NO CENTENÁRIO DE "OS SERTÕES" - MARIA ALZIRA BRUM LEMOS
Uma das principais obras da cultura brasileira está completando 100 anos. Publicado em dezembro de 1902, "Os sertões", de Euclides da Cunha, inaugura um ciclo de obras (a exemplo de "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, e "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda) que lançam um olhar agudo sobre o Brasil, tentando decifrar os principais signos da nossa nacionalidade.

A idéia da existência de uma oposição conflitante e complementar entre um litoral presumivelmente ‘civilizado’ e um interior, ou sertão, ‘selvagem’, herança da Geografia e da Antropologia colonial portuguesas, tem sido uma das mais persistentes imagens entre as que vêm descrevendo o mosaico cultural brasileiro. A conquista – ou a nomeação – do interior, ou sertão, representou no contexto da Colônia a expansão da civilização e do cristianismo. O surgimento das idéias nacionalistas no século XVIII amalgamou esta concepção num novo entendimento. A apropriação do sertão, pela via da inclusão deste em padrões científicos, políticos e estéticos, passou a ser identificada à ‘origem’ cultural e étnica da nação brasileira.

Este processo de identificação está ligado ao surgimento e desenvolvimento no Nordeste, durante a Colônia e o Império, da vida urbana e de uma elite intelectual, ambos os processos impulsionados pela pujança econômica do litoral dessa região e das zonas próximas, apoiada na produção do açúcar.

O pensamento desta elite seria caracterizado pela assimilação tanto das formas mais tradicionais do pensamento português como das idéias que viriam a sustentar no plano político o surgimento das nações americanas. As primeiras implicavam uma noção histórica, a classificação dos homens entre ‘cristãos e não-cristãos’, que se expressa no sentimento de pertencer à parcela ‘civilizada e superior’ da humanidade, ou numa consciência de classe. As segundas implicavam numa noção geográfica e étnica, a de fazer parte de um território distinto do português. Ambas contribuiriam para formar o que se chamou de ‘consciência nacional’.

A mestiçagem – enquanto convivência conflitante de padrões étnicos e culturais diferentes, ou consideração da variedade humana mais além da simples oposição entre cristãos e não cristãos, a qual é um dos marcos do pensamento moderno – é parte integrante do processo de formação desta consciência.

Esta presença simbólica do ‘outro’ leva à existência na cultura brasileira de um duplo padrão de aproximação política, intelectual e estética às ‘realidades’.

Tanto o elitismo, traduzido no autoritarismo, na retórica e no ‘pedantismo estilístico’, como as formas barroquizantes – associadas à “relativização do absoluto, à contestação do incontestável, à unidade partida” – estão profundamente enraizadas na cultura brasileira. Narrativas produzidas no Nordeste durante o período colonial como as de Antônio Vieira, Rocha Pita e Gregório de Mattos exemplificam estas últimas.

Durante o Segundo Império, o Nordeste seguiu sendo um centro importante da produção econômica e um pólo irradiador de cultura. Nas últimas décadas do século XIX, em torno da Escola de Medicina de Salvador e da Escola de Direito do Recife se moldaram, com base nas teorias antropológicas, psicológicas, sociológicas e/ou filosóficas coevas, aportes conceituais sobre a cultura brasileira.5 Estes aportes marcam a assimilação de categorias tradicionais do pensamento – associados a religião, diferenças étnicas, conceitos geográficos, etc. – no campo classificatório da Filosofia e da ciência ‘modernas’.

O homem brasileiro deixou de ser entendido em termos de corpo e alma – dualidade que atravessa o pensamento iluminista ou a literatura nacionalista romântica, por exemplo – e passou a ser descrito positivamente no quadro das chamadas ciências humanas: Sociologia, Psicologia, Antropologia. Esta passagem se deu em grande parte em torno do conceito de ‘raça’ e esteve imbricada no movimento de mudanças econômicas, políticas e sociais que ocorreu no país simultaneamente à ascensão das idéias republicanas, nas últimas décadas do século XIX.

A oposição norte-sul ou sertão-litoral serviu neste contexto a uma paradoxal interpretação da nacionalidade. A Geografia e o homem do norte, ou do sertão, passaram a representar o brasileiro na produção intelectual. A idéia de que o norte ‘mestiço e atrasado’ seria uma representação do Brasil, em oposição ao sul ‘branco e civilizado’, norteava esta produção. Os textos pioneiros da Antropologia e da Sociologia brasileiras refletem esta aproximação às realidades do país, o processo chamado de “tropicalização da cultura”.

No fim do século XIX a condição do Nordeste como centro econômico e cultural sofreu um revés. Enquanto o Nordeste açucareiro e escravista decaía economicamente, o Sul via florescer a cultura cafeeira e dava os primeiros passos rumo à industrialização urbana, ambos os processos apoiados na mão-de-obra imigrante. No Rio de Janeiro e em São Paulo, sobretudo, paralelamente a uma grande expansão dos meios de translação e comunicação, surgiram novas elites dispostas a tomar as rédeas do poder político. Neste contexto ocorreram a abolição da escravidão (1888) e a proclamação da República (1889).

A tomada do poder pelos republicanos consolidou a direção política do país nas mãos das novas elites urbanas do Sul, personificadas, sobretudo, nos militares, cabeça do movimento que instituiu a República.7 A mesma perspectiva ‘moderna e científica’, que apoiava as idéias surgidas no âmbito da Escola do Recife e da Escola de Medicina da Bahia, dominava também no contexto das escolas Militar e de Engenharia do Rio de Janeiro.

Mas os militares necessitavam de uma senha de identidade de sua condição de elite. Seu projeto social e político esteve perpassado pela necessidade de operar uma dupla diferenciação. Deveriam diferenciar-se do ‘povo’ em geral e, ao mesmo tempo, das elites intelectuais, tanto das que representavam o status quo da Colônia e do Império, os chamados bacharéis, como daquelas que rivalizavam com seu discurso, no mesmo campo das teorias modernas e científicas aplicadas à nação, caso dos intelectuais progressistas da Bahia e do Recife. Com relação à população em geral, tratava-se de construir-se como uma elite, uma vanguarda capaz de dirigir o país rumo ao desenvolvimento e ao progresso. Quanto às elites, tratava-se de apropriar-se de sua autoridade, englobando-as, de alguma maneira, no projeto nacional republicano

Na construção dessa senha de identidade, os militares reeditaram modelos culturais e políticos que haviam marcado no século XVIII, sob a direção do Marquês de Pombal, o processo de modernização luso-brasileira. No campo cultural os militares inverteram a oposição entre trabalho intelectual e trabalho prático, segundo a qual este último era considerado inferior, que persistiu tanto no pensamento da velha aristocracia portuguesa quanto no das elites brasileiras surgidas durante o Império. À maneira dos progressistas da época pombalina, como José Bonifácio de Andrada e Silva e Volney, entre outros, difundiam a idéia de que o ‘ensino prático e voltado para as ciências’ representava a única via capaz de formar os quadros políticos necessários para conduzir o país pelos caminhos do progresso.

Esta ‘ciência experimental’, se não significou na época pombalina a produção original, em geral, de teorias e objetos científicos, tampouco era ensinada de forma significativa no fim do século XIX em instituições como as escolas Militar e de Engenharia do Rio de Janeiro. Nos dois contextos o adjetivo ‘experimental’ terá sido um elemento retórico, indispensável apoio que ‘autorizava’ o discurso, a política e as práticas modernizantes. Os militares republicanos aprendiam e se politizavam em instituições criadas em torno da Escola Militar, como os grêmios, as associações culturais, as publicações etc.

O projeto nacional dos militares republicanos, como os das elites que os precederam, se situava entre duas consciências opostas e complementares: a de representar uma parcela presumivelmente superior da humanidade, o mundo branco, europeu e aristocrático, associado à cultura e científica, e a de ser parte de uma comunidade nacional, majoritariamente ‘mestiça’ e considerada ‘inferior’.

O pensamento republicano compaginava assim as idéias que no século XVIII, sob o marco geral do pensamento iluminista, fundamentaram a formação dos Estados nacionais modernos com as noções de crise deste mesmo modelo que se desenvolveram na Europa na segunda metade do século XIX. Tratava-se de, concomitantemente, construir – ou nomear – uma diversidade, a nação, e incluí-la na unidade proposta por teorias como o positivismo e o evolucionismo.

Este esforço – e no âmbito da reedição de temas tradicionais e das expressões modernizantes da época pombalina – se manifestou de maneiras diferentes, ainda que interligadas, nos planos intelectual e da ação política. Conjugava a conciliação da diversidade étnica no ‘nacional’ com um modelo político autoritário. Daí que a formatação no campo intelectual de teorias sobre a nacionalidade, ou a mestiçagem, voltadas à integração da diversidade humana no conceito de nação, tivesse como correlato no campo político as tentativas de ‘branqueamento’ e a repressão aos ‘problemas sociais’ representados pela mestiçagem.

Ciência e mestiçagem formam assim os dois lados conflitantes e inseparáveis do processo de modernização no âmbito dos primeiros anos da República. O discurso dos militares republicanos estava perpassado por imagens do índio e do mestiço e de metáforas retiradas da matemática e de outras ‘ciências positivas’. Se as imagens românticas da diversidade étnica serviam para identificar os militares ao ‘povo’ e a um projeto ‘nacional’, as metáforas serviam para identificar a elite militar aos ‘europeus’ e, por conseguinte, a uma cultura e a uma ciência tidas como modelos universais e inquestionáveis.

Os republicanos travavam uma guerra particular para ‘modernizar’ o país. Modernizar significava uma série de ações combinadas, nas quais se implicava a questão da mestiçagem. Era preciso centralizar o espaço político constituído num imenso território desigualmente habitado e desenvolvido no qual grande parte da população vivia espalhada pelo interior – longe, em geral, dos centros urbanos, onde se gestavam as novas idéias políticas. Era necessário redefinir o lugar ocupado na dinâmica social e produtiva pelos diferentes segmentos da população, incluindo os ex-escravos e a população não urbana. E, como tarefa adicional, havia que integrar no novo contexto as formas tradicionais da estrutura social brasileira, como o elitismo das velhas e novas aristocracias.

Modernizar, enfim, significava enfrentar, no âmbito das políticas e das linguagens, a diversidade geográfica e humana. Tratava-se de renomear as etnias, as religiões, as formas de organização social e a Geografia. Desde a perspectiva dos grupos dirigentes, isto significava a ação combinada de distinguir uma unidade formada pelo território e pelo povo, a nação, e, dentro dela, uma diversidade expressa na oposição entre a elite governante – ‘nós’ – e o povo governado – ‘eles’.

Como parte de seu projeto de modernização o governo republicano ordenou um conjunto de medidas políticas e econômicas, que, no entanto, não beneficiaram a maioria da população nem conseguiram agradar aos diversos setores, organizados ou não, da sociedade. Como reação a estas medidas, ocorreram por todo o país manifestações contrárias aos republicanos, algumas delas organizadas pelos monarquistas, que resistiam ao novo governo. A resposta a todos estes movimentos foi uma brutal repressão militar.

O Nordeste, sobretudo o interior, ou sertão, não teria sido integrado a contento nos planos de modernização. Nesta região, desde a época colonial, se desenvolviam formas particulares de organização social baseadas sobretudo na posse da terra e do gado e na organização comunitária e religiosa.

A religião das gentes do sertão não estava organizada em torno da Igreja Católica, não muito presente nas povoações pobres do interior nordestino. Desde antigas épocas a religião sertaneja estava caracterizada por uma atmosfera messiânica de caráter carismático em que predominavam valores como a austeridade, a penitência, a via apocalíptica, o culto aos santos pessoais, o estoicismo e a resignação. Figuras como os beatos, os eremitas e os “conselheiros”, entre outros, faziam as vezes de sacerdotes e líderes sociais.

Em 1893, em Monte Santo, uma região do interior da Bahia, se formou, sob a liderança de um eremita místico, o “Conselheiro” Antônio Mendes Maciel, o Império do Belo Monte, uma comunidade formada por gente de vários estratos sociais – pequenos proprietários, sem-terra, trabalhadores rurais, miseráveis, pequenos comerciantes, brancos e negros recém-libertados – cujo vínculo de união era a crença religiosa. Esta comunidade, pela forma de suas construções, viria a ser conhecida como Canudos.

Canudos chegou a agrupar um grande número de pessoas. Seus membros estavam unidos por uma religião que enfatizava a moralidade e a salvação pessoal, conseguida, entre outras coisas, por meio do voto de pobreza e da renúncia aos valores materiais. A união em torno da religião alicerçou uma organização social e política rebelde às autoridades constituídas. Para os membros de Canudos a autoridade republicana se identificava ao mesmíssimo demônio por tentar reverter a ordem monárquica, representante na terra da ordem divina.

Sob estas idéias e práticas religiosas se configurou em Canudos um movimento popular de caráter messiânico inserido, tanto na forma como nas idéias que inspiravam sua organização, na linha de pensamento utopista e milenarista cuja origem remonta ao século XII europeu.

O elo de ligação entre Canudos e o velho messianismo europeu é o sebastianismo português. Os habitantes de Canudos esperavam construir uma nova Canãa, reino milenar que, depois do juízo final, seria governado por D. Sebastião, rei português desaparecido na África em 1578. “Em 1896” – dizia o Conselheiro Maciel – “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. Era “o mundo de ponta-cabeça” na versão sertaneja.

Canudos se transformou num incômodo para os fazendeiros da região, que perdiam mão-de-obra para a comunidade, e em mais um problema para o governo republicano, às voltas com suficientes opositores reais e/ou imaginários. O governo e as elites que o apoiavam também tinham motivos para combater não apenas o que Canudos representava no contexto regional ou no âmbito político e econômico, mas aquilo que representava no campo simbólico para o projeto republicano.

Os republicanos se apoiavam amplamente nas teorias elaboradas na Europa ao longo da segunda metade do século XIX no campo da ciência ou da teoria social, as quais tinham como ponto de partida a noção de crise da civilização, que teria expressão nos ‘problemas sociais’. Em busca de soluções para a crise, estas teorias se pautaram pela associação estreita entre moral e ciência, a qual substituiu como paradigma o padrão política-economia que havia prevalecido no pensamento iluminista. A relação entre moral e ciência era vista como capaz de aportar um novo padrão tanto para a compreensão como para a normatização das sociedades.

Já não se tratava de reformar as nações e os ‘vícios’ de seus habitantes por meio da ciência e das instituições. O pensamento dominante em boa parte da Europa no fim do século XIX propunha a estreita associação entre moral e ciência, verdade e saber ou entre unidade e relação. Toda diversidade humana e natural passar a ser considerada no âmbito de uma ordem possível de ser revelada pelo discurso. Os índices da diversidade – os costumes, a língua, a religião, a arte, etc. – se fundem no termo de expressão ambígua ‘raça’. Esta fusão, aliada a uma perspectiva eurocêntrica e elitista, oferecia classificações hierarquizantes para o espectro das diferenças humanas e sociais, ou para as ‘raças’.

O conceito de raça serve aos republicanos brasileiros tanto para identificar a diversidade nacional como para, ‘cientificamente’, hierarquizá-la. Com esta fórmula o espírito moralizante da tradição e o progressista da ciência se fundem. Assim, para o governo republicano a religião de Canudos, associada ao caráter ‘mestiço’ de sua população, seria um índice visível dos elementos que deveriam ser combatidos pela modernização: o obscurantismo, a superstição e a ignorância.

No Rio de Janeiro se iniciou uma forte propaganda contra Canudos por parte da imprensa republicana. O Governo, a exemplo do que já vinha fazendo com outros movimentos, optou pela repressão militar à comunidade. No final de 1896 enviou uma expedição ao sertão. Os canudos a receberam armados e a derrotaram. O mesmo aconteceu com as outras duas expedições militares enviadas pelo governo para reprimir os rebeldes canudos.

Às derrotas do Exército e à feroz campanha da imprensa sucederam-se ruidosas manifestações republicanas nas ruas do Rio de Janeiro cujo objetivo era exigir do Governo uma solução efetiva e imediata contra a “ameaça monarquista” de Canudos.

Em 1897 o Ministério da Guerra organizou uma nova expedição, a qual, composta por um contingente calculado entre 6 e 10 mil homens armados com o melhor equipamento bélico disponível, atingiu seu objetivo. Apesar da resistência, a comunidade de Canudos foi totalmente destruída. Todos os seus membros terminaram mortos. De fome, de bala ou degolados pelos militares.

Destruída fisicamente, Canudos passaria a fazer parte da história. Ao longo destes 100 anos, os historiadores e outros estudiosos, de acordo com diferentes linhas de pensamento e metodologia, têm visto os membros da comunidade de Canudos das mais diversas maneiras: fanáticos, rebeldes românticos, exemplos da mobilização da população rural por melhores condições de vida etc. Hoje se tende a considerar Canudos como uma comunidade heterogênea, de gente pobre, crente e insatisfeita que encontrou na simbologia messiânica, encarnada na figura do Conselheiro, consolo para a alma, um lugar no mundo e uma forma de expressar seu anelo por tempos melhores.

No corpo da cultura brasileira, Canudos viria a adquirir uma dimensão ainda mais ampla, passando a compor no conjunto complexo de imagens e conceitos que se aglutinam no termo ‘nacionalidade’. Esta dimensão tem muito a ver com o relato da repressão do Exército à comunidade de Canudos feito por Euclides da Cunha, Os Sertões, e os destinos deste texto.

Euclides da Cunha (1866-1909), engenheiro, militar, formado em Ciências Físicas e Naturais, homem público, escritor e jornalista, chegou à região de Canudos – onde permaneceria por 16 dias – no início de setembro de 1897 como enviado especial do jornal O Estado de S. Paulo. Levava na bagagem uma grande cultura literária e científica, além de muitas horas de pesquisa em arquivos da Bahia e do Rio de Janeiro sobre dados históricos e geográficos da região de Canudos.

Euclides possuía a mirada do antropólogo que sua época consagrou. Uma mirada preparada para ver ‘o outro’, associada às artes do poeta e articulada pela régua e pelo esquadro do engenheiro. Além disso era parte do meio social, as escolas Militar e de Engenharia do Rio de Janeiro, onde se forjava a elite republicana. Estava familiarizado, portanto, com idéias científicas, políticas e filosóficas elaboradas na Europa, sobretudo na França, na Inglaterra e na Alemanha, assim como com os temas relativos à História, à atualidade e aos destinos do Brasil.

Estas vivências teriam propiciado que o breve encontro de Euclides da Cunha com o sertão não fosse tão-somente o encontro de um viajante do Brasil urbano com as realidades do interior segundo os moldes dos relatos de viagens científicas. Este seria o encontro de um intelectual engajado com um ‘objeto’ sobre o qual poderia aplicar suas leituras e suas idéias, pensar as ‘realidades’ de seu contexto e (re)inventar tanto um novo objeto – o mestiço brasileiro – como a si mesmo como autor.

O ambicioso engenheiro sonhava transformar-se no narrador oficial do episódio que ficou conhecido como a Guerra de Canudos. Um objetivo que acabaria cumprindo espetacularmente. Os Sertões saiu originalmente em forma de entregas no jornal O Estado de S. Paulo. Desde sua primeira edição em livro, data em 1902, Os Sertões tem sido um êxito em todos os sentidos. Deu a seu autor – ainda que se tenha que considerar a habilidade de Euclides na política de bastidores – uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Hoje, é uma das obras em língua portuguesa mais traduzidas e conhecidas em todo o mundo.

O êxito e as contribuições dos críticos e comentadores fazem hoje parte de Os Sertões, um clássico da língua portuguesa. Um clássico no sentido dado a este termo por Italo Calvino: “um destes textos que nos chegam trazendo impressa a marca das leituras que precederam a nossa e detrás desta a marca que deixaram na cultura”.

Estudiosos com orientações intelectuais muito diversas reivindicam Os Sertões como uma obra precursora e/ou fundamental no âmbito da cultura brasileira moderna.

Para Darcy Ribeiro, Euclides da Cunha teria dado o retrato mais veemente daquele enfrentamento inverossímil, legando “a primeira análise antropológica da contradição entre a cultura vulgar, tradicional, da população do sertão - que, ainda que arcaica, era rebelde - e a cultura letrada das elites citadinas que implantaram nosso simulacro patrício de república latifundista e reacionária”.18 O episódio de Canudos ter-se-ia celebrizado “por seu próprio vulto sinistro e, também, pelo retrato candente desse desencontro entre as duas faces da sociedade brasileira, deixado em Os Sertões de Euclides da Cunha, escrito como um libelo terrível contra o genocídio que ali se cometeria”.

Gilberto Freyre credita a Euclides haver dado ao sertão um significado “brasileiro” ao lado do puramente paisagístico:

o autor de Os Sertões teria sido uma espécie de El Greco ou de Alonso Berruguete da prosa brasileira: tira das palavras o máximo de recursos esculturais, embora com sacrifício, mais de uma vez, de qualidades de discriminação e de inflexão – as grandes qualidades entre os mestres brasileiros seus contemporâneos, de Machado, de Nabuco e do próprio Pompéia. Qualidades quase impossíveis dentro do gosto do brônzeo, do escultural, do geométrico, do hirto, do anguloso, em que Euclides se requinta como sob o domínio de uma obsessão quase mística: a de evitar a carne, suas curvas, sua inconstância, o momento que passa, a banalidade cotidiana.

Além disso, Freyre considera Euclides da Cunha como um autor que recupera e renova uma tradição intelectual, narrativa e estilística de raiz ibérica:

no meu caso, o que venho procurando ser é escritor que, como escritor, se serve da sua formação ou do seu saber – se é que existe – científico – o antropológico, principalmente – em vez de pretender ser principalmente antropólogo ou sociólogo ou historiador, ou pensador, por assim dizer, institucional. O caso – essa condição híbrida, flexível e um tanto anárquica -de vários hispanos... Entre nós, brasileiros, o caso de Euclides da Cunha. Daí sentir-me desembaraçado ou liberdade para me expressar, principalmente, como escritor – escritor com pretensões a escritor literário – sem que para tal renuncie à responsabilidade de que me investe a formação ou a condição de cientista e, talvez – excusez du peu – a de pequeno pensador.”

Como obra literária, Os Sertões compõe junto com os textos considerados fundadores da modernidade cultural brasileira. Décio Pignatari afirmou, em uma entrevista a propósito dos 40 anos da poesia concreta, que Euclides da Cunha, Homero e Joyce seriam a “lição de fundo” de Guimarães Rosa. Para Pignatari, Euclides da Cunha é parte, como Machado de Assis, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, da mesma “linha-linguagem” a que pertenceria Galáxias, de Haroldo de Campos. Ou uma narrativa das origens, neste caso associada ao caráter épico da obra e às invenções de linguagem que a compõem.

A linguagem poética da obra – que remete à tradição ibérica – também tem chamado a atenção de críticos como Afrânio Coutinho, Guilherme de Almeida e, mais recentemente, Augusto de Campos. Este último, em Transertões, identifica e recria em versos – num trabalho que chama de “parceria póstuma” – trechos de Os Sertões.

De fato as palavras ‘poesia’, ‘poema’, empregadas em sentido amplo, emergem instintivamente à leitura do livro, sinalizando o viés estilístico que nos impede de enquadrá-la tout court como prosa. Outra coisa, porém, é considerar o que se poderia chamar, mais rigorosamente, de poética de Os Sertões, ou seja, os traços específicos que definem a linguagem da poesia que reponta no texto, extraindo-o, em momentos relevantes, do domínio típico da prosa, da ficção ou outra.

Os Sertões também pode ser inserido – como publicado na forma de entregas – no tipo de narrativa que caracteriza o jornalismo tal como o entendemos hoje, na qual o repórter é considerado como “um narrador sincero” – à la Taine – dos fatos. A concepção de um jornalismo científico no qual o jornalista é considerado uma “testemunha” dos fatos é um dos alicerces do texto de Euclides.

O sertão e o sertanejo descritos por Euclides da Cunha perpassam diferentes produtos culturais como representações da nacionalidade. Peças plásticas, audiovisuais, musicais e literárias evocam o sertão. Do Movimento Modernista de 1922 ao Tropicalismo dos 60, nomes como Tarsila do Amaral, Gláuber Rocha, João Cabral de Mello Neto, Guimarães Rosa, Caetano Veloso e Villa-Lobos, para citar alguns, vêm reconstruindo a cultura brasileira pela via do Sertão. Uma via que permite a expressão estética dos conflitos, ou da mestiçagem, e a implosão de dualidades como ‘popular-erudito’. Uma via pela qual se expressa a modernidade. Os Sertões tem servido ainda de inspiração a obras como o livro A guerra do fim do mundo do escritor peruano Mario Vargas Llosa, o filme Guerra de Canudos, de Sérgio Rezende, o balé Parabelo, do grupo Corpo, e a peça Os Sertões, releitura do Teatro Oficina, entre outros.

Dada a imensa importância que adquiriu na cultura brasileira, Os Sertões tem sido objeto de estudos e teses produzidos no Brasil e no exterior. Os enfoques destes estudos variam bastante. Sociólogos, antropólogos e historiadores, vêm no texto de Euclides valor documental. Críticos literários buscam entender os sentidos textuais de Os Sertões. Daí que um dos problemas mais insistentes na bibliografia diga respeito à questão da ‘identidade’, ou ao gênero da obra – ficção ou Sociologia.

As várias ‘identidades’ de Os Sertões bem como a diversidade de discursos presentes na obra têm sido utilizadas como aportes para pensar elementos da cultura e da história brasileiras em obras que buscam, a partir do texto de Euclides, relacionar maior número de complexidades tanto de caráter textual como no que diz respeito ao pensamento. Os Sertões tornou-se assim um paradigma para pensar as complexidades envolvidas na diversidade étnica e cultural do país.

O Clarim e a Oração: cem anos de "Os Sertões", Editora Geração, é uma coletânea de textos de intelectuais brasileiros sobre o tema. Mais que uma reflexão sobre a obra de Euclides, trata-se de uma reflexão sobre o Brasil, história e cultura. Maria Alzira Brum Lemos está entre os autores da coletânea, com o texto "Os Sertões: modernidade e atualidade".
Informações
http://www.geracaobooks.com.br/releases/clarim.htm