JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

 

Deus na literatura
O Nome e as formas (fim)

   
Aporias .
 

“Literature derails or suspends or redirects the normal referentiality of language. Language in literature is derouted so that it refers only to an imaginary word” (On Literature 20). No rasto de Dinis o Areopagita, Eckhart afirma também que o nome de Deus é o nomen innomabile – o esse absconditum de S. Tomás – e o nomen omninomabile. Não se põe em palavra o verbo essencial. Platão e Heidegger estão de acordo ao desvalorizar e derivar a escrita relativamente à palavra viva. O místico esgota-se a dizer esta impossibilidade. A dizer, segundo a expressão de Lévinas, o Dizer que está para além de todo o dizer (Agamben, 1991). Resta-lhe escrever ou proferir. A necessidade da linguagem nasce da incomensurabilidade da criatura e de Deus. A mística, como a poesia é a outra voz . A voz que vem de longe , um longe que está sempre aqui (1). Vemo-la como dicção da impossibilidade do dizer; como o espaço original da linguagem. A sua arte consiste em destituir os signos convencionais para que se possa instaurar, neste vazio de significação e de ciência, o sítio em que a criatura e o seu deus entrem em ressonância - em que uma para o outro é responso - vasto "espelho das almas simples", reflectindo a nua simplicidade de Deus e de quem entra no seu olhar. Mas este espelho tem um sentido duplo: enquanto mediação entre Deus e a criatura, é um receptáculo de Deus que não se pode olhar: "lugar de esplendor que a nossa vista não pode sustentar" (Minazzoli), deserto de imagens e de palavras. Mas há uma segunda face do espelho feita de errância e de multiplicidade: uma cena plural da linguagem, dicção de Deus: "Queres aprender a gramática? Aprende a declinar Deus no plural" (Pedro Damião). Pode falar-se dos “jogos de linguagem” de Eckhart que não cai nunca na armadilha das linguagens globalizantes (2). O primeiro traço da sua linguagem é que ele nunca está onde o imaginamos que esteja: quando pensamos que está a ser tomista, é neo-platónico. Uma segunda característica é proceder por associações. Quando lemos os Sermões é frequente vê-lo passar de um tema a outro. A sua lógica não é discursiva. A sua lógica é associativa. O seu discurso não é linear, procede por jactos, aberto. Falar assim é rejeitar o princípio da totalidade. O carácter auto-irónico da sua escrita é outra característica. Os enunciados do Mestre culminam muitas vezes no paradoxo. Essa é a sua virtude. De acordo, de resto com a definição que ele próprio dá do desapego : Quando uma palavra é concebida na minha razão, ela é antes de mais algo de tão puro e incorporal palavra até ao momento em que ma represento e se torne algo de imaginado. E só em terceiro lugar é proferida exteriormente com a boca; e mesmo essa é uma manifestação dessa palavra interior. Um dos títulos dos livros de Jean-Pierre Jossua, La littérature et l'inquétude de l'absolu (3) contém em si uma entrada possível para abordar a questão da literatura. Uma inquietude habita algumas obras literárias, crentes ou não (4). Há um texto de Yves Bonnefoy “Sur de grands cercles de pierre” (5) que leva ao limite os modos de linguagem mística, expressos, por exemplo, por Mestre Eckhart.  

Para Bonnefoy, “la seule réalité, c'est l'être humain engagé dans sa finitude”. Donde a sua recusa de alinhamento com Heidegger, em particular. Tal fenomenologia da poesia levava a colocar a língua numa relação íntima com uma verdade transcendente que seria a essência do poético. Ora, a poesia, que “seguramente é linguagem, só vale se põe em questão os meios que lhe oferece a linguagem. A poesia não é identificável com uma verdade formulável, é apenas a relha do arado que revolve a terra em que o pensamento semeará, para verdades que continuarão relativas às situações da vida social” (6). A poesia não se confunde com a mística ou com a teologia negativa, mas há uma série de afinidades que ligam esta literatura à mística. “Je lève les yeux, je rencontre une fois de plus, cette fois au-dessus d'une arche, ce chiffre qui reparaît sur tant de murs d'occident, un cercle ou un ovale dont le rebord, une moulure en saillie sur la paroi, n'enserre nul miroir, nulle image peinte ou sculptée, mais seulement rugueuse, grise, la pierre nue». A Nudez da pedra está aqui bem sublinhada e a sua verdade é “l'étendue, indéfinie, le désert”. Que sentido tem isto? “Dieu par la pierre”. Uma pedra informe. Que é Deus então? “Dieu, en effet ce qui excède le signe. Ce qui, signifié, serait aussitôt de l'éteint, serait déjà de l'aussi inconcevablement absent du tison éteint que le silence l'est du bruit, la ligne du point, la présence de la figure, Dieu ce qui, désigné, serait-ce du nom de Dieu, mot qui accueille pourtant l'idée de la défaillance du sens, ne nous a laissé qu'une image, ce qui nous induit au mensonge. » A negação de qualquer determinação dá-nos, escreve Jean-Pierre Jossua, la « réalité rugueuse » de Rimbaud elle nous permet aussi une expérience de plénitude dans un agnosticisme total au sujet de l'absolu…Dieu est la métaphore de la poésie qui libère les mots simples de leur surcharge en vue de parler de l'absolu. On n'appelle pas ce dernier par son nom, mais dans un nom, n'importe lequel» (7). «C‘est ce qu'on nomme l'amour».

Maria Gabriela Llansol tem, de Rainer Maria Rilke, “o mesmo tropismo pela luz”. Os objectos oscilam num movimento de permanente mutação como as suas personagens, de resto, sempre a irromper de um fio invisível que o texto desbrava. Llansol está já muito longe do Anjo de Rilke. A literatura não é uma agência de seguros, inseparável das transformações da história, embora não possa ser afectada pela história e pelo devir das técnicas (8).

“ele sente

que a literatura está a morrer, incapaz de explorar o estranho da vida, o estranho da linguagem, o estranho do humano, o estranho das coisas existirem” (OVDP, p. 264).

Jorge Leandro Rosa fala da “apophasis llansoniana”. Como se sabe o discurso apofático surge a partir da contínua e exaustiva referência à impossibilidade de estabelecer preposições capazes de afirmarem um objecto ou de o nomear. A apophasis pode ser um modo de discurso que, “a partir do esvaziar dos nomes, opera como escrita da sua inteligibilidade e nominalidade vertiginosas” (p. 9). O desafio é escrever uma obra no desdobramento da sua própria suspensão. A suspensão é aqui a de uma de-negação que é uma afirmação negativa da existência do texto, da sua presença tripla perante o autor, o leitor e a personagem. “Trata-se de uma escrita que é incapaz de narrar a sua descrença porque, a cada momento, essa descrença se suspende sem que uma crença precisa a venha substituir”. Coleridge descreve a ilusão poética da imaginação romântica como “a willing suspension of desbelief for the moment, which constitutes poetic faith” (vol 2, p. 6). “Momentânea suspensão voluntária da incredulidade” que se identifica correntemente com o contrato realista que liga o autor e o leitor. Coleridge distinguia a ilusão poética (“willing suspension of desbelief”) da halucinação (“delusion”) e qualifica-a de “fé negativa que permite às imagens agir a partir da sua própria força, sem denegação nem afirmação da sua existência real pelo julgamento”.

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Enunciação (poética) de Deus
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A teologia faz mais do que oferecer-nos conteúdos inéditos de experiência ou palavras inauditas, deixa-nos redeterminar as nossas habilitações para a experiência, a palavra, a escuta das palavras (10). A teologia é filha da história, filha da paciência do Deus que permite que a história continue, filha dos trabalhos que esta permissão lhe impõe. A palavra chega-nos ferida. A condição alusiva da presença de Deus no mundo faz dele uma realidade não manipulável, indisponível, porém certa e incrivelmente próxima do ser humano.

Uma enunciação poética de Deus vigia o dia e a noite, pronta a captar o sentido em toda a parte em que ele se manifesta, sempre em busca, como o Eros platónico que não se contenta nunca com o que tem, sempre na frecha do kairos , desse momento de que Jankélévitch dizia que, se o falhávamos, falharíamos "a nossa manhã de primavera". Uma enunciação poética de Deus não pode ceder à desincarnação. Cristo passou por ladrão de todas as energias aos olhos de Rilke (11). Só a incarnação como lugar de encontro do visível, invisível, só o olhar que nos põe em relação nos salva. Neste mundo, Deus não é a pura imaginação ou a projecção das nossas necessidades ou ilusões, como o entendem os pais do ateísmo moderno (Fuerbach e Nietzsche). Deus é graça, e é, como tal, que tanto pode ser acolhido como rejeitado.

Uma enunciação poética de Deus deve partir das fontes da alegria, apoiar-se na porta, dar consistência à presença, às coisas no instante. Escrevia Michaux: "Un moment appelant d'autres moments" (12). É necessário partir da experiência e não da sua ocultação que passa por formas de intoxicação e de narcótico que representa a moral, o heroísmo e a religião. É necessário começar por uma desintoxicação do "ideal", abrindo a experiência ao "milagre" dos encontros, ao extremo dos possíveis, da separação e dos "re-nascimentos". Philippe Jaccottet, entre outros, ilustra maravilhosamente a forma de sensibilidade que a poesia contemporânea exprime: o espaço tensivo polarizado pela transparência e pela opacidade, o Aberto cuja expressão simbólica é o “o vazio” ou a “brancura” (a graça escondida das flores), a Epokhé das instâncias psicológicas (ego-lógicas) e ontológicas (eco-lógicas9 da actividade sensível, a desmultiplicação numa miríade de “pequenas percepções” e em que o mundo visível nos é descrito como totalidade impossível, fragmentada em quanta e qualia (13).

Uma enunciação poética de Deus não pode ceder à fusão. No relato do Génesis encontra-se o paradigma de qualquer diferença: a dos sexos, o paradigma da falta como destruição duma diferença, o paradigma da angústia como desdiferenciação. O fruto da árvore do conhecer-bom-e-mau é simultaneamente figura da diferença homem-mulher e da obra desta diferença, a criança. Comer este fruto é dessimbolizar a diferença dos sexos e das gerações.

Uma enunciação poética de Deus deve levar à desimaginação, porque a imagem é frequentemente um impedimento para "ver" a Deus. "O desejo, escreve Feuerbach na sua Teogonia , é a manifestação original dos deuses (...) a religião não é senão a convicção e a certeza que tem o desejo de ser preenchido" (SW IV, 274). Deus é, nesta perspectiva, o objecto obscuro do desejo humano, trazendo-lhe uma satisfação imaginária. É a força da imaginação que dá à religião a aparência de realidade.

Para S. Weil a imaginação trabalha continuamente para tapar todas as fissuras por onde possa passar a graça. "A imaginação que vem colmatar vazios é fundamentalmente mentirosa". Quando os espelhos se quebram, a primeira coisa a cair é a imagem, melhor, a pele da imagem. Ligue-se, pois, a desimaginação ao estilhaçamento do estádio do espelho. O desastre é que o infigurável cole ao visível, tornando-se incorporação: militar/religiosa, violência: assassina, asfixia fusional.

"Por isso peço a Deus que me liberte de Deus"! Ou seja, que me liberte da imagem falsa de Deus que amiúde fazemos dele. S. Weil faz uma experiência de Deus iconoclasta, de "descriação". A "descriação" pode interpretar-se no sentido místico do Nada existencial ou da encarnação (Fil 2, 7). É renúncia, imitação da renúncia de Deus na criação. Deus renuncia , em certo sentido, a ser tudo. Nós devemos renunciar a algo. Só se possui aquilo a que se renuncia. A criação é consequência do acto de entrega mais definitivo de Deus. Deus cria retirando-se, esvaziando-se. Não existe como Deus absoluto, inacessível, imaginário...Mas começa a existir como Deus anulado, encarnado. Deus afasta-se para não ser tido como um ídolo e aproxima-se como o irmão comum. Assim entende S. Weil a presença alusiva de Deus: "É Deus quem por amor se retira de nós com o fim de que possamos amá-lo". Porque deus "é quem, mediante da noite escura, se retira para não ser amado como o tesouro pelo avaro...E não quer que o amemos como o avaro ama o seu tesouro, porque o tem perto, possuído. Mais ainda, pode-se amar a Deus exactamente quando te vem ao pensamento que não existe tal como o imagino". Amamos em verdade e espírito quando não temos a Deus, quando acreditar nele não nos traz nenhum benefício.

Não estamos condenados ao mutismo nem à teologia negativa. Não estamos condenados nem à nomeação catafáfica de Deus, nem à “metafísica da presença” (14). “Le langage a commencé sans nous, en nous avant nous. C'est ce que la théologie appelle Dieu et il faut, il aura fallu parler”, escreve J. L. Nancy (15). Pode a Bíblia suportar a ideia trágica sem renegar a Promessa de que Abraão é testemunha? A Bíblia é uma circulação de palavras que apontam para um nome indizível. A Bíblia tanto dá lugar ao desesperado (cf. salmo 88: "a minha companhia é a treva"), ao explorado, como àquele que, pela sua riqueza e descendência, se julga abençoado por Deus. O Deus implacável de Saúl coexiste com o Deus de ternura de Oseias. Não estamos condenados a um só modo de dizer. Talvez seja o dizer alusivo o que mais convém ao Deus absconditus . Essa alusividade mística é a mais viva expressão do Deus absconditus que anulando-se, ficando fora do alcance imaginativo nos dá a possibilidade de um encontro real e pessoal com ele na pura e nua verdade do coração. O crente, em virtude do exemplo do testemunho por excelência para o cristão, Jesus, pensa que a figura do deus verdadeiro é a daquele que não quebra a palavra viva, mas a escuta. A qualidade mais alta do Deus bíblico parece ser a que C. Duquoc aponta: "não obturar o espaço" (16). A proximidade pressentida do mundo de Deus é um encorajamento discreto e seguro. Como se diz de Moisés: (He 11,27). Em definitivo, só o encontro do rosto pode ainda quebrar a rude escama que faz de cada um, um ser para si. Deus vem à ideia no face a face com o próximo.

Que fazer com a frase de Paulino de Nola. "A nossa única arte é a fé, e Cristo é o nosso canto" (17)? A religião começa com a vida e ninguém se pode dizer são e salvo da religião. A vida é, por sua própria constituição, o lugar pró excelência da interrogatividade humana. A pergunta essencial é esta: que vida nos permite viver – essa “impulsão cega” que descreve a biologia? (18) “Esses homens e mulheres (porque este foi um meio humano que não discriminou uns e outros) importa imaginá-los como atletas de uma ambição feitos de um só vórtice, intensos, exclusiva e metodicamente ocupados a utilizarem as suas próprias vidas como o lugar, por excelência da interrogação humana, e o meio exclusivo da resposta a encontrar” (19). Derrida descobre, tematiza e conceptualiza a vida como traços, cinzas, espectros. Afinal, as cinzas são a “essência” sem essência da matéria”. Pode pensar-se a literatura como a superfície sem profundidade, a superfície imanente mas estratificada das coisas, a “textura” dos fenómenos. Não é a literatura também, a seu modo, a forma que tem a vida, de responder à palavra que nela se gera, de dizer sem nomear (perifrasticamente) o efeito jubiloso do aberto?

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Notas
.(1) Octavio Paz, prefácio a Elizabeth Bishop Géographie III, «Elizabeth Bishop, ou le pouvoir de la réticence», Circé, 1991, p. 7.

(2) Jean-François Malherbe aitre Eckhart “Souffrir Dieu” , Paris, Cerf, 1991, p. 69.

(3) Jean-Pierre Jossua, La littérature et l'inquétude de l'absolu , Paris, Beauchesne, 2002.

(4) Yves Bonnefoy, Les Planches courbes, Mercure de France, 2001.

(5) O texto apareceu no volume Qu'este-ce que Dieu (Bruxelas, Fa c. S. Louis, 1985) e é retomado em Récits en rêve (Paris, Mercure de France, 1987, p. 229-233). Sobre a “teologia negativa” de Bonnefoy, ver Jean-Pierre Jossua, Pour une histoire religieuse de l'expérience littéraire, T. II,Paris, Beauchesne, 1990, p. 81-112 . e sobre o vocabulário místico na sua obra mais recente “Yves Bonnefoy et la mystique” de Pour une histoire T. III, p. 210-220.

(6) Yves Bonnefoy, « La seule réalité, c'est l'être humain engagé dans sa finitude », entrevista dada a Robert Kopp, in magazine littéraire , nº 421 junho 2003, p. 24.

(7) Jean-Pierre Jossua “Formes de langage de la mystique en poésie », in Poésie et M ystique (dir.) Paule Plouvier, Paris, L'Harmattan, 1995, p. 21.

(8) Sem esquecer que a literatura está ligada àquilo que em filosofia se chama a “questão da técnica” e que a escrita é de essência técnica.

(9) Jean-Yves Lacoste, Le monde et l'absence d'oeuvre et autres études, PUF, 2000, p. 158.

(10) Cf. a peça em prosa: L'Apôtre in Edition de la Pléiade 27-32.

(11) Henri Michaux, Moments , Gallimard, 1973, p. 115.

(11) Jean-Claude Mathieu, Philippe Jaccottet, l'évidence du simple et l'éclat de l'obscur , José C orti, 2003.

(12) Para Denis, a denominação deve manter Deus fora de qualquer nome próprio, sem cair na presença “Deus conhece-se através do conhecimento e também através do desconhecimento” ( Noms divins , VII, 3, 872 a). A denominação não desemboca numa metafísica da presença mas, escreve Jean-Luc Marion, numa “pragmática teológica da ausência” – entenda-se o facto que o nome que Deus se dá, que se dá como Deus tem como função protegê-lo da presença.

(13) «Comment ne pas parler. Dénégations», in Psyché, Invention de l'autre, Paris, Galilée, 1987, p. 561.

(14) Christian Duquoc, "La question du tragique", in Lumière & Vie 198, p. 99.

(15) "At nobis ars una fides et musica Christus" ( Carmen 20, 31: CCL 203, 144).

(16) Michel Henry demonstrou, mais de uma vez, que esta vida é um sentimento, melhor um “pathos” que não vem do mundo.

(17) Maria Gabriela Llansol, O Senhor de Herbais, Lisboa, Relógio D´Agua, 2003, p. 124.