Senhor, aumenta a nossa fé!

 

 

 

 

 

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


  1. Quando preparava a homilia, do Domingo passado, sobre uma passagem do Evangelho de S. Lucas (17, 5-10), parecia-me um texto sem pés nem cabeça. Não queria, porém, fazer como aquele padre que, diante das dificuldades, informou: o Evangelho hoje não presta e tratou de assuntos práticos da paróquia.

Os Apóstolos pediram a Jesus: aumenta (ou desperta) a nossa fé. Ele, em vez de aumentar, despertar ou robustecer a fé, não satisfaz o desejo que lhe manifestaram. Até parece que não embarcava nessa conversa. Responde de uma maneira que parece disparatada, como se dissesse, vós não tendes fé nenhuma. Se tivésseis fé ainda que fosse só como um grão de mostarda – a mais pequena das sementes – diríeis a esta árvore: arranca-te daí e vai plantar-te no mar. Com muita ou pouca fé, ninguém estava interessado em plantar árvores no mar.

Não ficou por aqui. Mudou o rumo à conversa, falando de um senhor sem reconhecimento pelo trabalho cansativo dos seus servos. Ao fim de um dia de trabalho, ainda os obriga a fazer e a servir-lhe o jantar. Eles só poderão comer depois. Os Apóstolos não lhe tinham falado nada dessas relações laborais. Este cenário, que o narrador moldou, apenas disfarça o que, de forma clara ou parabólica, estava sempre presente nas inquietações que os acompanhava.

Acontece muitas vezes, nas narrativas evangélicas, a pergunta: que ganhamos nós em termos deixado tudo para te seguir? Ou, então, quando formares governo, quem de nós ocupará os primeiros lugares? A resposta de Jesus é dupla. Por um lado, se fizerdes um mundo de irmãos, não tendes que vos preocupar, nem com a habitação nem com o alimento. Será tudo de todos. Por outro, rompe com todas as suas ambições: entre vós quem desejar ser o primeiro ponha-se ao serviço de quem precisa de cuidados. Não vos chamo para dominar, mas para servir.

No texto do Domingo passado, com outro cenário, conclui com o mesmo radicalismo: Assim também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: somos servos inúteis. Fizemos o que devíamos fazer. A fé cristã não é um negócio, uma moeda de troca.

  1. Com tudo isso, não pretendo dizer que o pedido dos Apóstolos era despropositado. As estatísticas sobre a prática religiosa, em muitos países da Europa, revelam grandes mutações. As suas organizações e as suas formulações institucionais não são as que gozam de maior capacidade de agregação. Seria uma conclusão precipitada dizer que o sentimento religioso e as espiritualidades perderam qualquer atracção. Antes pelo contrário. Apesar de todo o prestígio da cultura científica e técnica, o ateísmo está muito longe de ser a crença mais universal.

No caso católico, é o próprio Credo, rezado nas missas dominicais, que suscita especiais perplexidades e dúvidas. Tudo aquilo que serviu, durante séculos, para afirmar a ortodoxia, tentando superar, nos concílios ecuménicos, conflitos e guerras de interpretação, suscitou novos equívocos, conflitos e novas divisões.

Não se teve nem se tem na devida conta um acontecimento importante, o da chamada teologia negativa ou apofática do pseudo-Dionísio Areopagita. Diz-se pseudo-Dionísio porque o autor dessa construção teológica, que viveu entre os séculos V e VI, tentou fazer-se passar pelo Dionísio convertido por S. Paulo em Atenas. Essa habilidade só foi denunciada no século XVI. Importa dizer que essa ficção foi muito produtiva e não devia ter sido esquecida.

Na Idade Média, vários autores guiaram-se pelas obras dessa teologia mística. Foi o caso de Tomás de Aquino. Muitos comentadores reconhecem essa fonte, mas raros são os que destacam a sua importância na elaboração da sua obra monumental. Importa dizer que os escritos de Dionísio o curaram das tentações racionalistas e marcaram toda a sua investigação. Não é por acaso que, depois de tentar mostrar que Deus existe, acrescenta: falta investigar como é que Deus é, e acrescenta logo, mas, acima de tudo, como Deus não é[1]. Todas as afirmações, para dizerem algo de acertado, têm de ter em conta esta concepção. Não nos podemos admirar que, ao tratar do Credo, dos enunciados da fé católica, destaca que o terminal do acto de fé não são os enunciados do Credo, mas a misteriosíssima realidade divina resistente a todos os conceitos[2].

Em coerência com essa posição, insiste que, nesta vida, na nossa condição de peregrinos, não podemos ver como Deus é, mas como Deus não é. Mais ainda, de Deus tanto mais sabemos quanto mais tomamos consciência que Ele excede tudo o que o nosso entendimento pode compreender[3].

  1. Na primeira questão daSuma de Teologia, em que explicita a sua epistemologia, distingue o que é o conhecimento místico, por afinidade com a realidade divina, da teologia que resulta do estudo aturado. É deste que nasce e se desenvolve esta sua obra emblemática.

Conta-se que, antes de morrer, Tomás de Aquino, depois de uma experiência mística, não quis escrever mais e deixou a sua obra incompleta porque, teria dito ele, tudo o que escrevi me parece palha seca. Esta piedosa ficção, até está em consonância com a teologia apofática, mas não se pode esquecer um contraste. O que construiu é fruto do estudo, da veemente aplicação da mente, mas com uma consciência aguda de que Deus é um abismo misterioso, resistente a qualquer conceptualização.

No seu breve e extraordinário tratado sobre a Lei Nova, a lei evangélica do amor e da liberdade, realça que aquilo que esta lei – o Evangelho – tem de mais poderoso e no que consiste toda a sua energia, é a graça do Espírito Santo que é dada pela fé de Cristo. Por isso, o que há de principal na Lei Nova é a própria graça do Espírito Santo que é dada, de forma explícita ou implícita, aos fiéis de Cristo. No Cristianismo, tudo o resto é secundário, isto é, deve estar ao serviço da graça do Espírito Santo. Este não é um tratado à parte, uma espécie de pérola na longa elaboração das Sumas que escreveu. É o Espírito de toda a sua obra, a marca indestrutível do seu evangelismo. Afirma que, sem este Espírito, até a letra do Evangelho mata.

O grande medievalista, especialista de Tomás de Aquino[4] e inovador da teologia no século XX, Dominique Chenu, O.P., viu um dos seus primeiros livros, Une école de theologie (1937), colocado, em 1942, no Index, o índice dos livros proibidos da Igreja Católica. Soube da notícia pela rádio e, profundamente afectado, nessa mesma noite, demitiu-se do seu cargo. O arcebispo de Paris disse-lhe para ter calma, pois «dentro de vinte anos todos falaremos como o P. Chenu». Este teólogo condenado, foi reabilitado por João XXIII que mandou reeditar, durante o Vaticano II, essa «obra maldita». A sua teologia dos sinais dos tempos implica a escuta do rumor do Espírito nos remoinhos do mundo.

[1] Suma de Teologia, I q. 2 Prólogo

[2] Ib. II-II q.1 a.2 ad 2º: Actus autem credentis non terminatur ad enuntiabile, sed ad rem

[3] Ib. II-II q.8 a.7

[4] MARIE-DOMINIQUE CHENU, Introduction à l’étude de Saint Thomas d’Aquin, Vrin, reimpressão em 1993


Público, 09 Outubro 2022