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Um Beijo Dado Mais Tarde |
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Quando evocamos a esthésis falamos de fusão entre o sujeito e o objecto no momento da “saisie esthétique”: nostalgia da tensividade fórica. Zilberberg introduziu as noções de ritmo e de tempo em semiótica, acentuando a ideia de que o ritmo (a vibração) é essencial para dar conta na esfera do patémico da natureza das relações sujeito-objecto. Porque o ritmo define a tonalidade afectiva segundo a qual habitamos o mundo (1). Na experiência estética é o objecto que marca patemicamente com o seu ritmo próprio o sujeito que está perante ele numa atitude de receptividade. Tratando do tempo, evoca o tema da relação sujeito-objecto, da distância que os separa (2). A distância é de ordem patémica que o objecto imporia ao sujeito. É o que relata G. Luca e o que Llansol conta da casa dos objectos deixada vazia. O objecto poderia definir-se como um conjunto de propriedades sintácticas e de constrangimentos impostos ao percurso do sujeito. O sujeito (que impõe protensivamente um lugar sintáctico ao objecto) e o objecto (que semantiza o sujeito) interdefinir-se-iam sob o signo da valência. Antes de mais, diante dum objecto (algo) percebemos que uma energia se desprende dele, uma dinâmica interna lhe dá consistência. “Energia”, “dinâmica” são metáforas do correlato objectal da intensidade perceptiva (3). Há uma categoria fenomenológica subjacente: a presença. Como é que o discurso esquematiza a presença fenomenológica para fazer dela uma das suas propriedades semióticas? Uma presença declina-se (a) no plano sintáctico, na forma de relações entre actantes posicionais, e (b) no plano semântico como intensidade e extensão. Para Fontanille este campo tem as seguintes propriedades: um centro de referência e profundidades que determinam o lugar e a forma dos “horizontes” ou “fronteiras” do campo (4). A presença, que vem ligada ao acto perceptivo, é a categoria que melhor define a enunciação no discurso. Ora, uma semiótica do discurso tem de se esquematizar segundo a forma duma estrutura tensiva. A semiótica do descontínuo pensava a paixão em termos de junção; o que naturalmente convém à presença que só é detectável num segmento contínuo. O semiótico coloca-se no entre-dois da relação tensiva entre Sujeito e Objecto. Para Lucrécio qualquer sensação resulta dum contacto: as sensações "tornam todos os objectos dos sentidos tocáveis ( hapta )" e se assim é, cada um dos outros sentidos é uma espécie de tocar . Haveria um tocar fundamental (H. Parret) como uma espécie de “proto-sensação” para o qual converge toda a virtualidade sensorial. "O tocar, a mais profunda das sensações a partir das quais se desenvolvem as paixões do corpo e da alma, visa, em fim de contas, a conjunção do sujeito e do objecto, a única via de acesso à aisthesis (...) O tocar exprime proxemicamente a intimidade optimal e manifesta, no plano cognitivo, a vontade de conjunção total" (5). O predicado de base do tocar é o da presença pura : “il y a lá quelque chose qui n'est pas moi; à quoi s'ajoute une première réaction thymique: ce quelque chose m'attire ou me repousse» (6). Há textos de difícil definição topológica por fazer parte da sua própria estratégia desestabilizar esse aspecto (Cf. McHale 1987, cap. 2). É conhecida a crítica radical da linguagem que ocorre na Europa Central desde o princípio do século XX e a década de 1940. Esta crítica produz uma desestabilização semelhante a um terramoto no interior da linguagem. “A Carta de Lord Chandos” de Hofmannstahl reproduz o turbilhão em que as expressões e os juízos se transformam em “cogumelos borolentos” e em que Chandos deixa de poder confrontar-se com os objectos e os artefactos. Um regador, um cão que preguiça ao sol, uma modesta casa camponesa do seu domínio, tudo isso pode tornar-se um “receptáculo de revelação” tão carregado, tão repleto de existencialidade, que torna impossível qualquer resposta adequada (7). A narradora de Um Beijo Dado Mais Tarde (um texto inclassificável, quanto ao género) fala de uma casa situada na Domingos Sequeira, herança familiar, uma casa onde “não se administrava bem a justiça da língua” (BDT, 7, habitada por um “mau silêncio que perseguia a rapariga que temia a impostura da língua” (BDT, 17). É essa rapariga, Témia, que criou nos objectos uma máscara. Mas quem faz deles quimeras é aquele que no texto diz “eu”. É para esse “eu” que Témia escolhe os objectos que lhe traz. Aí coisa é o rosto do quieto, rosto de mesa , de salvas de prata , de corredor, de salas com reserva. A casa é uma mina de atractores que são tão familares como inquietantes: a jarra, a porta, o candeeiro, Johann, a imagem em marfim do Padre Eterno. Há claramente um gradiente de sedução ou de repulsa que separa os objectos: o “Gungunhana”, Salomé, o cordeiro, o Anjo de porcelana, animais em porcelana, Ana (a estátua policroma em madeira), “a poderosa figura masculina (quadro) que estava sobre a estátua de Ana e Myriam no oratório da avó” (BDT, 101), a própria Maria Adélia: “Eu sou um objecto_________Eu nunca soube o que as coisas eram, a não ser o que são para si, menina” (BDT, 16). Mas também o Anjo de porcelana diz: - Eu sou um objecto – voltou a fazer-se entender o Anjo de porcelana , posto no oratório (8). “Todos os objectos, na casa, devem estar à volta deste, obedecer ao livro aberto nos joelhos, e à tranquilidade – ainda sem escrita – da criança que os lê” (BDT, 25). No meio da poeira dos objectos, uma pergunta surde: “quem me chama”? (BDT, 33). A resposta encontra-a o “eu” que escreve debaixo do peito pesado de Johann e onde encontramos a mais fulgurante definição do objecto: “ele tornou-se agora um objecto, um grande ser móvel, que se defiine pelo esplendor que eu dou à sua presença” (BDT, 33). Um “eu” reflecte e interioriza o espectáculo dos objectos legados: é o “eu” que valoriza (o olho vê, a memória regista, o espírito religa e interpreta, a paixão participa na força que se desprende dos objectos recobertos de véus e a que se lhes dá voz). Assim se monta o círculo electivo da vida protegida por um halo sentimental (uma máscara). BDT dá-se à leitura como um caleidoscópio mágico em que o gesto da escrita se projecta nos objectos assim reunidos para a festa da leitura e da interpretação. O que mais intriga neste livro é que os objectos herdados vão ser como quem recebidos de novo, recolocados em posição de interlocutores: ”não tive mais ocasião de falar convosco desde que vos herdei. (...) Os vossos sentimentos encontrarão em mim acolhimento (BDT, 14). Os objectos fascinam: “ando fascinada com objectos” (BDT, 60) – há um espaço elementar de onde os objectos são vestidos, investidos - daí ressalta o seu esplendor, a sua intensidade. Há objectos investidos de paixão: “é a paixão que a porta sente por nós que nos integra (BDT, 64); há objectos que transportam luz: semióforos (luzinha descalça (BDT, 64), outros nascimentos: a cegonha BDT, 65). Uma verdadeira teoria da leitura nos é proposta neste livro de Maria Gabriela Llansol e em particular na passagem deste livro da estátua policroma de madeira do século XVIII “em que Sant'Ana ensina a ler a uma jovem (Myriam)”:
Ana ensinando a ler a Myriam é o objecto mais precioso da casa. Note-se que há um “tronco de leitura” (BDT, 41). Maria Adélia é a figura que permite à criança o acesso ao escritório do Pai, “a chave de ler” (título do III Capítulo) e é com ela que a criança exercita a”as cópias da noite”. Por outro lado, a imagem em marfim do padre Eterno transforma-se como os demais objectos, “potencialidade de texto vivo, ultrapassada a língua morta em que sonhavam” (BDT, 99). O texto faz-nos assistir a uma convocação dos objectos que acorrem, à voz do Anjo e pela força da memória à chamada. “A jovem volta ao seu lugar, na estátua, e quebra o que lê em mil pedaços, sem quebrar o livro onde o ler circula. O testamento que leu foi-lhes lido; todos os objectos são agora – imagina – móveis por si mesmos __________herdados_________e estão presentes no acto permanente de ler” (BDT, 25-28). Como o historiador de arte, a narradora de BDT “monta” tempos heterogéneos, partindo de uma origem mais do que enigmática, e procedendo como a criança que faz colecções de objectos recorrendo ao trabalho do agregado e da configuração. Assim faz a desconstrução visual do visível como o conhecemos. Nos quadros de Jasper Johns, a pintura deixa de ser uma ilusão: torna-se realidade, objecto. Na “linguagem jasperiana” abundam os fragmentos do corpo humano, referências poéticas e históricas, objectos, cores sombrias. Todas as coisas têm aqui um carácter psicológico. O seu material de eleição é o encáustico. Jasper considera o objecto em conformidade com o modo como “vê” a pintura. A sua paixão pelo objecto é um sinal da sua linguagem (9). “Para que a língua não fosse mais impostura, criou nos objectos uma máscara; faço deles quimeras que ninguém sonha que palavras são”, escreve Llansol (BDT, 18). Ou, de outro modo: “ Falo ao cordeiro-objecto, cantando estas circunstâncias nascentes que sobreviveram. Na casa, não se administrava bem a Justiça da língua” (BDT. 7). Assim se prepara a congregação dos objectos. “Vinde ler” – diz Ana aos objectos, e o primeiro que dela se aproxima é uma jovem viva; vem depois um grande carneiro deitado. ---“Venham todos ler” (BDT, 25). Ler é preciso, mesmo que, quando cada um volta ao seu lugar, quebre o que lê em mil pedaços sem quebrar o livro onde o ler circula. O destino dos objectos é, afinal, no fim da história, este: “todos os objectos são agora – imagina – móveis por si mesmos ----herdados --------e estão presentes no acto de ler.” (BDT, 25). O sentido, para a semiótica, emerge do jogo que se instaura entre o sujeito e o objecto. A relação com o objecto não manifesta não apenas a transitividade do sujeito com as coisas, mas o encaminhamento que, através do tempo e as sensações, cria uma relação tensiva entre o sujeito e o mundo, isto é. o sentido das coisas para o sujeito. Hoje, os objectos temporais (filmes, música) são objectos industriais. B. Stiegler adverte para o facto que estes objectos, industrializados, colonizam o tempo. O modo de inscrição dos objectos armazenados ou a sua determinação torna-se – como já Deleuze previra para o cinema – um constrangimento que pré-constrói a doação do sentido. Os “Tamagochi” não inquietam apenas os pedagogos – que seria dos pedagogos sem a paixão do desassossego?(10), mas também os semióticos que, admitindo as derivas do sentido, não renunciaram, contudo, à sua reorientação. Ao fim e ao cabo, a boneca a que Luca chamou “La lettre L” é neutra e indiferente enquanto não for transformada em objecto de desejo. Só os “artistas” podem, de facto desarrumar o mundo, sem o terror (sensato) de confundir as regras do mundo “virtual” com as do mundo “real”. É essa a força do seu dom poético. |
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Notas | |
(1) Maldiney, Regard, Parole, Espace , 1973, p.149. (2) Claude Zilberberg, Présence de Wölfflin, NAS, 23-24, 1992, p. 14-32. (3) J. Fontanille, op. cit ., p. 218. (4) Ibidem , p. 219. (5) A. J. Greimas, De l'imperfection, Pierre Fanlac, 1987, p. 92 e 30. (6) Jacques Fontanlle, « Modes du sensible et syntaxe figurative », NAS 61,62,63, 1999, p. 30. (7) Cf. George Steiner, Gramáticas da Criação, Lisboa, Relógio D´'Agua, 2002, p. 297. (8) Note-se que, ao lado do Anjo de porcelana coexiste o Anjo da palavra, que a si mesmo se desconhece, mas que é reconhecido como “verdadeiro” e guia. (9) Demosthenes Davvetas , Dialogues, Au Même Titre, 1997, p. 169. (10) Jean-Marie Schaeffer lembra que Maria Montessori o jogo imaginativo era uma «tendência patológica da pequena infância”, in P ourquoi la Fiction? , Seuil, 1999, p. 307. |
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