MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov
Um livrinho que foi para mim uma descoberta e uma revelação, não só de um universo de escrita com luz própria, como de uma autora, pessoa inquieta, cativante. Uma autora que viveu fora, durante anos, em Paris e em Argel – Alger, na sua lembrança do território bilingue, árabe e francês, tratando-se de uma ex-colónia francesa – e decerto em muito mais lugares, como Veneza. O livro, 7 dias em Veneza e outras memórias e ficções revela tudo isso e revela ainda o género a que pertencem os textos: uns são memórias, outros ficções, e também há sonhos e pesadelos. No caso das memórias saliento apenas dois momentos, ambos muito curtos. O primeiro narra uma conversa havida em Paris com António José Saraiva, e o texto é tão iluminante que vale a pena fixá-lo com a máquina fotográfica; mostra o ambiente dos exilados portugueses em Paris, nos anos 60 e dá conta das motivações: a impossibilidade da existência de esquerda no reino de Salazar. Outra revelação, correcção manuscrita, a do engano em que tantos incorremos quando se trata de pai e filho com nome quase igual. Fala-se aqui do António José Saraiva que assinou com Óscar Lopes aquela História da Literatura Portuguesa que nos norteou quando éramos estudantes.
Aí está, uma recordação fulgurante de uma artista que conviveu com muita personalidade importante no curso do combate ao obscurantismo da ditadura anterior ao 25 de Abril e, por conseguinte, combate em prol da democracia que alcançámos em 1974 graças também ao esforço destes intelectuais e artistas, liberdade democrática que ainda nos vai restando. Flor Campino viveu em Alger/Argel entre 1963 e 1966, em plena fase de independência da Argélia, com outros exilados portugueses, desde o marido, Fernando Echevarría, até Humberto Delgado, que ela recorda, do jantar dado antes da sua partida para Badajoz. Humberto Delgado viria a ser assassinado pela PIDE em Espanha. O general vivia numa bela casa cedida por Ben Bella, independentista recém-chegado à presidência da República da Argélia. Ben Bella recebera os outros exilados igualmente bem, segundo Flor Campino, que me contou, numa destas tardes, em conversa em sua casa, algo do que viveu em Paris e em em Alger, Humberto Delgado vira-se entre dois grupos da resistência que se davam mal, e nenhum lhe prestou o apoio indispensável para a ação em Portugal, ação que naturalmente visava derrubar o governo de Salazar com o seu regime fascizante. Daí talvez o total fracasso. Vejamos na imagem o excerto em que Flor Campino recorda a festa de despedida, e concordemos com o valor histórico da cena sobre um homem que ficou precisamente conhecido como “O general sem medo”.
O livro, como afirma no título, não relata só memórias, também comporta ficções, como o conto em sete textos, 7 dias em Veneza. Pode não ser ficção, mas apresenta-se como tal, dada até a presença de Clara, a narradora e vítima dessa semana de provações. Deixando de lado os lances que as causaram, vemos que Clara se ocupa em Veneza de assuntos de arte: ela visita museus, dá conta de obras de arte da pintura, revela-se como artista manual, isto é, as suas mãos são de ouro, como se escreve no livro – ela pinta, costura, cozinha, modela, e de pintura se volta a ocupar, já noutra parte da obra, num comentário à vida e obra de António Quadros, o António Quadros que também escreveu e usou pseudónimos como João Pedro Grabato Dias, Frei Ioannes Garabbatus e Mutimati Barnabé João. Todo o livro está pontilhado por anotações de arte, o que é natural, sendo Flor Campino pintora também.
Dotada de uma escrita muito ágil, os textos de Flor Campino despertam empatia profunda porque, ao exprimir sensações e sobretudo sentimentos, ela vai muito fundo e com grande intensidade. O ponto de vista é de forma geral feminino, e certos incidentes repercutem-se em imagens de experiência especificamente feminina, sobretudo quando relativos à gestação e maternidade.
De todo o livro decalcaria, para terminar, o que dos 7 dias em Veneza, em casa de uma amiga que a crucifica e humilha, Clara pensa, ao perceber que tinha pago um preço exorbitante pela visita à cidade. Em suma, trata-se de uma obra ao negro que resume a vida, resgatando-a, como obra alquímica, para do nada ascender ao valor espiritual do tudo, esse “ouro dos dias passados em Veneza”, frase que remata o conto.
FLOR CAMPINO
7 dias em Veneza
e outras memórias e ficções
Vila Nova de Famalicão
Edições Húmus, 2024