JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

 

Deus na literatura
O Nome e as formas (4)

   
O que é a literatura .

A crença é o pão das instituições (e a literatura é uma instituição). Pragmaticamente, a Literatura é uma teoria da crença, uma adesão, a partir de que se está pronto a agir. A produção da crença está ligada a uma economia dos bens simbólicos, como o demonstrou P. Bourdieu (1). Pelos seus desenvolvimentos, os seus recuos e as suas deslocações, o crer é um lugar estratégico da comunicação assente em dois postulados: a) há um outro; b) deve haver sentido . Com efeito, a crença apoia-se no dizer dos outros, marca um diferido do saber em relação àquilo que se pode afirmar hoje, podendo definir-se como uma metáfora (M. de Certeau) . Numa perspectiva epistemológica (ou estratégica), H. Meschonnic é de opinião que "la science seule, je la laisse au mathématisable, et à son règne, que est toujours désastreux pour le langage. La théorie du langage n'est pas une science au sens des sciences exactes ou des sciences de la nature" (2). À ciência (da natureza ou da fenomenologia alemã) este autor opõe uma crítica do ritmo que é uma crítica da ciência que, se é uma ciência, não o é no sentido cumulativo: "c'est seulement au sens peut-être indéfiniment enchoatif de ce qui se cherche en dehors du savoir - une 'science nouvelle', au sens de Vico (3). Auerbach dizia que a literatura ocidental era essencialmente uma representação da realidade. Pode fazer-se a crítica do mito idealista da mimese, ou do mito da literatura como presença. A mimese faz passar a convenção pela natureza. Podemos estar contra a metáfora da transparência que atravessa a história do realismo. Mimese, verosímil, ficção, ilusão, mentira, realismo, referente são termos que colocam todos os problema da relação do texto e da realidade ou do texto e do mundo. A mimese é repressiva: consolida o contrato social porque faz parte da ideologia (a doxa ) a que serve de instrumento, dizia Barthes.

O que é, afinal, a literatura? “If, on one hand, literature's time is nearly up, if the handwriting is on the wall, or rather if the pixels are, on the computer screen, on the other hand, literature or the ‘literary' is universal and perennial”, escreve Miller (4). Deve concluir-se daí que o florescimento da teoria literária assinala a morte da literatura? A literatura não é uma tecnologia, mas uma técnica do imaginário. Uma tropologia. Em último caso, dizia Sartre, "C'est toujours moi qui déciderai que cette voix est la voix de l'ange". Também dizia que a literatura faz uso de uma orientação “não transcendente” das palavras. Miller traduz o pensamento de Sartre assim: as palavras da obra literária não se transcendem a si próprias face às coisas fenomenais a que se referem. The whole power of literature is there in the simples Word or sentence used in this fictious way” (5). A discussão de Kant e de Burke acerca do sublime mostra bem a importância dos jogos de contradições (poder versus fraqueza, elevação versus humilhação, etc.) que estruturam a "faculdade de desejar". Ao abrir os caminhos do sublime, esta faculdade baliza de certa maneira a procura do sentido "a-vir". Esta "faculdade de desejar, que os místicos conhecem bem "cria um excesso". "Le désir crée un excès. Il excède, passe et perd les lieux. Il fait aller plus loin, ailleurs. Il n'habite nulle part. (...) Il continue donc à marcher, à se tracer en silence, à s'écrire", escreve Michel de Certeau (6). É desse excesso sobre a linguagem comum que nasce o desejo de literatura.

Falemos da literatura como Beckett: "Ici tout bouge, nage, fuit, revient, se défait, se refait. Tout cesse, sans cesse. On dirait l'insurrection des molécules, l'intérieur d'une pierre un millième de seconde avant qu'elle ne se desagrège. C'est ça, la littérature" (7). A prática da linguagem (literatura) há-de ter que ver com algo que permanentemente muda, se transmuda, desagrega, reconfigura no excesso da linguagem e que não se compadece com "missões" ou "engenharias de alma" habitualmente atribuídas aos que habitam o reino do "escrevível". Samuel Beckett é de facto um dos escritores deste século que melhor permite pensar a relação entre a linguagem e a representação, mas também a recusa da palavra a dizer outra coisa que palavras. Comecemos pelo problema da representação.: "Watt se trouvait maintenant entouré de choses qui, si elles consentaient. à être nommées, ne le faisaient pour ainsi dire qu'à leurs corps défendant (...) À la vue d'un pot, par example, on en pensant à un pot, d'un des pots de Monsieur Knott, à un des pots de Monsieur Knott, c'était en vain que Watt disait, Pot, pot" (8). Nós ouvimos, através das palavras deste personagem de Beckett o eco da interrogação radical sobre a linguagem, interrogação que implica uma nova determinação da relação entre a ordem da linguagem e a ordem da representação. Entramos assim na experiência da desagregação da linguagem. Experiência dolorosa, por proceder do reconhecimento do abismo que separa as palavras e as coisas. Agora vacilam as coisas e vacila o sujeito: "Je dis je en sachant que ce n'est pas moi" (9). O sujeito humano deixa de ser uma instância fundacional. Ligada a esta questão está a questão do "nomeável": "Écrire aperception purement visuelle, c'est écrire une phrase dénuée de sens. Comme de bien entendu. Car chaque fois qu'on veut faire faire aux mots un véritable travail de transbordement, chaque fois qu'on veut leur faire exprimer autre chose que des mots, ils s'alignent de façon à s'annuler mutuellement. C'est, sans doute, ce qui donne à la vie tout son charme" (10).

Tudo pode funcionar como literatura, como tudo pode ser signo. Diga-se que a literatura, que é uma instituição cultural, consiste num determinado uso das palavras ou outros signos. Literatura é aquilo que é designado como literatura. A resposta, semelhante à dada por Goodman que propõe que se passe a perguntar apenas “quando há arte” em vez de “o que é a arte” ilude uma outra questão: “tudo pode funcionar como arte”. Silvina R. Lopes prefere propor duas características 1. A não resolução do conflito entre o pragmático e o não-pragmático 2. O desencadear de um movimento de pensamento sem assunto ou tema pré-determinado (11). A não-destinação é essencial à sobrevivência da literatura, segundo Mandelstam “o facto de se dirigir a um interlocutor concreto corta as asas ao verso, retira-lhe o ar, o ímpeto. O ar do verso é imprevisto”.

De que modo a literatura faz o contacto com o mundo? Qual a função da literatura? Criar mundos, diz Llansol (12). Fornecer uma diferente e única realidade alternativa, uma hiper-realidade (Hillis Miller). Derrida pensa a literatura como “idioma” – acontecimento e singularidade – impedindo que se reduza as categorias de “obra”, de “sujeito” ou de “autor”. A “carta postal” é a “essência” sem essência da literatura (13). Em último caso, o autor duma obra literária escreve essa obra em resposta a uma implacável obrigação que lhe é imposta de converter “the matter of the tale”, na frase de Henry James, numa outra estranha materialidade não material palavras (14).

 
Notas

(1) Pierre Bourdieu, "La production de la croyance", Actes de la Recherche en Sciences Sociales , nº 13, 1977. Cf. do mesmo autor, Ce que parler veut dire , Paris, Fayard, 1982.

(2) Henry Meschonnic, Critique du rythme , Paris, Verdier, 1982, p. 17.

(3) Ibidem , p. 18.

(4) op. cit . p. 35.

(5) H. Miller, Ibidem, p. 16.

(6) Michel de Certeau, La fable mystique, XVI-XVII siècle, Paris, Gallimard, 1982, p. 411.

(7) Samuel Beckett, op. cit., p. 33.

(8) Samuel Beckett, Watt, Paris, Minuit, 1968, pp. 81-82.

(9) L'innomable , Minuit, 1992, p. 31.

(10) Samuel Beckett, Le Monde et le Pantalon , Minuit, 1989, p. 27.

(11) Silvina R. Lopes, Literatura, Defesa do Atrito, vendaval, 2003, p. 14.

(12) Maria Gabriela Llansol, O Senhor de Herbais, p. 137.

(13) J. Derrida, Limited Inc ., Paris, Galilée, 1990.

(14) J. Hillis Miller, On Literature, Routledge, London e New York, 02, p. 79.

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