, carregado de significados poéticos e de serenidade duramente conquistada. Julio (Saúl Dias), que tenho como um dos maiores poetas do século vinte português (a minha participação na homenagem que lhe foi feita em livro organizado por Valter Hugo Mãe não foi um act gratuit da minha parte, pois não escrevo textos de circunstância – e sim uma atitude de puro apreço) foi igualmente o protagonista central duma incursão da maravilha pictórica no mundo por vezes contraditório da pintura portuguesa. Régio, votado a outros mesteres mais instantes, que lhe carregavam o quotidiano de tarefas que à escrita iam desaguar, teve o seu percurso de diferente recorte. Mas o que fez brilha e distingue-se, porque pelos seus próprios meios se tinha – mais uma vez parafraseando Roy – humanizado, enriquecido, metamorfoseado.

E isto, repare-se, ante os mundos do alto e os do baixo: os da carne e os da alma, para tudo dizer.

 

Relance sobre a ironia 

Ao lermos Dickens, é preciso ter-se um coração bem duro para
não desatarmos a rir quando ele descreve a morte da pequena Nell.
Oscar Wilde

 

– Folgo muito em ver-vos de boa saúde – disse o barão com uma vénia irrepreensível. – E vosso excelente pai…continua bem morto, não é verdade?

La Guerche deu-lhe de imediato um bofetão.

– Há mais de que rir, senhor! – cuspiu entredentes, levando a mão ao punho da espada.

Amedée Achard

                         Era um homem tão inteligente que já não servia para nada.

Lichtenberg

A ironia, que segundo algumas boas opiniões é prima do humor negro – ainda que, decerto, não prima carnal – e irmã colaça do riso sardónico (embora apenas por portas-travessas), sendo de igual modo vizinha da tragédia e, nos casos extremos, parente especialíssima do ridículo, funciona um pouco à guisa da famosa estalagem espanhola das novelas: só se come o que para lá se leva. E a ironia involuntária, que outros nos garantem ser uma espécie em vias de extinção, também é significativa, dando de barato que tem ao que parece muito a ver com o Destino que comanda a rota dos homens e o drama das sociedades. Neste especialíssimo caso, conviria então confrontá-la com a sua própria imagem, como num espelho em que as figuras, a figura, aparecesse invertida, com um brilho dramático nos olhos arregalados. Porque o irónico ponto que subjaz à ironia tem muito a ver com a frase terrível de António Maria Lisboa, que reza: “Todo o acto premeditado ou leviano tem a sua guilhotina própria”. Ou, para seguirmos Lautréamont: “Ride, mas chorai ao mesmo tempo. Se não puderdes chorar pelos olhos, chorai pela boca. Se ainda assim fôr impossível, urinai. Mas advirto-vos de que um líquido qualquer é aqui necessário”.

 Tal como já se disse do romancista, o indivíduo que utiliza com maior ou menor propriedade a ironia, mesmo amarga, bem vistas as coisas é alguém para o qual nem tudo está definitivamente perdido. Acreditado o seu poder apelativo, no fundo ela funciona no interior do Sistema e dos diversos sistemas em que este se revela. E tem a sua própria operacionalidade: sublinha ou salienta, por excesso ou por absurdo, uma situação limite. A não ser assim tratar-se-ia de simples desabafo. Ou, pior ainda, não passaria de mera piada menos ou mais grosseira e, se calhar, nem sequer muito perspicaz. O ironista, mesmo não sistemático, afinal de contas sente sempre que do outro lado está alguém, alguma coisa individual ou colectiva, embora de porte dúbio ou mesmo francamente duplo. O que não deixa de ser um pouco contraditório. Na verdade, esse ser e essa coisa possuirá simultaneamente uma dada deficiência de visão interior ou de entrosamento e, ao mesmo tempo, a faculdade de sentir a singularidade da proposta mais ou menos inspirada, mais ou menos cruel. Para depois – indo ao encontro do desejo impresso do seu interlocutor – se morigerar, tendo assim definitivo acesso às moradas em que oficiam os inteligentes e os deuses, com suas diversas encarnações civis. Mas será mesmo assim, sempre assim? Tenho para mim que não. Afinal, a ironia tem como alvo e como destinatário não só pessoas ou instituições mas também ou sobretudo situações, sucessos, imanências. Falemos claro: na verdade, o alvo último da ironia vem sempre a ser a circunstância final e primeira que dá origem aos números e às coisas. E que o ironista, evidentemente, entende que pelo menos se distraíu dos seus deveres de competência. Por isso é que os mantenedores das religiões reveladas (ainda que laicas ou agindo no século), muito sensatamente lá na sua deles opinião ou concepção, têm visto sempre a ironia como ataque mais ou menos velado à divindade e seus sacrais prestígios. No que lhes diz parte, de seu natural não se revestem eles sempre duma solene, majestática presença? O próprio mestre das trevas não a aprecia – ainda que o faça, digamos, por razões de “racionalidade operacional” do seu múnus peculiar: naquelas paragens, de acordo com a visão canónica, é-se mais partidário do sarcasmo gélido, da chocarrice desgarradora, que afirma evidentemente a falta de razão atribuída às obras do Arquitecto. Por outro lado, no sujeito que ironiza há igualmente com frequência, também, um céptico que vive paredes-meias, em conflito ou desassossego, com um moralista. Mas moralista de tipo especial: um operador a meio caminho entre o cínico e o afectivo melancólico. E é por isso que a ironia é na maioria dos casos como que meia-defesa, tanto mais que traz frequentemente – diria antes: presume sempre – implícita uma certa nostalgia, um certo desgosto de viver, por vezes uma evidente mágoa. Se o riso (até o riso amarelo) é próprio do homem, o auto-conhecimento e o poderoso conhecimento dos outros é mais coisa de deuses, não sendo pacífico imaginar Dionísio ou Ahura-Mazda dirigindo frases irónicas aos seus companheiros de imortalidade, ou sequer a comunicar-se com o homem mediante finas ironias. A voz dos deuses, se para aí estão virados, fala-nos com as inflexões da seriedade, da tragédia ou da absoluta iluminação. Da potestade para a criatura, na carne e no sangue – que como referiu ironicamente Woody Allen é a melhor coisinha que um tipo pode trazer dentro das veias – não se funciona senão na base de uma extrema gravidade, que não admite cenários propostos pela nossa pobre e mortal insuficiência. Neste plano, sabe-se como a Sociedade britânica (que era o deus ex-machina da época) agiu para com Wilde, que durante anos a crivou resolutamente de ironias divertidas e certeiras sem contudo se colocar fora dela. Porque o ironista, que por razões intrínsecas não se apercebe ou não quer verdadeiramente aperceber-se de que a salubridade (não falo em eficácia) implica de facto a prática do humor negro, o qual constitui efectivamente a única real defesa contra o opróbio e o negrume, é no fundo um homem de sistema, porquanto a ironia implica mesmo a assumpção do Sistema. Ele conhece bem quais as armas temíveis que se acumulam a seu lado: vê-as crescer, sente-as desenvolverem-se e propagarem-se, assiste com inquietação ao seu império – que é evidenciado em palavras e acontecimentos, em circuitos e corporações. Ele mesmo se nota frequentemente um pouco fraco, um pouco imbele, um pouco febril, sem as armas miraculosas de que qualquer indivíduo consciente sonharia dispôr para atacar com alguma hipótese de êxito os monstros sociais ou individuais que se agitam em torno. Então, percebe que urge fazer qualquer coisa de forte e de agudo que ilumine o descampado, que erga os corações: é pois assim que, por decisão própria, se chega à ironia, essa inteligência um pouco pérfida, um pouco tímida, um pouco dissimulada que já alguém um dia disse ser a capa e espada dos magoados e dos indecisos e dos que habitam um calvário particular.

A ironia – severa, argumentada, fina, magoada ou sibilina – tem por missão específica funcionar como um filtro que purga dos maus humores e dos fluidos mefíticos a mediana racionalidade que nos deve mover. É um bom remédio contra essas poções maléficas ou duvidosas que nos maculam e nos turvam o quotidiano arguto e salutar que entendemos merecer, para certeira e livremente caminharmos e falarmos. É por isso que o discurso irónico, para verdadeiramente existir, tem de se fazer no interior do circuito comum. É, portanto, sempre social e nunca associal. O que, todavia, não constitui explicação determinante para o Poder nem mesmo lhe interessa muito (a não ser para proibir ou suspeitar), uma vez que este não se move no domínio das exigências éticas mas sim no terreno ervoso da guerra surda às virtualidades mais altas do ser humano.

Mas a mais bela ironia, a mais nobre e talvez a mais legítima, a que sem qualquer sobranceria nos fala sempre do fundo dos tempos, é a que no fim, ou ao fim e ao cabo, ironicamente e quase sem se sentir ou saber, envolve a obra ou se projecta do seu todo, desse produto voluntário ou involuntário de uma vida, já definitivo e com a perfeição do que acabou para sempre e para a eternidade. É, com efeito, o dia final de Giacomo Casanova, esse grande ironista vital, recordando com amargura e enlevamento a sua infância nas ruas da Sereníssima. É Wilde, adiposo e devastado, sentado num banco de jardim em Paris, olhando melancolicamente ao entardecer – enquanto ia distribuindo miolos de pão pela passarada – os transeuntes que decerto o desconheciam, que possivelmente o ignoravam ou quando muito lhe estimariam o seu enorme talento de interrogador do fantástico.

E é Régio, que nos confia num dos seus últimos poemas publicados em livro que “o homem só quer abrir./ Chegou por fim a saber/ que venha lá quem vier/ seja quem fôr/ só um dos dois pode ser/ desde que não a fingir:/ A morte, o amor.”

 

***

 

Um dos textos em que mais intensamente se sente a ironia regiana é a novela supracitada (Davam grandes passeios ao domingo). Através de uma curta análise, não exaustiva mas apenas indicativa das linhas principais, é possível perceber de que tipo de elementos se forma a sua estrutura, uma vez que o discurso irónico – como acima acentuámos – não se realiza de uma só maneira, não assume uma única possível efectivação. É claro que a ironia de Eça é bem diversa, por exemplo, da de Jacques Tombelle, a de Raymond Chandler pouco tem a ver com a de Gide.

De forma um pouco matreira – que a ironia serve-se quando é preciso dum certo ar jesuítico para melhor chegar ao seu alvo – a arguta escrita regiana enquanto convive com a tragédia de Rosa Maria e seus pares de jornada retrata de igual modo a cidade provinciana e cruel, beata e intempestiva, acanalhada nos seus próceres e nos seus propósitos, no seu quotidiano aparentemente rural e sereno mas, na verdade, brutal e impiedoso. Dizia Brassens que “les plus grands cons sont les petits cons” e tal certeira asserção vale inteiramente para as cidades. Mas a maior (mais dolorosa?) ironia, que vai para além do que se escreveu – tal como se dá na literatura queirosiana – é a circunstância da cidade em apreço, mau grado a passagem do tempo e dos ritmos com suposta tintagem democrática, continuar fechada, mazomba, encordoada em vivências e em gentes como quando Régio nela residiu e a descreveu. Ainda ali existem os ultramontanos aproveitadores e hipócritas, os politicões de baixo perfil, as famílas senhoris e de bom porte (ainda que um pouco ratado pelo dente hostil da vilanagem); ainda há as damas manteúdas, as mediocridades impantes, um sistema de castas arrivistas ou sedimentadas encrustado num Alentejo deflaccionado e de escassas honras onde o discurso provinciano segue sendo inculto e pretensioso, tratante e de baixo estofo. Rosa Maria pode continuar a sonhar, que muito poucos repararão. Pode nostalgicamente continuar a esperar que um dia, com um garotito pela mão, passeará para os lados do Bonfim, para os lados dos Assentos, pela estrada que vai até à Senhora da Penha. Portalegre, sem dúvida, ainda vai tendo belos passeios para serem dados, uma vez que tudo segue quase igual ao de antigamente: a estação dos combóios ainda é a uma dúzia de quilómetros e a própria frequência de passagem daqueles permanece – por obra e graça da tutela – escassa e pouco serviçal. Todavia, os “Chicos Paleiros” já não se apinocam no cavalicoque. Agora usam o carro de média marca e o jipão dado pela munificência dos subsídios europeus.

Vejamos como Régio, de um só golpe, define com eficiência algo discreta o tipo de hipocrisia vigente: “Em Portalegre, pelo Carnaval, estavam muito em moda tais assaltos. Consistiam no seguinte: um alegre rancho de indivíduos de ambos os sexos (e várias idades, por ter cada uma o seu papel) marcava certa noite para mais ou menos se mascarar, se dispor a dançar, a jogar o Carnaval, a comer, a beber. Nestas amáveis disposições irrompia portas a dentro de determinada família, exigindo-lhe a realização de tais intentos. Claro que a família assaltada era secretamente prevenida, o que permitia evitarem-se desagradáveis surpresas. Entrava no jogo fingindo nada saber; mas encomendava música, preparava uma ou duas salas, fornecia-se de comes-e-bebes de toda a espécie”. Esta passagem define uma situação que é esclarecida pelo que lá não está dito mas nós conhecemos: a circunstância de, para uma certa gente turiferária e inconsciente (o que aliás a novela sublinha com elegância), a vida não passar de um jogo algo pacóvio, natural nessa medida, sinistramente lógico. Ironicamente, essa gente de quem Régio nunca se viu realmente livre enquanto viveu em Portalegre, essas presenças espúrias que tantas vezes lhe estorvaram o quotidiano. Valia-lhe, felizmente, a frequentação de outras gentes mais claras e mais sabedoras. Régio, no entanto, que como ele mesmo admite aqui e ali nunca deixou de ser um provincial (que não um provinciano), lança àqueles um olhar reprovador mas não adusto – o que é característica da ironia não-socrática praticada por autores ocidentais e cristãos e com certa lhaneza de comportamento.

E no final da novela, naquela tirada desgarradora que é das mais comoventes da literatura portuguesa, a sua personagem principal vê claramente visto o buraco negro de um futuro sem contemplações. Sem contemplações? Bem, não sejamos excessivos: “Desde que principiasse a devanear, Rosa Maria aliviava. O seu terrível momento passara, por então. Só estava ainda um pouco assustada por continuar sujeita àqueles acessos. Dominá-los-ia, porém. Correu outra vez, devagarinho, a lingueta da chave; disse do corredor: – Já lá vou, tia Alice. Vê como já passou? Estou perfeitamente boa.

E voltou dentro para chapejar os olhos com água”.    

 

***

Se “Davam grandes passeios aos domingos” é a história dum drama, “Os alicerces da realidade” é a crónica duma caminhada para a loucura, uma viagem no interior duma tragicomédia. Silvestre, funcionário aposentado, ao passar um dia por um local da cidade – cenário construído a partir das vivências deambulatórias e residenciais do A. – tem “uma impressão estranha”. A partir daí o seu dia-a-dia transfigurar-se-á paulatinamente, tornando Silvestre incapaz para o normalizado convívio com os membros da sua comunidade. Neste conto, a meu gosto um dos melhores da produção regiana, notam-se os mecanismos do discurso irónico como que num corte transversal. Silvestre, julgado pelos padrões clínicos ou do senso comum pode de facto ser um louco (inofensivo), mas deixa-se adivinhar que a verdadeira loucura é bem outra. É, por exemplo, a loucura social, travestida de normal normalidade, que torna inaptos os Silvestres deste mundo que, por muito loucos que sejam, conseguem pelo menos ter a percepção doutros mundos, doutros espaços e doutros tempos. “Ele, ao menos, sabe que sonha. Pela certeza com que o sabe, também sabe que não pode, agora, tardar muito a acordar, – já tem demorado um pouco. Para quê atormentar-se? Qualquer dia, acorda mesmo.”, escreve-se no fim do conto, servindo este finale de Silvestre como comentário aos confrades que, feridos por destino semelhante mas não igual, de repente desencadeavam cenas chocantes, espojando-se no chão ou arrojando-se contra as paredes, ouvindo-se verdadeiros urros como de torturados, acendendo-se brigas violentas, de modo que era preciso empregar a força contra esses pobres energúmenos.(sic).

O que torna este conto significativo e definidor duma característica peculiar da ironia é que aqui e ali se salpica de trechos no género deste: ”A verdade é que ao próprio Silvestre parecia agora que nunca as suas faculdades intelectuais haviam dado tal rendimento. Como serei eu, seu obscuro biógrafo, que o contradiga?”. Neste caso é o autor que por ironia da escrita fala pela boca da criatura, melhor apetrechada para determinados entendimentos. E que é o seu alter ego evidente, sua máquina de chilrear (parafraseando Klee), sua temerosa e, no fundo, temida personificação. Régio, que para mim – que o via passar nas ruas da cidade – sempre foi uma figura de pessoalíssimo recorte, independentemente de tudo o resto era o que se usa chamar, com apreço, um tipo). Ele sabia bem que a ironia, sem ser humor, tem como numa chapa em negativo um determinado tipo de humor e, emparelhada com este, uma certa tristeza, uma certa medida ou desmedida angústia. “Houvera beija-mão às senhoras, entre os homens os cordiais cumprimentos de indivíduos da mesma classe, ditos de espírito e, claro está, um grande à-vontade elegante, no meio do qual se esforçara Silvestre por se apagar, não vendo outra maneira de esconder as suas inibições. Aliás lhe não fora difícil: os que iam chegando encaravam-no com um pequenino choque de surpresa, que logo disfarçavam. Alguns, os mais novos, rapidissimamente o analisavam dos pés à cabeça. As damas relanceavam-lhe um breve olhar, que pareciam recolher. Apresentado ou não, Silvestre ficava de lado, via tudo isto, procurava fingir que não estava presente(…)”, escreve a dado passo. E medite-se um segundo no nome do seu herói, quase igual – e tendo o mesmo significado – ao do protagonista (Silvério) de “Os paradoxos do bem”.

Ao mundo portalegrense das personalidades conspícuas, ao universo das senhoras donas, dos senhores directores, dos senhores funcionários, senhores com princípio meio e fim, opõe o escritor a figura inacabada, em construção ou em declínio, dos silvestres, que viviam na religiosidade existencial de Régio como frutos naturais duma vida mais densa e regenerada. Mesmo que através do equívoco ou da loucura.

E quer-se, à puridade, concepção criativa mais irónica?

 

 ***

 

Em muitas mais páginas, em muitas mais obras se poderia detectar o halo irónico. Cremos, todavia, que epigrafámos suficientemente a estrutura e a conformação da ironia regiana. Não é pois necessário que mais alongadamente – com redundância – a registemos em poemas vários, no teatro e até na crítica. Régio, que era claramente um espírito dramático, em certas ocasiões mesmo um temperamento trágico, contrapontava-lhes um saudável sentido das realidades. Sem ironia o digo – realidades. Porque, como se compreende, não é ao contemplar o trágico ou o dramático da existência que se sente o apelo temível “da corda dos desesperados” – e sim ao meditar-se, a meu ver extemporaneamente, na irrisão que alguns dizem ser a vida. Para Régio, como decerto para muitos de nós, encarada com realismo verifica-se que ela possui um envoltório de sagrado que destroça essa irrisão. Que lhe não pertence, que lhe não é própria. Que efectivamente pertence, sim, às sociedades organizadas, que a ironia – fina, sibilina ou violenta – bem sabe definir e situar.

 

Para o melhor conhecimento de Régio

O autor de “Davam grandes passeios aos domingos” (que tem Portalegre não só como pano de fundo mas mesmo, diria eu, como “protagonista”) um dos carácteres mais singulares das letras portuguesas, nasceu como é sabido em Vila do Conde (1901) e aí faleceu de ataque cardíaco em 1969. Poeta, dramaturgo, romancista, contista, ensaísta e pensador mas também pintor nas suas horas e coleccionador antiquário de destaque, foi de igual modo uma significativa figura cívica, tendo participado activamente na oposição à ditadura salazarista. Viveu muitos anos na cidade alto-alentejana a exercer a sua tarefa de professor liceal, sendo por isso que nela existe uma Casa-Museu com o seu nome – sediada precisamente na “Velha Casa”.

Fui durante 13 anos – até me aposentar cerca de um ano atrás – o funcionário responsável pelo Centro de Estudos que lhe está anexo.

Devido a este facto, acrescentado à minha condição de publicista, debrucei-me ao longo dos tempos sobre a sua vida, nomeadamente sobre as relações epistolares e literárias que manteve com escritores brasileiros como Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Ribeiro Couto (que o visitou numa noite que refiro noutro texto), Moreira da Fonseca, Murillo Mendes, Herberto Sales, Álvaro Lins, Mauro Mota, Dante Milano, Henriqueta Lisboa, Melo Neto, etc. Na sua biblioteca pessoal e no pequeno acervo conservado no Centro de Estudos há, para além de livros destes autores, vestígios do seu mútuo relacionamento, nomeadamente uma curiosa fotografia que lhe enviou o grande poeta de “Louvação dos Poetas” com o propósito expresso de Régio conferir se era ou não verdade ser ele “muito feio”(sic).

Nesse contacto que estabeleci com a figura de Régio um caso avultou a partir de dada altura a meus olhos: a sistemática ocultação que se tem efectuado sobre a relevância de ter tido uma filha de uma senhora com quem se relacionou quando ainda era estudante em Coimbra, em cuja Universidade se licenciou em Filologia Românica. Apesar de citado por destacados estudiosos da vida e da obra regiana, nunca este facto – que Régio jamais esqueceria e considerou como o mais importante da sua vida – recebeu uma atenção específica de vulto. E isso considero-o eventualmente caracterizador de sectores da cena intelectual lusitana onde, a par dum ambíguo amiguismo, existe ainda uma mentalidade conservadora mesmo da parte de indivíduos que se enroupam com vestes progressistas. Para ilustrar, aqui deixo aos leitores que o não conheçam o comovente poema “Obsessão”, para que se veja o quanto ele revela da verdade interior que subjazia ao autor de “Poemas de Deus e do Diabo” – e que de igual modo dá também sinal claro do seu estro de excepção:

 

Sobre umas pobres rosas desfolhadas,

Vestidinha de branco, imóvel, fria,

Ela estava ali pronta para o fim.

Eu pensava: “De tudo, eis o que resta!”

E entre as pálpebrazinhas mal fechadas,

(Como um raio de sol por uma fresta)

O seu olhar inda me via,

E despedia-se de mim.

 

Despedir-se, porquê?, se nunca mais,

Sobre essas pobres rosas desfolhadas,

A deixei eu de ver…, imóvel, fria.

Pois eu, acaso vivo onde apareço?

Lutas, ódios, amores, sonhos de glória, ideais,

Tudo me esqueceu já! Só não esqueço,

Entre as pálpebrazinhas mal fechadas,

Aquele olhar que inda me via.

                                              [in: “Mas Deus é Grande”]

 

“Toada de Portalegre” – dois rascunhos prévios

A poesia, já se sabe, é a seu modo um processo de acumulação e juntura. Qual o seu secreto encadeamento, qual o percurso que toma a sua ordenação, de que forma o poeta talha e restaura, observa e finalmente conclui? Perguntava Camus, a certo passo dum texto seu: “Quem testemunhará por nós?” e respondia de imediato: “As nossas obras”. Apontava, é claro, para o testemunho da obra acabada no seu ciclo de coisa espiritual, de matéria interior que transporta para os vindouros, com toda a sua carga própria, as perguntas e as respostas que nos é dado formular.

Mas, em simultâneo, é fascinante e importante a mais dum título que tanto quanto o possamos fazer nos debrucemos sobre o suporte em si, seja no caso da poesia ou da pintura, da música ou da filosofia, serve dizer: nos ramos das actividades superiores que, por o serem, não estão dependentes de eventuais manobras ilegítimas de tiranos ou de equívocos mandantes, ainda que a matéria em que se revelem esteja por vezes submetida a ditames exteriores à vontade de quem as utiliza. Porque, nas suas vias interiores, os poetas não têm dono, não são assimiláveis pelos que, frequentemente, tentam à custa deles estabelecer currículos, efectuar brilharetes duvidosos, bolsar jaculatórias de nulo poder encantatório. Não falando, é claro, no caso extremo de quem subtrai à visão e fruição de outrem as produções com que os autores buscam interpelar o seu tempo e o tempo a vir.

Já vários ensaístas e poetas têm analisado proficientemente a questão dos vestígios. Deixa-se adivinhar a seguinte pergunta: o rigor interior duma obra pode ser divisado, digamos, no rigor do suporte? É inevitável lembrarmo-nos de Balzac e das sucessivas emendas a que submetia os seus escritos, cujos gatafunhos desesperavam os tipógrafos, ou das partituras de Schubert frequentemente lançadas num qualquer papelucho que lhe caía nas mãos, ou até sobre o tampo de mesas até que um fortuito papel salvador lhe chegasse…

Como se estrutura pois a matéria criada, de que maneira peculiar voga e navega o processo criador – tal pode entrever-se pela observação desses vestígios que os diversos autores nos legam ou simplesmente vão deixando na sua viagem pelo tempo que lhes coube viver. No caso que a seguir abordaremos isso naturalmente acontece.

Cedidas em fotocópia pelo Dr. Manuel Inácio Pestana – a quem fora oferecida reprodução das mesmas pelo coleccionador António Capucho – temos na nossa frente as duas versões prévias (deverá chamar-se-lhes rascunhos?) do conhecido texto regiano que fez e muito bem momentos inesquecíveis de muitos leitores tanto lusitanos como brasileiros. Dediquemos-lhes atenção, visando deixar algumas pistas consistentes.

A primeira versão, exarada na bela e clara letra de Régio, tem emendas em todas as páginas, sendo de assinalar que a “emenda” da décima é um acrescento no verso da mesma; acrescento significativo, uma vez que é a famosa reflexão que começa: “O amor, a amizade e quantos/ Mais sonhos de ouro eu sonhara,(…)” aliás também emendada na oitava linha. As páginas 2, 5, 7 e 10 são ilustradas por desenhos como que ao correr da pena.

Contudo, apesar de o serem, diria que nos mostram a preocupação plástica do poeta duma forma incisiva: o desenho da página 10, por exemplo, patenteia-nos um rosto arrepanhado, dorido, inclinado sobre a esquerda (tradicionalmente o lado do coração), um rosto que o poeta frequentemente plasmou em desenhos diversos. Na segunda versão, apenas uma palavra foi substituída na primeira linha da oitava página – retomando aliás a palavra escrita na primeira versão: desgraçados em vez de enforcados, que para Régio decerto marcava em demasia a sequência da estrutura do poema. De assinalar, ainda, que nenhuma destas versões manuscritas contém a palavra atónito, que se lê na versão publicada em livro (“Deixado só, nulo, atónito…); nelas, a que consta é a palavra vácuo.

“Esta é a minha mão das palavras”, diz num seu poema Carlos Edmundo de Ory (em excelente tradução de Herberto Hélder). A mão interior dos poetas procura na escuridão e no silencio “le mot juste” para tentar redefinir o mundo, para adequar o seu percurso próprio a uma rota de liberdade, de felicidade e de sabedoria.

É essa a única aposta que vale a pena como referia Mathew Mead, a única tarefa que ao poeta eventualmente caberá e que num universo de inquietações várias faz de facto sentido. O resto, coisas um tanto espúrias que a vida civil pela mão de alguns tenta colar ao perfil dos criadores, é apenas acrescento frequentemente inútil ou dispensável.

Régio, como grande escritor que era, sabia-o na perfeição.

 

7 Régio e Ribeiro  Couto

Nas minhas andanças, ao correr dos dias, por esta cidade onde vivo há mais de meio século, é inevitável que de entre as recordações de pessoas e fragmentos de minutos, de pedaços de acontecimentos, saia a dada altura a figura bem destacada de Régio: quando, frequentador encartado que era de filmes – chegou a fazer parte dos corpos gerentes do primeiro Cine-Clube (o primeiro e último, aliás…) existente na cidade, que por acaso fortuito viria uma vintena de anos depois do seu falecimento a ter-me como orientador – caminhava na minha frente pela rua bordejada de árvores do “bairro alto” até chegarmos ao “Alentejano” onde usávamos abancar, cada um em sua mesa, para um retemperador “galão” (copo de café com leite) meditado com uma torradinha acalentadora daquele tempo de inverno. Ou quando, ao longo do verão, nas tardes e noitinhas de “calma e voluptuosidade” duma Portalegre familiar e acolhedora, ele jornadeava acompanhado de membros da sua informal tertúlia nas Catacumbas do Marchão, amorável sala de pasto/cervejaria que faz a saudade de muitos confrades.

Tenho posto a mim mesmo – já vão ver porquê – a questão de quais ruas ele e um visitante de longe terão percorrido em certa noite. Viagem que a meus olhos aparece mesmo como iniciática – senão de sabedorias herméticas ou tradicionais, pelo menos de entrosamento no encontro, o encontro em que dois seres podem, por sua íntima convivência, achar-se de maneira incontornável e, no fundo, inesquecível.

Num dos livros do escritor de Santos intitulado “Entre mar e rio”, um notável acervo de poemas “escrito e vivido no meigo país” (Portugal) conforme se lê no in memoriam de abertura, há uma curiosa dedicatória no exemplar oferecido ao poeta vilacondense que portalegrense se cifrou; datada de Junho de 1952, reza assim: “A José Régio, recordando a sua hospitalidade numa noite de Portalegre, o seu admirador – Ribeiro Couto”.

A que noite se referia o autor de “Cancioneiro do ausente”, como teria sido esse momento de fraternal comunhão recordado pelo poeta brasileiro? Iremos sabê-lo pelo próprio Régio, que na secção “Adeus a Ribeiro Couto” – inserida no final do livro “Sentimento lusitano”, edição portuguesa da “Ed. Livros do Brasil”em que este exprimia o “sentimento da Lusitanidade” que em si morava – dá a lume um testemunho vívido, que aliás homenageia o confrade que acabara de falecer.

Aqui fica o texto de Régio, que desta forma se juntava a Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, João Gaspar Simões, Miguel Torga, Matilde Rosa Araújo entre outros mais, na recordação em que celebraram “o homem cordial” – como lhe chamou Fidelino de Figueiredo – que tão forte e adequadamente soube amar o nosso País e deixou pontes de fraternidade corroboradas pelo tempo:

“Recordação de Ribeiro Couto: – Uma tarde, em Portalegre, eu tinha ido jantar ao pequeno hotel do costume, – e sentia-me triste e macambúzio. Um meu colega comia ao lado e, inclinando-se para mim, disse: “Parece-me que está ali o Ribeiro Couto”. Ergui os olhos, timidamente procurei pela sala… Com efeito: o Ribeiro Couto estava no outro extremo. Reconheci-o por um retrato desenhado que viera num jornal. Como disse, eu estava macambúzio, num dos meus dias de retraimento e pessimismo, – pouco ou nada disposto a qualquer convivência. Logo baixei os olhos, alarmado, e segredei ao meu vizinho de mesa: “Não diga nada! Não estou hoje com disposição…”. Debalde, porém, tentava fechar-me outra vez na minha concha. Estava ali o Ribeiro Couto!, ali, em Portalegre, naquela sala daquele pequeno hotel onde eu comia, e onde, naturalmente, os encontros desses não podiam deixar de ser raros. De aí a momentos, o rapazito que nos servia veio trazer-me um recado: “O Sr. Ribeiro Couto manda cumprimentar o Sr. José Régio”. Contrariado, levantei os olhos para o outro extremo da sala, onde ele estava. Esbocei um cumprimento, um sorriso constrangido, um vago gesto amigável… Mas Ribeiro Couto não se contentava com tão pouco. Mesmo do outro extremo da sala, começou comigo uma conversa que prosseguiu depois no café, depois pelas ruas desertas da cidade, e depois terminou em minha casa pelas quatro ou cinco horas da manhã, a bebermos uma bagaceira que era o que eu lá tinha. Segundo me disse, ele ia passar uns tempos num sanatório. Mas falava, ria, bebia, expandia-se, comunicava de tal modo, que todo o meu retraimento se fundira a essa chama.

Como é bom conhecer de perto um verdadeiro poeta, encontrar nele um homem tão vivo e tão simples, ferver ao seu contacto, reatar através dele uma fraternidade humana ameaçada!… Eu quase nada devia já pensar, nessa madrugada em que nos separámos para nos não voltarmos a encontrar na vida senão fugidamente; mas decerto sentia isto muito ao fundo de mim, e sempre que me lembro de Ribeiro Couto o volto a sentir”.

 

A Casa de José Régio

Por fora, há largos anos que a casa me é familiar.

Tanto quanto posso recordar-me vi-a pela primeira vez há muito tempo, numa manhã em que os meus pais me levaram a passear na carroça do primo António Borralho, um hortelão da velha estirpe tal como meu avô paterno. Morávamos fora de portas – e lá fomos nós ao ritmo brando do macho pela estrada que a partir da Vila Nova, virando à direita, passa pelo cemitério sempre rodando no sentido dos ponteiros do relógio e depois entronca noutras vias para outros rumos campestres ou citadinos.

“Não têm cor as paredes destas casas/ basta-lhes o horizonte – ângulo traçado/ entre quem/ as olha e os restos de lonjura no passeio não/ têm cor e já nem lugar ruas/ sem passos de lhes perder/ palavras/ na arquitectura de outras geometrias” assim viu modernamente R.Ventura o bloco de casas que formaram, no século XVIII, o conjunto comprado a Marcos Vaz de Brito, conforme se pode ler no Livro III das fazendas, juros e rendimentos rubricados pelo vigário-geral do bispado, dr. Grandão, cujo termo de abertura é datado de 12 de Maio de 1733 – tal como nos conta o mestre em teologia Bonifácio dos Santos Bernardo em artigo que descreve, com soma de pormenores, a “Fundação e Espírito do Beatério ou Recolhimento de S.Brás do Bonfim em Portalegre”. Daí o nome de “Quina das Beatas” (e, na cidade, alguns pensariam que por motivos mais pitorescos) dado ao ângulo que é formado pela casa adjacente que, de há anos, albergava nos seus baixos uma oficina de automóveis municipais e da Guarda Nacional Republicana (dantes, era uma cavalariça onde os gaiatos como eu iam pedir alfarrobas) e, nos altos, com entrada pela outra banda, constituiu residência tradicionalmente atribuída ao comandante do Quartel sediado na cidade e que ao presente forma guardas republicanos.

Outros a têm visto doutras maneiras. O próprio Régio, no texto A Minha Casa de Portalegre, descreveu-a como segue: “Quando pela primeira vez vi, de noite, a casa que se tornaria a minha Casa de Portalegre, – pareceu-me um casarão sinistro. O que tinha diante de mim era uma parede nua – raríssimas vezes a frontaria duma casa me deu tal impressão de nua, muda, fechada – com uma janela ao meio e outra de cada lado, estas mais pequenas e distanciadas. Por baixo da janela central, de sacada, havia uma porta estreita, sobre um degrau. À direita, um portão de armazém que se me afigurou tapado por uma única e enorme chapa. À esquerda, quase ao rés-do-chão, outra janela. Como cá de baixo se não via o telhado, que devia descer para um lado e outro, pois o remate da parede fazia ao centro um ângulo agudo, aquela fachada não parecia real. Ao mesmo tempo vivia duma vida intensa mas hostil, cerrada sobre si mesma. Erguida, para mais, numa espécie de morro achatado e pedregoso, a que se ascendia por umas escadinhas de pedra, ficava fora da estrada e tinha qualquer coisa de cenário para uma história de pavor. Aliás, eu já ouvira que um frade doutros tempos errava lá por dentro, a horas mortas, cumprindo qualquer pena para além da vida (…) À luz do dia, o seu aspecto era um tanto menos fantasmático. A noite excita a imaginação e favorece as visões deformadoras(…)”. Sem dúvida. Aliás, a haver por ali algum espectro, mais se me antolha que deveria ser fantasma de monja – excepto se nos dermos um bocado à picardia…Sem brincadeiras marotas: quem por ali estacionou, para além das recolhidas de bons hábitos inculcados (competia-lhes “amassar, cozinhar, varrer, acompanhar as pessoas de fora, despertar para as funções espirituais e temporais, vigiar quem vai falar à grade ou à roda” e, presume-se, outras tarefas miúdas – ainda de acordo com a recolha do padre Bonifácio Bernardo) foram as irmãs fundadoras Maria Vaz, Ana da Rosa e Ana Tavares (todas falecidas, no seu nome cristão de clausura, com idades entre os 80 e os 101 anos em cheiro de bem-aventurança) e outras “antigas gentes e traças” do mesmo cariz monástico.

Por seu turno, Charles David Ley – professor do Instituto Britânico nos idos de quarenta, poeta sem grandes rasgos mas estimável memorialista de forte pendor viajeiro – no texto que dedicou a Régio, depois inserido no tomo “Escritores e Paisagens de Portugal” (um título curioso…), diz-nos o seguinte: “Ao alto de Portalegre está o cemitério. No dia de finados tocam os sinos. E por ali seguem muitos tristes cortejos, tristes sobretudo quando é um caixão branco que passa – e há dias em que passam três e quatro caixões brancos. Em face do cemitério ergue-se uma casinha (sic) cingida por um muro e um terraço. No verão alentejano, nos dias de grande calor, ouvem-se as mulas neste terraço bater o chão com as ferraduras. No primeiro andar desta casa vive José Régio. A casa é relativamente grande. Tem muitos quartos e uma cancela fechada a intrusos. Mas Régio só habita uma parte da casa. No resto, vivem os santos: os santos e os pratos.

Das aldeias em roda, de toda a casa de camponês, trouxe Régio qualquer coisa para encher aquela solidão de paredes brancas.(…)Pode dizer-se que Régio vive apenas em dois pequenos quartos desta casa: na sua pequena biblioteca, onde, sobre a manta, poisam as revistas portuguesas que o mantêm em contacto com o mundo literário, e no quarto de dormir.(…) Erguendo a cabeça, vê, por uma pequena janela, a planície alentejana”.

No que me respeita, esta Casa onde passei até me aposentar grande parte do meu quotidiano está marcada pelas cores da memória: tem para mim vários aspectos, assume várias aparências, existe de diferentes formas como as medas de feno de Monet e as naturezas-mortas de Picasso, incessantemente pintadas deste lado ou com aquele perfil, conforme os tempos iam transcorrendo: aos oito, nove, dez anos era parte do cenário que me rodeava quando com outros garotos lançava papagaios-de-papel no vizinho Largo da Boavista ou aí participava em vigorosos derbies de futebol-trapeiro e hóquei-em-campo com stiques de pessoal manufactura; ou ainda quando, atingido por melancólico pontapé nas canelas ou cansado da refrega, me sentava na ladeira suspensa sobre a estrada e me deixava ficar a ver o movimento que envolvia o local e a estalagem: e eram mulas e machos, jericos e alguns cavalicoques que iam buscar o consolo de ferraduras novas e outros aprestos, nos baixos, para o lado de lá, junto aos muros das traseiras do Liceu; e eram os almocreves, pequenos comerciantes de gado, hortelões e agricultores de diversas artes – e também uns jovens em estudantil fatiota – que ali pernoitavam firme ou esporadicamente. Lembro que alguns traziam bolsas de retalhos coloridos ou de paninho, como as lavadeiras – onde decerto acomodavam viandas e mudas de roupa – e mantas que às vezes lhes via dispor a um canto e lhes serviam de mesa para um necessário convívio, merendando debaixo da grande árvore após desemparelharem o seu meio de transporte hoje já passado à História. Lá por essa Casa “(…)cheia de maus e bons cheiros/ Das casas que têm história/ Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória/ De antigas gentes e traças,/ Cheia de sol nas vidraças/ E de escuro nos recantos/ Cheia de medo e sossego/De silêncios e de espantos(…)” eu sentia passar e viver uma humanidade compósita, mais ou menos fervilhante e heteróclita que eu coloria de velados prestígios aventureiros, tanto mais que pelo meio também notava alguns feirantes. Donde viria, para onde iria essa gente que às vezes também topava no mercado e nas feiras (das Cerejas, das Cebolas), no terreiro da festa do Senhor do Bonfim ou junto às barracas da massa-frita e do torrão no dia da glória de Sant’Ana? Certamente para lugares interessantes – era o mínimo que podia pensar. Vim mais tarde a saber, já um pouco esgarçada a ingenuidade de infante, que os trabucadores em causa labutavam no dia-a-dia lá para os ermos de S.Julião, nos contrafortes das Carreiras e nas hortas da Ribeira de Nisa e dos Fortios, a toda a volta da Serra – terreno de caça do Régio coleccionador – amanhando suas courelas ou dando frutuosa existência às nabiças e às batatas, às uvas e às maçãs ou, já francamente no reino animal, às frangas, coelhos e galarós honestamente despejados na praça do mercado de então, o antigo Corro, hoje limpo de óleos de carros camarários que após e durante anos o macularam, restaurado e devolvido à sua dignidade de belo e claro lugar.

Quanto à velha senhora Ana, a criada que Régio sempre estimou e por cuja reforma segura foram entregues à edilidade, por conta, certas peças suas e da Família (as vinagreiras verdes de barro vidrado e alguns Cristos, entre os quais os célebres Senhores da Paciência, imagens sentadas com expressão meditabunda) conhecia-a eu bem: quer da rua, quer das vezes em que ela vinha abrir a porta a meu Pai, que eu acompanhava quando este ia receber a renda do senhor doutor, uma vez que era empregado no escritório de meu padrinho João Vinte-e-Um, familiar dos donos da estalagem – bem como da pensão na Rua dos Canastreiros onde Régio habitualmente fazia as refeições – aos quais o cedia para trabalhos deste cariz.

Por essa altura ia eu entrando na primeira adolescência. Pouco depois mudar-me-ia para uma casa perto da Fábrica Real, abandonando a morada da Rua do Bragado que ia desembocar frente ao Palácio Avilez ao lado do qual, no Achaioli, estava instalado o Liceu onde o poeta oficiava como (dizem que exigente, mas competente) professor de francês. Já traçava meu versinho na tranquilidade dos dias, mas a grande aventura eram as furiosas leituras de “Cavaleiros Andantes” (revista juvenil da época), de Camilo e Lewis Wallace, de Twain e Carroll (herança de minha madrinha Mariana), os cartapácios benditos de Salgari, Fenimore Cooper, Joelson e J.Mallorqui trocados com o Jorge Seminário, o Zé Velhaco, o Domingos Fragalho mais tarde abatido na Guiné. Certo dia, o João Garraio disse-me que na Estrada da Serra um velhote algo excêntrico, o senhor Manso, vendia por preço em conta livros policiais e outros mais que possuía numas estantes que o filho lhe deixara antes de partir para as áfricas como manga-de-alpaca. Reunidos os meus parcos tostões lá fui eu cheio de esperança no negócio; e o prestável caturra lá me vendeu um livro da Agatha Christie, O caso de Charles Dexter Ward do Lovecraft e o Fado do José Régio, que foi a primeira coisa que dele li. Ainda o tenho, esse trio, na minha companhia – tão fraternais como naquela altura. Lovecraft ficou, na minha experiência de leitor, sempre ligado à cúpula e às torres do Governo Civil e do Liceu recortadas contra o céu daquela parte da cidade como a sinistra mansão de Joseph Curwen contra os céus de Providence. Quanto a Régio, via-o ao vivo nos seus caminhares de mestre liceal e de frequentador assíduo do Café Alentejano, do Facha e do Central. Sempre que me cruzava com ele pensava que era aquele homem de pequeno porte e rosto algo austero, mas não taciturno, quem tinha escrito os tais versos que me confundiam seu pedaço para além de me agradarem. Mais tarde, na segunda adolescência, perto de me relacionar com o Donato Faria, que foi quem sucedeu ao poeta António José Forte como encarregado da biblioteca itinerante da Gulbenkian e que eu via conversar algumas vezes com José Régio, encontrava-o noite-sim noite-não no cine-teatro Crisfal (se era estação fria) e no Cine Parque (no tempo das estivais esplanadas) onde decorriam as sessões de cinema. Grande apreciador desta arte a que deu a importância devida e reflexões críticas de recorte vário, era uma presença segura naquelas mansões, só ou acompanhado por algum amigo ou colega com quem também frequentava, em alturas oportunas, uma que outra casa de pasto muito apreciadas na época. Quando as fitas terminavam lá seguia ele rumo ao Alentejano, que era o café mais próximo da sua morada. Ficava por vezes uns minutos a conversar enquanto tomava uma bebida reconfortante, geralmente café com leite. Depois de liquidar a despesa ao sr. João Diogo, que acorria pressuroso, com o seu passo pausado mas vivo abalava para casa.

A Casa recheada por bem mais que santos e pratos como escrevia o excelente Charles britânico arrolador de paisagens e escritores. Ademais, o pendor coleccionista de Régio está longe de ter sido um hobby como algures já se pretendeu. Nem mesmo foi, a meu ver, um derivativo de qualquer espécie, mas sim uma paixão entrosada no seu fundo complexo e rico de poeta e de visionário que da Casa fez um misto de quotidiano pessoal e vivo espírito criador, o que fica bem patente ao excursionarmos pelas salas judiciosamente repletas de arcazes e faianças, de exemplares significativos de arte sacra, arte pastoril e camponesa, de relicários e memórias, de ferros forjados e mobiliário diverso. Visitar o Museu propriamente dito, que com o Centro de Estudos forma a Casa do Poeta, pode, nos melhores casos, ser uma experiência de facto enriquecedora e comovente. E tanto mais se verificarmos que é um acervo incomparável de arte popular pacientemente junta através de anos que também foram de criação literária de superior exigência. Pena é que os responsáveis portalegrense do ramo, com certeza imaculadamente bem-intencionados, não consigam multiplicar, como cumpriria, as virtualidades do acervo exposto e do muito que existe em depósito. Espera-se, todavia, que se mantenham atentos às novas fórmulas que correm, para valer, no mundo da museologia – e que delas se utilizem.

A Casa do Poeta é, naturalmente, um bem cultural e espiritual nacional e não se compadece com precariedades de feição restritiva duma utilização ampla e para além de provincianismos sectoriais – que Régio sempre abominou.

Após um arranjo final – que a morte já não lhe permitiu efectuar – amorosamente levado a cabo durante mais dum mês por sua cunhada Maria Augusta, seu sobrinho José Alberto e seu irmão Júlio, que orientou os trabalhos, a Casa que o interesse esclarecido do então presidente do município, prof. Manuel Silva Mendes, soube fazer existir abriu ao público no dia 23 de Maio de 1971, tendo como cicerone um homem muito estimado na cidade, o antigo músico Germano Guerra.

O Centro de Estudos, onde fui funcionário (um pouco entre a realidade e o sonho, entre Cila e Caríbdis) deu início aos seus trabalhos públicos em 12 de Março de 1989.

Nas manhãs e tardes alentejanas, nas minhas horas, eu percorria os vestígios vivos que Régio deixou; lia os livros que foram seus (era essa uma das minhas tarefas, mas também meu prazer e privilégio) e procurava fornecer aos visitantes que lá iam um pouco da sua memória. E havia presenças de amigos que chegavam, uns de ao pé da porta outros de longe.

Às vezes, por deferência amiga de minhas colegas, dava-me ao gosto de percorrer, sozinho, toda a Casa. As salas, um pouco labirínticas para quem não está habituado, não tinham para mim nada de soturno ou intimidativo e era-me grato e alegre passear por aqueles lugares onde se sente pulsar a luz do espírito. Agnóstico dos quatro costados (embora na cidade já me tenham chamado, creio que com bonomia, “conhecido ateu anarquista”) compreendo e sentia, contudo, o ar de religiosidade, de sagrado, que Régio dizia ali pairar frequentemente. As estátuas sacras foram-me sendo presença tão fraternal como as esculturas de recorte popular e ingénuo.

E nos dias de bom sol, pela manhã, a passarada cantava nas árvores do pequeno quintal onde em certo dia, levada pelo vento, uma semente bem real caiu num vaso de barro que, por acaso, para ali estava…

 

(Conjunto arrolado no livro “As vozes ausentes”,
publicado no Brasil pela Ed. Escrituras)