DETERMINISMO E LIBERDADE JOSÉ ANTUNES SERRA
Sumarizando do anterior capítulo: A espécie humana como um todo pode ser considerada um grupo, cada nação é um grupo, assim como os partidos, as religiões formam outros grupos. O que se procura para uma compreensão do que está subjacente a todos os grupos e do que os separa, é a natureza das forças de agrupamento e como tais forças se exprimem. Uma análise dos grupos e inerentes forças ajudará a compreender o que tem acontecido nas recentes revoluções portuguesas, principalmente com o fim de se descortinar, se possível, a direcção de movimento da sociedade, tanto dum ponto de vista determinístico como volitivo. Sob o ponto de vista determinístico, as forças levam a resultados que estatisticamente, em média, se poderão prever, desde que se conheçam as condições de actuação de tais forças e o estado das sociedades sobre que vão actuar. Complementarmente, o ponto de vista volitivo corresponde à incerteza das previsões estatísticas; destrinçar a natureza desta incerteza é um difícil problema filosófico. Incerteza. Livre Arbítrio e Acção Doutrinária Dado que o problema da incerteza está subjacente a toda a discussão que segue, no presente e subsequentes capítulos, e atendendo a que tal assunto constitui um dos pontos básicos da teoria política e religiosa, é preciso desde já considerá-lo, embora muito sumariamente. A ciência do século XVII, desde Galileu e Newton, até à ciência do primeiro quarto do século presente, essencialmente a mecânica, chegou a uma visão do mundo em que os acontecimentos seriam perfeitamente determinísticos, certo efeito sendo completamente previsível desde que se conheçam todas as causas que o produzem. De tal maneira o determinismo ficou neste longo período de dois séculos ligado à mecânica, que ainda agora a causalidade de um acontecimento se designa pelo seu mecanismo. Com a interpretação mais correcta dos quanta no presente século, verificou-se que o determinismo não pode ser completo, ele falha ao nível das quantidades elementares de energia e da sua expressão complementar em termos de espaço e de tempo. Há fortes razões para extrapolar esta interpretação para sistemas mais complexos que aqueles para os quais ela foi inicialmente proposta e, de grau em grau, chega-se aos sistemas biológicos e nestes ao próprio domínio neuro-mental, onde também haverá incerteza. A este nfvel a incerteza quântica vem a corresponder ao livre-arbítrio, portanto a que, por não haver determinismo completo, nem todos os acontecimentos, e em particular os pensamentos, estão predeterminados pelas causas. Sem indeterminismo não haveria volição propriamente, mas apenas a expressão de um destino determinfstico nas acções, tanto dos grupos e sociedades humanas, como nas de cada homem individualmente. Esta é a base conjuntamente da liberdade e da responsabilidade humanas, em que mais modernamente a ciência vem a concordar com o que várias religiões e depois o humanismo há muito tinham estabelecido. De passagem, seja notado como o recurso a uma suposta ciência definitiva, a mecânica com o seu determinismo, pode fazer incorrer em erros de interpretação. A ciência está toda ela em constante fluxo, de modo que só o que é facto é seguro; as interpretações, pelo contrário, estão sujeitas a serem melhoradas ou alteradas completamente, pela descoberta de novos factos, como foram, no primeiro quarto do presente século, os quanta. Cuidado, pois, com a suposição de que estas ou aquelas doutrinas sociais ou polfticas são seguras só porque se arrogam de cientfficas - o que, realmente, costuma ser falso. É evidente que, se houvesse completo determinismo nas acções humanas, tanto individuais como de grupos, a análise de grupos, a cujas bases o anterior capftulo se dirigiu e que é aqui continuada, não seria mais que um exercfcio em antecipação histórica, e de modo nenhum uma contribuição doutrinária. Uma doutrina é um conjunto de deduções e de recomendações para acção, cujos efeitos se supõe poderem levar a certas volições, isto é, a comportamentos humanos tendentes a obter um resultado X, que sem essas volições se não alcançaria. Quão modesta que possa ser a contribuição doutrinária deste livro, ela é a razão de ser do trabalho do seu autor. Fixemos, pois, que há volições e que há doutrinas capazes de levar à acção e não apenas um determinismo inevitável, de fados que se cumprem. Generalizada, esta conclusão implica que a liberdade não é o reconhecimento da necessidade, mas que ela é existencial, começa no pensamento como potencialização para além da necessidade, ou seja, do determinismo, embora não possa actualizar-se em termos do ambiente ffsico e das sociedades senão dentro dos limites do que estes factores tornam possfvel. Agrupamentos de Carácter Biológico Passando agora aos agrupamentos de carácter biológico, a conclusão acabada de tirar aplica-se-lhes também. De outro modo, as forças biológicas que originam esses agrupamentos apareceriam como as mais terrfveis das forças do destino. (As outras forças do destino seriam as históricas, de uma história supostamente por completo determinfstica.) Os agrupamentos biológicos que aqui interessam restritamente são os do sexo, da idade e das capacidades individuais. Há também, como agrupamentos de ordem biológica que levantam problemas, as raças humanas, grandes divisões pela cor da pele e caracterfsticas associadas, primitivamente com uma distribuição nitidamente geográfica, ao presente ainda em parte com esta mas em outra parte com mistura a tal respeito. A descolonização veio minimizar ou até, em grande parte, eliminar para Portugal os problemas decorrentes da divisão em raças. Houve uma altura em que a "capacidade dos portugueses para a miscegenação" fazia parte dos clichés de propaganda dum Portugal supostamente para sempre pluricontinental, ecuménico e civiIizador. A reacção dos povos locais, na África, veio alterar as interpretações: localmente os negros parece não desejarem que seja por este modo que as diferenças, das quais só as sociais Ihes interessam, que existam entre as populações negras e as de outras raças, se esbatam, mas sim por factores sociais. Torna-se claro que, se não deve haver mestiçagem entre duas ou três raças em contacto, porque a ela se opõem ideias de ressentimento ou de outra ordem, haverá infelicidade pessoal quando casais interraciais se formem. Deixemos, porém, este ponto de lado, que, aliás, é comum a casos em que ideologias (por exemplo de países do leste europeu em relação aos do oeste) se opõem à liberdade emocional, uma das liberdades que modernemente são próprias do homem, como foi enunciado no Capftulo III. Bipolaridade dos Sexos Os outros grupos biológicos que não as raças, passam sobre as fronteiras geográficas e levam a problemas sociais que são, assim, comuns a toda a humanidade, embora a expressão de tais problemas possa ser muito diferente conforme o estado da sociedade em que se manifestam. O maior dos grupos biológicos depois da própria espécie como um todo, é o constitufdo por cada um dos dois sexos. Quanto a isto, a humanidade herdou a bipolaridade, macho e fêmea, que veio desde as origens dos vertebrados, mas que não é geral a todos os seres vivos, muito menos que isso. Há a respeito de sexo exemplos de multipolaridade, vários grupos e não apenas dois, para uma reprodução que, entretanto, se mantém em regra com fusão de apenas duas células para começar nova geração, devido a que se fixou na vida uma sequência entre estado duplo e estado simples da informação genética básica. Do mesmo modo que há noutros seres multipolaridade, também na espécie humana há anomalias da bipolaridade, o que cria problemas sociais, por vezes espinhosos e que, escamoteados por sistemas autoritários, vêm ao de cima em sociedades de tipo democrático, isto é, de livre expressão. A bipolaridade normal leva a que os dois sexos tenham diferenças nítidas em diversas características corporais e em parte das funções vitais. Tais características têm levado, quer a sociedades de tipo paternalístico, quer, menos frequentemente talvez, a sociedades de tipo maternalístico. A função de gestação e as diferenças sexuais têm pelos tempos fora causado predominâncias, quer do homem em relação à fammília e daí na sociedade formada por famílias, quer da mulher também em relação à família e na sociedade, do mesmo modo. Considerando o que a antropologia social descritiva, principalmente de sociedades pouco desenvolvidas, mostra a este respeito, as sociedades serão de tipo patriarcal ou matriarcal segundo condições naturais ou supostamente isso: conforme necessidades de defesa contra outros grupos, tribos, nações, conforme o regime económico, conforme a taxa de sobrevivência dos filhos no ambiente mais ou menos apropriado a este fim, e talvez segundo ideologias ou tradições. Com o andar dos tempos, cada sociedade tende para certas rotações sociais entre homem e mulher, na constituição familiar, economia, leis, etc. Estas relações são baseadas nas que nas sociedades primitivas, ou menos desenvolvidas, aparecem como "naturais", mas o evoluir social tende a fazer predominar sobre tais relações as da produção e económicas, além de em regra exacerbar o tipo de dominância a que estas últimas relações levam. O resultado é que nas sociedades de tipo medianamente desenvolvido tende a haver um predomrnio dos homens na vida social, que frequentemente se transforma em dominância, por vezes de características desumanas. Injustiças e Infelicidades de Origem Sexual Nos países de livre expressão e nos mais desenvolvidos economicamente, há movimentos de libertação das mulheres e chegou a vez de em Portugal, com a liberdade política, se manifestarem à luz estes movimentos, perante generalizada incompreensão masculina. Não é apenas a uma ideologia verdadeiramente progressiva que há que ir buscar as bases para corrigir o que as forças biológicas tenham trazido de desfavorável, expresso num contexto social, para as mulheres. Mais basilar e seguramente, há recurso para a civilização, o evoluir das sociedades para a tolerância, a compreensão e a equidade na fruição das liberdades. As condições biológicas inerentes à gestação, só seriam suprimidas se a espécie humana voltasse à oviparidade (há uma obra do socialista George Bernard Shaw em que isto é dado como acontecendo no futuro) ou, melhor ainda, se em vez de reprodução sexuada houvesse reprodução por células em cultura, voltando-se basicamente a este respeito ao que ainda agora apresentam os animais mais simples de onde o grupo a que pertence a nossa espécie partiu há milhões de anos. Justamente por esta antiguidade de evolução, afigura-se no estado actual da biologia como impraticável voltarmos atrás a este respeito. Com o retorno às origens as diferenças sexuais seriam suprimidas, a família, as emoções entre homem e mulher desapareceriam, e a sociedade seria inteiramente diferente. Por agora e durante muitos anos ainda no futuro, há que contar com a reprodução humana tal como está, e o que se pode fazer de progressivo é minorar socialmente aquilo que no caso normal das diferenças biológicas entre homem e mulher se não pode mudar. Mais difícil será atender aos casos anómalos. Estes são, por causas biológicas, da ordem de um por mil dos nascimentos, em que o sexo não é normal. Frequentemente estas anomalias vêm associadas a outras, que incapacitam a vida dos nascituros, de modo que a percentagern da população, com fortes anomalias do sexo, anatomicamente, pode ser menor. O caso é relativamente pior para as anomalias de comportamento sexual, que se verificam em regra em números da ordem de alguns por cento da população. Nos países de liberdade estas pessoas formam grupos bem aparentes, em grande parte com o fim de mutuamente se encorajarem a não esconder a sua condição; em regra, porém, estes grupos continuam a ser fortemente mal vistos pelos não-anómalos. As perseguições, miséria e desgraça a que as pessoas de comportamento sexual anómalo estão sujeitas são históricas, bem conhecidas em casos tanto antigos como recentes e isso continua no presente, sendo uma das mais notórias fontes de infelicidade para membros das nossas sociedades. A liberdade completa a este respeito parece duvidosa de aplicação como remédio. Somente tratamentos poderão no futuro levar a uma estrita bipolaridade. Têm a este respeito oscilado os dados científicos, entre se as pessoas de comportamento sexual anómalo apresentam, ou não, hormonas diferentes das que existem nos dois sexos normais. Está no futuro chegar a uma conclusão sobre este ponto e, talvez por tratamentos hormonais, dar remédio às anomalias. Desde já, porém, se pode notar como se tornam importantes os problemas do sexo nas revoluções, as que em Portugal têm tido lugar desde Abril 1974 não sendo excepção a este respeito. Uma parte dos componentes de círculos libertários e uma fracção, em regra das mais activas, de partidos "avançados" ou considerados como de extrema-esquerda, deixa bem transparecer a importâ.ncia que para eles têm tais problemas, dentro da bipolaridade mais frequentemente, fora dela por vezes. Não seria difícil que, numa análise com tendências freudianas, uma parte do ímpeto revolucionário se atribuísse mesmo a expressões, em última análise, de problemas do sexo, mas conclusões destas poderiam ser falazes individualmente. Também se pode notar a espécie de paradoxo que consiste em que, por um lado, se quererem conduzir os anómalos do comportamento sexual à bipolaridade, macho e fêmea e, por outro, haver o facto de os movimentos mais extremos de libertação das mulheres quererem acabar com as diferenças entre homem e mulher, para tal acabando mesmo com a respectiva atracção sexual. Base Familiar e Demográfica para a Sociedade do Futuro De todos os pontos que são a considerar numa sociedade progressiva e aberta, o mais importante é o que concerne à própria constituição familiar da sociedade. Desde há muito as sociedades na maioria dos países têm-se fundado na família, cuja base de formação mais óbvia é a atracção sexual, mas a força biológica mais forte a este respeito é a reprodução, anterior nos seres vivos ao sexo. Há também forças psicológicas poderosas a intervir. Este assunto será discutido noutro capítulo. Entretanto será aqui apropriado sublinhar que as alternativas para acabar com a família, só num futuro que se afigura distante se apresentam como verdadeiramente humanas. Num futuro próximo as alternativas à família como base social são o matriarcado, que não parece ser melhor que o patriarcado, ou uma simples função biológica das mulheres em terem filhos, os quais seriam entregues à instituição pública que os criaria. É evidente que o grupo político que nessa altura se apropriasse do poder começaria por em cada geração "torcer bem o pepino de pequenino" nessas instituições. Além de que o papel de máquina biológica de ter filhos seria mais degradante, para a mulher, do que tudo quanto as sociedades menos emancipadas lhe têm reservado. A não ser que se chegasse à cultura artificial de embriões a partir de ovos, duma maneira à "Bravo Novo Mundo", o célebre livro de Aldous Huxley. Mas mesmo então os ovos teriam que ser obtidos das trompas uterinas de mulheres, pelo menos de vez em quando. Em suma, parece que, por bastantes anos ainda, as mulheres terão o papel de iniciadoras das próximas gerações, como os homens também contribuem para tal, embora em menor escala quanto ao papel biológico. Uma sociedade sã será aquela que combina o espírito de piedade natural quanto aos "factos da vida", com o autêntico progressivismo de minorar as consequências desses factos e de procurar no futuro alterá-los para melhor. Um dos "factos da vida" é no caso da bipolaridade sexual o de os mamíferos vivíparos do sexo feminino terem o encargo de, durante os primeiros tempos de vida, dar guarida interna à próxima geração, que então se comporta como parasita do organismo materno. Aliás, a piedade natural, um sentimento de que "é pena que seja assim, mas que é inevitável por enquanto que assim seja", é necessária também em relação a outros factos e períodos da nossa vida, que são regidos por forças biológicas mantidas durante a evolução da nossa espécie a partir de espécies ancestrais. Outros capítulos referem-se a estes factos no período juvenil, em que o parasitismo continua, agora já não apenas sobre a mãe mas sobre a família em geral e sobre a sociedade. Numa sociedade sã combinar-se-á a determinação de inovar e progredir com a análise dos sacrifícios necessários, não se entregando as pessoas a um hedonismo inconsciente ou, pelo contrário, não escravizando um presente miserável a um pretenso futuro radioso. Este último é um dos habituais engodos das políticas chamadas progressivas (em regra realmente escravizantes) e, no fim de contas, terá que figurar em qualquer política que aspire a mais que remendar defeitos de ocasião na prática económica e social. Certos partidos procuram levar as gerações actuais para a escravidão em contrapartida de prometerem para os filhos, e os filhos dos filhos, uma vida muito melhor, radiosamente sem problemas, económicos, sociais ou pessoais, como os que afligem a geração presente. Isto é, na melhor das hipóteses, apenas simplista utopia de políticos sem espírito crítico para verem que todas as promessas feitas até agora a este respeito nunca foram cumpridas, realmente porque não o podem ser (discussão mais detalhada nos Capítulos XIII-XV). Na pior das hipóteses, e infelizmente habitual, tal promessa não passa de um embuste destinado a anestesiar a vontade colectiva. Embora o modo de viver das sociedades civilizadas seja um projecto, uma tendência para caminhar para uma vida melhor e, portanto, se aspire a que os netos vivam melhor que os filhos e estes progridam em relação aos pais, nada justifica que as pessoas façam como que de moscas varejeiras, as quais chegam a ser devoradas pelas larvas que se desenvolvem no seu interior. Em regra as promessas de melhorar a vida dos filhos, escravizando entretanto os pais, não passam de rabulice de políticos sem escrúpulos, geralmente de características ideológicas fósseis ou primitivas, para conseguirem instalar-se no poder. O comportamento são é o do projecto equilibrado, no qual se julga o que poderá ser a melhoria do futuro com base naquilo que a política e a praxis social são capazes de a este respeito realizar no presente: portanto, exigindo melhoria para o viver dos pais a fim de que estes, generalizadamente e não por procuração apenas os políticos e o seu partido possivelmente escravizante, melhorem o modo de viver dos filhos. Estes por sua vez, farão o mesmo à próxima geração. Para se poder levar a bom termo um tal projecto, a demografia, o controle voluntário da taxa reprodutiva nas famílias, e o pensamento civilizado aplicado à resolução dos problemas das necessidades humanas, são mais importantes do que as correntes ideológicas e polfticas -assunto a discutir noutros capftulos, menos esquematicamente do que é indicado por esta simples menção dele.
|