DECLINAÇÕES
PROTESTATIO ET CONFESSIO I
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Renuncio à verdade solitária ou particular
renuncio à fé sem amor, que é o puro subjectivismo
creio na dimensão militante de toda a verdade
creio no amor como fidelidade ao puro dom da graça
renuncio à esperança judiciária, distributiva,
que dá a uns a recompensa e a outros o inferno
creio em Deus, força da vida e madrugada de todas as coisas
creio na reconciliação no amor como poder universal
renuncio a uma fé salarial e à visão sacrificial
que justifica a fome, a morte, a vítima
renuncio à vida do desejo como autonomia, que é o pecado
renuncio a um coração que seja em nós um rio que não corre
creio na ressurreição subtraída ao poder da morte
creio na liberdade do Espírito desampara os que só na letra se arrimam
renuncio ao fel das relações envenenadas
a sedução do dinheiro que compra a vida e a fama
creio na Páscoa do mundo que a Sarça transfigura
creio no trabalho do amor que borda a paz e a justiça
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PROTESTATIO ET CONFESSIO II
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à banalização do mal eu digo não
à tecnologia das próteses e ao mercado
que conforta em nós Narciso, digo não
digo não à xenografia da catástrofe mole,
à vociferação que matou Abel
e à justificação da violência como lei
ao discurso peremptório digo não também
e à satanização do outro
que nos defende de nós próprios
digo não à maneira do ser humano
regido pelo “valor” de troca
e pelo imanentismo que leva ao caos pluralista
creio no universo libertado,
em expansão, e não feito apenas de acaso e de necessidade.
creio no homem em devir
que vem do desejo e da Vida absoluta de Deus
e não do determinismo biológico
creio em Deus como a festa maior que há-de vir
e das encruzilhadas em que os pedintes nos surpreendem
creio no Deus das noites sem apelo
do silêncio insepulto
e das claras madrugadas
creio no Pai que no dom do Filho se retira
creio em Jesus Cristo, o Verbo feito carne
e voz de sangue inconsporcado
creio no dom que ele foi até ao fim
e a todos alcançou
creio na Páscoa do Espírito e do Fogo
creio no Espírito da diferença irredutível,
no intenso e no profundo que nos liga
ao espaço-tempo da presença-amante
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SENHORA DO MAR |
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Senhora do Mar
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que dobras o medo
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do ir e voltar
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do breu e do Febo
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Senhora das ondas
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da vozeria da morte
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rebelando a carne
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contra a voz, o norte
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segura o meu corpo
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atolado em lodo
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com pavor do nada
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desamarrado ao todo
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guarda-me na fé
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que o terror assalta
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ata-me à verdade
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como as velas alta
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sagra-me na esperança
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da Terra sem Mal
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enxuga os meus olhos
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no teu avental
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preserva o amor
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da lei-servidão
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resguarda o dizer
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da língua-traição
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Senhora do Mar
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do amor ao largo
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só nas velas dele
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e no Céu fiado
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que a tua benção
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seja o sal e o pão
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das viagens cegas
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do meu coração
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CARO SALUTIS CARDO
Retirou-se o Senhor do Grande Poder,
por misericórdia, Deus se afastou
para deixar ao homem o seu espaço de fulgor
Retirou-se o Senhor do Grande Poder
fazendo-se corpo humano, e não força da natureza,
fauno ou gnomo
Porque é a carne o gonzo da salvação
e o semáforo da glória,
a intensidade que reverbera
A liberdade senhorial do Filho
libertou-nos do determinismo biológico
que fazia de nós cadáveres adiados
a ressurreição do Filho
libertou-nos da fatalidade da morte
a eternidade abriu-se à fragilidade da carne
tornando-nos, como as flores, eternos
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José Augusto Mourão é dominicano, semiólogo, professor na Universidade Nova de Lisboa (DCC)
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