Sete poemas inéditos de Manoel Tavares Rodrigues-Leal

 

LUÍS DE BARREIROS TAVARES


A poesia de Manoel T. R.-Leal não se pauta pelo surrealismo. No entanto, encontram-se por vezes no espólio alguns poemas com tonalidades que se poderiam dizer surrealizantes ou, talvez, com alguma inspiração surrealista. Apresentam-se aqui sete poemas inéditos, alguns na linha desta vertente poética. A par disso, encontramos também um teor erótico, bem como um cariz sexual e mundano. Por vezes atravessa-os um humor subtil, um toque confessional e um certo ar de manifesto social.

O poema VII é uma das três versões (2ª) de um poema, ou, se quisermos, um de três poemas-versões. A 1ª e a 3ª foram publicadas numa extensa edição crítica na revista Pessoa Plural que inclui mais de 120 poemas de Leal com ecos de Pessoa. Mas poder-se-ia dizer que se trata antes de três poemas que, apesar de manterem uma estrutura comum, com semelhanças significativas – como se todos fossem versões –, assinalam detalhes e diferenças bem estudadas. Aliás, o autor não optou, neste caso, por nenhum destes poemas em especial, e cada um passou por cuidadas revisões com diversas datas. Para leitura e comparação do poema VII com os outros dois poemas, veja-se a nota de rodapé 4. Para mais detalhes, ver poema 109 e a respectiva nota de rodapé em Pessoa Plural:
https://repository.library.brown.edu/studio/item/bdr:1117613/

“Todos os poemas são uma inocente merda, excepto o derradeiro…”[1] M. T.R.-Leal

Manoel Leal – c 2012. Frame de Luís de Barreiros Tavares

 

I 

(O Verão no Vale do Vouga e não só…)

 

As moscas inconvenientes

do Verão implícito.

Pousam sobre o ombro.

Não são meigas.

Infligem um suplício.

Ah, as moscas fúteis e sinuosas de uma mocidade,

moscas prosaicas, arcaicas,

pousando em paisagens estreitas.

E, se abandono o olhar em redor, que cilício de príncipe…

Adorno o instante, é o princípio…

E as moscas carnívoras, agora exiladas, são errantes. Como dantes…

Lx. 11-6-76 – caderno Apresentação de Paula.

 

Manuscrito do poema I

 

II 

 

Eu queria arrumar a loucura em as prateleiras

felizes de um frigorífico, centrífugo e ambíguo.

E a loucura consola-me. Apesar de contemporânea de ancestrais deuses.

Ou então digeri-la com água mineral, durante as refeições,

as ceias e os fados…

Ah, meu lírico coração, como pensar no amor como aparição

em um café prosaico. E olhares ilícitos, adolescentes, navegando nudez e cio.

Não exijo definição.

Lacónica linguagem de maçã… mas, e o descontentamento de cativo estio?…

Lx. 16-6-76 – caderno Apresentação de Paula

 

III 

(A uma prostituta do “Bolero”)[2]

 

O que se imputa à puta,

de volátil vagina, é, decerto, deserto,

pura mentira de marés e bordéis.

E que ela se acoite quando chove aquela minúscula chuva,

embora não se aparte do fugaz falo e do coito,

côncava como é,   varrida por essa minúscula chuva…

Mas há tanta gente aristocrática

com suas pagãs e pragmáticas práticas

de coito, e não só…

Eu, eu, não me refiro a isso, porque me fere.

Ouço cair a linda chuva, vejo a magia do sol. Depois, tudo se varre, se despe em pura realidade…

Lx. 5-7-76 – caderno Livro do Amador Nómada

 

Manuscrito do poema III

 

IV

 

Avenida Almirante Reis

acendo o cigarro hoje bebo a bica usual e habitual

amo-te desamo-te     povoo de crânios

e quistos esta avenida     visto-me estou em cuecas

ah a visitação do amor adolescente Isabel 17 anos

amor lacustre Cascais as pevides no cinema     hoje amo-te

e mijo-me a chorar Avenida

                                Almirante

                                Reis – Lx. 1100 – 15-5-79

Caderno Aqueles Dias Imperfeitos

 

V 

Conjugal e hierático

assim a franja do místico

ressurge o matemático

estilo de ser-se homem silogístico.

 

E assim a métrica e a merda

casam-se para que tudo ceda

ao luar lúbrico e táctico.

Lx. 7/10/83

 

VI 

(“Bolero”, o de Maurice Ravel e o do Martim Moniz)[3]

 

Não dança porque feliz

não a concebo porque não a fiz

assim nua a jovem puta

suplica a grande luta

assim morre a madrugada

que foi pura felicidade rasgada

Lx. 17-10-84 – caderno O Sul das Maravilhas

 

VII 

 

Sob a árvore amena, passeemos Ana. O deleite

da infância (o “Bébé”, o “Pénis perverso”). Suor de tristeza.

Aqui sorvo a súbita distância. O disfarce o faço. Tersa

boca do poema intacto. E invento a mulher, amei-te.

E no mar das ruas de Lisboa. Qual seio. Pensei-te.

para sempre. Cioso de frescura nupcial. Como. Quem a dor meça.

Lx. 27-1-92 – caderno O Uso do Cio[4]

 

Manuscrito do poema ou poema-versão VII. Podem ver-se os outros dois poemas

[1] De um poema inédito.

[2] O “Bolero” foi um célebre bar nocturno ou boîte da noite de Lisboa, situada no Martim Moniz durante décadas.

[3] Ver nota 2.

[4] Primeiro poema-versão: “Sob a árvore amena, passeemos Ana. O deleite / da infância (o “Bébé”, o “Pénis perverso”). Suor de tristeza. / Aqui sorvo a súbita distância. O disfarce o teço. Tersa / boca do poema intacto. E reinvento a mulher. Amei-te. / E no oceano das ruas de Lisboa. Qual enorme seio. Passeei-te. / Para sempre. Cioso da frescura nupcial. Como. Como quem a dor meça.” Terceiro poema-versão: “Sob a árvore amena, passeemos Ana. Sob a recordação acesa. / da infância. Suor de tristeza. / Aqui soa sorvo a súbita distância. O disfarce o teço. Tersa / boca do poema intacto. E reinvento a mulher. Amei-te. / E no oceano. Nos ângulos das ruas de Lisboa. Qual enorme seio. Passeei-te. / Para sempre. Cioso de frescura nupcial. Como. Como quem a dor meça…”.

 

Manoel Leal em Sesimbra – c. 1990. Desenho de Luís de Barreiros Tavares