LUÍS DE BARREIROS TAVARES
A poesia de Manoel T. R.-Leal não se pauta pelo surrealismo. No entanto, encontram-se por vezes no espólio alguns poemas com tonalidades que se poderiam dizer surrealizantes ou, talvez, com alguma inspiração surrealista. Apresentam-se aqui sete poemas inéditos, alguns na linha desta vertente poética. A par disso, encontramos também um teor erótico, bem como um cariz sexual e mundano. Por vezes atravessa-os um humor subtil, um toque confessional e um certo ar de manifesto social.
O poema VII é uma das três versões (2ª) de um poema, ou, se quisermos, um de três poemas-versões. A 1ª e a 3ª foram publicadas numa extensa edição crítica na revista Pessoa Plural que inclui mais de 120 poemas de Leal com ecos de Pessoa. Mas poder-se-ia dizer que se trata antes de três poemas que, apesar de manterem uma estrutura comum, com semelhanças significativas – como se todos fossem versões –, assinalam detalhes e diferenças bem estudadas. Aliás, o autor não optou, neste caso, por nenhum destes poemas em especial, e cada um passou por cuidadas revisões com diversas datas. Para leitura e comparação do poema VII com os outros dois poemas, veja-se a nota de rodapé 4. Para mais detalhes, ver poema 109 e a respectiva nota de rodapé em Pessoa Plural:
https://repository.library.brown.edu/studio/item/bdr:1117613/
“Todos os poemas são uma inocente merda, excepto o derradeiro…”[1] M. T.R.-Leal
I
(O Verão no Vale do Vouga e não só…)
As moscas inconvenientes
do Verão implícito.
Pousam sobre o ombro.
Não são meigas.
Infligem um suplício.
Ah, as moscas fúteis e sinuosas de uma mocidade,
moscas prosaicas, arcaicas,
pousando em paisagens estreitas.
E, se abandono o olhar em redor, que cilício de príncipe…
Adorno o instante, é o princípio…
E as moscas carnívoras, agora exiladas, são errantes. Como dantes…
Lx. 11-6-76 – caderno Apresentação de Paula.
II
Eu queria arrumar a loucura em as prateleiras
felizes de um frigorífico, centrífugo e ambíguo.
E a loucura consola-me. Apesar de contemporânea de ancestrais deuses.
Ou então digeri-la com água mineral, durante as refeições,
as ceias e os fados…
Ah, meu lírico coração, como pensar no amor como aparição
em um café prosaico. E olhares ilícitos, adolescentes, navegando nudez e cio.
Não exijo definição.
Lacónica linguagem de maçã… mas, e o descontentamento de cativo estio?…
Lx. 16-6-76 – caderno Apresentação de Paula
III
(A uma prostituta do “Bolero”)[2]
O que se imputa à puta,
de volátil vagina, é, decerto, deserto,
pura mentira de marés e bordéis.
E que ela se acoite quando chove aquela minúscula chuva,
embora não se aparte do fugaz falo e do coito,
côncava como é, varrida por essa minúscula chuva…
Mas há tanta gente aristocrática
com suas pagãs e pragmáticas práticas
de coito, e não só…
Eu, eu, não me refiro a isso, porque me fere.
Ouço cair a linda chuva, vejo a magia do sol. Depois, tudo se varre, se despe em pura realidade…
Lx. 5-7-76 – caderno Livro do Amador Nómada
IV
Avenida Almirante Reis
acendo o cigarro hoje bebo a bica usual e habitual
amo-te desamo-te povoo de crânios
e quistos esta avenida visto-me estou em cuecas
ah a visitação do amor adolescente Isabel 17 anos
amor lacustre Cascais as pevides no cinema hoje amo-te
e mijo-me a chorar Avenida
Almirante
Reis – Lx. 1100 – 15-5-79
Caderno Aqueles Dias Imperfeitos
V
Conjugal e hierático
assim a franja do místico
ressurge o matemático
estilo de ser-se homem silogístico.
E assim a métrica e a merda
casam-se para que tudo ceda
ao luar lúbrico e táctico.
Lx. 7/10/83
VI
(“Bolero”, o de Maurice Ravel e o do Martim Moniz)[3]
Não dança porque feliz
não a concebo porque não a fiz
assim nua a jovem puta
suplica a grande luta
assim morre a madrugada
que foi pura felicidade rasgada
Lx. 17-10-84 – caderno O Sul das Maravilhas
VII
Sob a árvore amena, passeemos Ana. O deleite
da infância (o “Bébé”, o “Pénis perverso”). Suor de tristeza.
Aqui sorvo a súbita distância. O disfarce o faço. Tersa
boca do poema intacto. E invento a mulher, amei-te.
E no mar das ruas de Lisboa. Qual seio. Pensei-te.
para sempre. Cioso de frescura nupcial. Como. Quem a dor meça.
Lx. 27-1-92 – caderno O Uso do Cio[4]
[1] De um poema inédito.
[2] O “Bolero” foi um célebre bar nocturno ou boîte da noite de Lisboa, situada no Martim Moniz durante décadas.
[3] Ver nota 2.
[4] Primeiro poema-versão: “Sob a árvore amena, passeemos Ana. O deleite / da infância (o “Bébé”, o “Pénis perverso”). Suor de tristeza. / Aqui sorvo a súbita distância. O disfarce o teço. Tersa / boca do poema intacto. E reinvento a mulher. Amei-te. / E no oceano das ruas de Lisboa. Qual enorme seio. Passeei-te. / Para sempre. Cioso da frescura nupcial. Como. Como quem a dor meça.” Terceiro poema-versão: “Sob a árvore amena, passeemos Ana. Sob a recordação acesa. / da infância. Suor de tristeza. / Aqui soa sorvo a súbita distância. O disfarce o teço. Tersa / boca do poema intacto. E reinvento a mulher. Amei-te. / E no oceano. Nos ângulos das ruas de Lisboa. Qual enorme seio. Passeei-te. / Para sempre. Cioso de frescura nupcial. Como. Como quem a dor meça…”.