Um quinto evangelho?
Uma religião que não aparecesse no horizonte do mundo sem o anúncio de libertação, não seria uma religião. O capital simbólico de uma religião vem-lhe do Messias que propõe. Por mais que a nossa sociedade técnico-industrial proponha um mediador neutro universal, plataformas abertas, protocolos; por mais que o desencantamento cresça. Até os mais lúcidos pós-modernos se deram conta disso e procuraram dissimular a sua descoberta por trás dos ecrãs de abstracção, como por exemplo, a “messianidade abstracta” inerente à linguagem, de que fala Derrida (1). “Ele veio para libertar” (253) resume este livro. A figura do Messias está em todos os sonhos e visões que povoam Anunciação. A palavra é de si aberta à transcendência, é messiânica, como escrevi algures. A maior singularidade deste livro está, a meu ver, na reintrodução da carne como “gonzo da salvação” (Caro salutis cardo, dizia Tertuliano). Contra a desincarnação crescente, contra a retenção quaternária. Contra o gnosticismo crescente que até a IA promove.
O tempo da glosa
A Bíblia é uma escrita a ler. Que pode a narrativa evangélica, nas suas múltiplas versões, contra o fim das narrativas? O fenómeno da elasticidade do discurso põe em jogo a relação conhecida em linguística: expansão vs condensação. Releva desta elasticidade a construção dos resumos que supostamente nos dão, de modo abreviado, o equivalente de um longo discurso. O Beatus de Liébana, publicado em Milão em 1973, depois em França em 1982, na Franco Maria Ricci, em “Les signes de l'homme”, a partir do manuscrito do fim do século XI, é um manuscrito medieval espanhol do fim do século VIII, ilustrado com miniaturas e que comenta o apocalipse de S. João. A propósito, Eco publicou “Palimpseste sur Beatus”. Esse é um livro feito de glosas ou ilustrações, proliferações de outros textos gerados por um texto primeiro, paráfrases, adaptações ou interpretantes, para utilizarmos o termo de Peirce, de que o seu é o último.
Em que estado de espírito se deve colocar o leitor: visionário, filológico, ou ainda exegético, como se o sentido do texto fosse fixado pela autoridade da tradição? Teresa Passos glosa sobre uma glosa. O texto de Mateus é do género midrash, que tenta traduzir as palavras do Antigo no Novo Testamento, ligando assim, por meio da interpretação, a vida de Jesus ao corpo de textos em que o seu corpo lê e interpreta Deus, o mundo, o homem. Anunciação é um romance. Entenda-se um modo de dizer “como se”, sem que o fantasma do referente venha pedir contas pela veracidade do relato. E o “ser como” pressupõe um “ser com”, uma co-presença. “Se o cum designa o “semelhança” na imagem (o traço comum), que traduz a palavra como, denota também a “partilha” dum lugar (seja um espaço comum), que visa o prefixo co – ou a advérbio com (2). A escrita não é apenas uma "arte demonstrativa": é uma arte de laboratório e de alquimia. Uma arte de ligações. Este é um livro de ligações, de sobreposições de lugares e de personagens, que desrealiza (ou realiza de outro modo) a narrativa que nos habituámos a ouvir. A autora sabe, como nós, que não se lê nem se escreve para reter o que quer que seja da realidade – como se diz dum filho – mas para a perder na linguagem, que a recobre para lá das filiações, no acto de semear o fruto do que o sopro em cada um diz de escrever. O Evangelho não é de ninguém, melhor, é de quem o apropria e lhe dá carne. A rosa de ninguém de Paul Celan é a melhor forma de devolver à Boa Nova a sua ressonância, o seu efeito de individuação. É preciso dizê-lo. Teresa Passos lê os Evangelhos sem querer explicar tudo, como nem Mateus nem Lucas o quiseram, sem qualquer preocupação de exaustividade hermenêutica. Ela sabe que a hermenêutica é uma opção interpretativa. E a sua opção é nitidamente “cordial”, “maternal” ou lírica. A sua leitura não é unívoca nem canónica. Este não é um livro à semelhança de A Paixão de Jesus Cristo, de Catarina Emmerich (1774). A Paixão nunca é descrita. O género a que este livro se liga é, evidentemente, apocalíptico. Ora, num livro apocalíptico é difícil separar a escrita da visão. Este livro é um livro de visões. De interiores. Um palimpsesto. De dentro irrompe o mistério do nascimento, do amor que liga Maria a José, aqui uma personagem afectiva, tímida, que o medo e a inquietude e o não saber marcaram. À figura do “herói”, Jesus, opõe-se a figura do adversário, Herodes, que ocupa um lugar central no livro. Também as figuras do poder sacerdotal têm papel de destaque. E será do meio da figura emblemática do Templo que o mais prodigioso sinal de Jesus terá lugar: a ressurreição de Hazael (210). A atracção pelos Essénios, por essa facção de “puros” que cortaram com o fariseísmo mais oficial, é neste livro, um índice dessa fuga do lugar do poder que particulariza, impedindo a singularização. O poder não suporta os “misterismos”, nem os sonhos nem as visões. Porque esses são mundos que não conseguem gramaticar, controlar.
Coda
A nossa carne é a linguagem, e o Messias é a palavra, escreve V. Novarina (3). A salvação do ser humano está no facto de ele falar, de ele ser um ser de linguagem, um ser político inscrito numa rede de palavras em que circula como numa praça pública. A figura emblemática de um tal lugar é a árvore de palavras que se encontra nos países de África. Navarina escolheu a amendoeira como a árvore por excelência: a Amygdalus, que nos lembra que as nossas amígalas tiram o seu nome da sua forma em “amêndoa” (em grego amugdale, em hebreu, shaqad, do verbo shoqéd que quer dizer “vigiar”). Os seus frutos têm a forma de olhos: vejo um ramo de “vigia”Escrever é criar uma comunidade de sentimento, um espaço de pura memória. A inscrição numa tradição singulariza. Nós somos homens e mulheres de advento. Cumpre-nos vigiar, como a amendoeira. O Messias é a palavra em movimento. A vir. Este livro lembra que os afectos são o chão da comum humanidade nossa e do Verbo que se fez aquilo que nós somos: carne habitada pela palavra. Maria é uma rapariga a quem a presença de José perturbava, fascinava. A cena do casamento em Caná reporta-nos ao Cântico dos Cânticos. O verbo latino testari, na origem da palavra testamento designa como cada um sabe o próprio facto de “testemunhar”: o “testemunho” que dá testemunho da comunicação entre os corredores passando de mão em mão como as palavras passam de boca em boca nessa cadeia de transmissão que é a palavra humana.
Há um fundo de retenção (secundária) essencial à leitura. Depois de lido um livro, fica a questão: que diz este livro? A síntese, a unidade é trabalho de cada leitor. O combate hoje é contra o domínio da retenção terciária que visa controlar os processos de individuação. Aproxima-se uma nova era de gramatização que visa o controlo do vivo e a clonagem do espírito. O maior perigo é a clonagem mental, espiritual, que coincide com o controlo da actividade simbólica. Ora, o que é preciso é produzir de novo do simbólico. E a literatura pode ajudar nesse combate. Podíamos reagir ao romance de Teresa Passos deste modo: “Evangelhos já temos que cheguem e bem díspares são”. Veja-se o que deu a posteridade do Apocalipse de onde nasceram mais variações heréticas que qualquer texto bíblico. Eu diria: a tradição não é tudo. O nosso processo de individuação é imparável, imprevisível. A escrita faz parte desse processo. O caminho está na expressão permanente daquilo que move tudo o desejo. E não é verdade que Divina eloquia cum legente crescunt?
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(1) Esta abstracção recebe nomes diversos segundo os sistemas, mas até os mais cépticos devem decidir-se a este respeito. Derrida pensa poder responder a esta questão por vezes dolorosa sobre a significação inventando um “messianismo abstracto” – uma espécie de “apelo à fé” que habitaria “qualquer acto de linguagem e qualquer apelo ao outro”: J. Derrida, “Foi e savoir” in La Reliuion , Seuil, 1996, p. 28. G. Steiner dirá: “O signo semântico, quando tomado como plenitude do sentido, e a divindade” têm o mesmo lugar e o mesmo tempo de nascença” (Derrida) (..). A época do signo, diz Derrida, é essencialmenmte teológica” Présences Réelles , Faber and Faber, 1989.
(2) Pierre Ouellet, Le sens de l'autre. Éthique et esthétique , Liber, Montréal, l2003, p. 166.
(3) V. Novarina, La chair de l'homme, Paris, POL, 1995, p. 470. |