13 NOTAS SOBRE "CANTO INICIAL"
José Augusto Mourão, op

1. "Que a tua presença tão fulgurante/ Me ilumine nos labirintos da morte/ Do meu ser vendado". Vendado o ser, vendada a verdade do desejo. O próprio da verdade é permanecer escondida pelo brilho da luz. Não é por acaso que Satã se chama também Lúcifer!

2. O testemunho sofre. Experimenta uma tristeza que é a expressão de uma alegria que não se pode dizer, que não poder ser partilhada no mundo, que não é recebida pelos vivos. A tristeza marca o obstáculo à realização do desejo da vida. A proximidade do Reino assenta no facto de que ele que está em nós, escondido dentro, no exacto lugar em que podemos recusar entrar para continuar no nosso eu.

3. Aquilo que nos é dado sentir graças ao discernimento dos espíritos é a alegria de viver em Deus ou a tristeza de estarmos separados dele.

4. Só o desejo nos guarda no coração da vida. Viver, para um homem, não é não morrer, mas viver com. Mesmo se viver com é sempre mais ou menos morrer por e se o eixo da vida que até na morte se dá é o do amor.

5. Que Deus se revele no céu, isto é, no espírito e na transparência, ou que se revele como a alegria muda e irrisória no coração do horror e da guerra, isto é, na terra, de qualquer modo ele está lá: Deus está onde nós estamos. Ele é a verdade do desejo que o procura. Deus não está fora da dor, irmão.

6. "Deus da luz a minha alma morreu/ Numa girândola de demência cega". O desejo é a terra do homem, a sua raiz. Este livro transborda de desejos e de invocações de luz. Da boca de crianças com lágrimas nos olhos, loucas nalguns casos. Que é a loucura senão a prisão do eu macerado? Os loucos têm uma visão fulgurante das coisas. Permanecem numa luz luciferina de que não podem separar-se. A negação do Outro tem neles a forma da blasfémia. O seu horizonte a eles se limita e o seu fim é uma morte. O louco é um morto vivo: na sua vida não há desejo nem há Outro. Esta submissão da vida à morte chama-se orgulho, uma energia que invade tudo e que mata tudo se não nos desembaraçamos dela. Aquele que recusa reconhecer o outro está a negar a sua própria vida. Recusa viver porque vive isso como uma humilhação. E essa humilhação chama-se orgulho. Há desde sempre na Igreja uma dialéctica formidável entre a humilhação e a humildade. Não encontramos a humildade senão através da mediação da humilhação, i.é., através da confusão do orgulho. A questão do pecado é a da cumplicidade com um desejo que se tornou louco, a pretensão de ser cada um a origem de si mesmo.

7 "o vazio é o reino onde/ A minha alma está encarcerada". Mestre Eckhart ensina que a pobreza, a humildade e a nobreza se resumem todas no desprendimento. A pobreza e a humildade eckhartianas nada têm a ver com as virtudes cristãs de que falam os teólogos conservadores do fim do século XIII, nem a nobreza exaltada por ele se identifica com a magnanimidade de Siger como a virtude dos grandes. A grandeza de alma de que ele fala é a do vazio, é esse “aumento do alma” através da aniquilação que eleva o homem acima de todo o criado. Grandeza e pequenez não se opõem. A humildade é grandeza (projecção geométrica da esfera) e o baixo e o alto coincidem. O homem pobre, humilde e nobre são um só e mesmo homem: o homem desapropriado, “sem qualidades”, o homem “sem isto nem aquilo”, o homem desapegado.  

8. "Estende-me uma lágrima do Teu perturbado/ Rosto". Afinal Deus não é impassível, Deus perturba-se. O desossamento de Deus pertence à escolástica, não é obra da literatura nem da arte. No mistério da Encarnação o Filho de Deus tornou-se visível em carne e osso: "Ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher" (Gal 4,4). Veja-se o "Cristo flagelado" de Georges Desvallières ou o "Cristo flagelado" de Georges Rouault.  

9. O branco, o jardim, a luz são imagens paradisíacas. Os efeitos do desejo são o gozo e a alegria. Aqui as lágrimas são "Um vitral de Luz e de Amor". Mas há imagens infernais: o sangue vendado, o túmulo vivo, a demência cega, as crianças mortas.

10. "No rosto da morte que é o Teu rosto". Restos de um Deus morto campeiam por algumas páginas deste livro, misturado com um Deus da paz. Tormentos de um poeta que as lágrimas turvam e que tanto vêem "crianças de magia de um sol / de Amor" como "crianças mortas/ Na infinita alegria de Luz". A criança é a metáfora do Reino, isto é do homem que nasce e se transforma e se abandona porque um outro o acolhe, o ama. Que crianças são estas que servem aqui a morte e o nada, vítimas e carrascos? Que drama se revive aqui: o do nascimento através o fantasma do esmagamento e da exclusão?

11. O que salva o poeta é que ele não se deixa cair na recusa da palavra como um abismo sem fundo. Que ele não negue que nasceu e que não se aproprie da sua origem. Aquilo que alimenta o fantasma de não ter sido acolhido na vida é também aquilo que alimenta a ideia de abandono e da exclusão da vida. O poeta não se vinga da vida retirando-se dela.  

12. "A minha alma perturbada/ Adormeceu enfim no Teu coração infinito e doce". O que salva o homem é o abandono na palavra do outro, não no imaginário da sua prisão (que é a prisão da linguagem). O abandono no Outro exige num dado momento um salto no vazio. Vazio ou esperança? Porque invocaríamos um salvador em que não acreditássemos? Como invocaríamos a paz querendo a vingança? 

13.  Êxtase branco. Acolhimento do maternal. Passos. Alguém saudou a escuridão da nossa casa. Falta-nos o ouvido para atirar a alma para o oriente desses passos. O Canto inicial é treva luminosa como tudo o que é profundamente humano. Pouca literatura portuguesa é assim são melancólica e triste. Mas ouve-se o sangue nestes versos e aquilo que desde o início nos liga: o corpo e a palavra.