José Augusto Mourão, semiólogo, professor na Universidade Nova de Lisboa, dominicano, presidente do Instituto São Tomás de Aquino, é um colega nosso de trabalho com quem travamos regularmente algumas batalhas intelectuais e religiosas. Como se sabe, J.A.M. é ainda um dos responsáveis pelo TriploV. Nesta entrevista procurámos esclarecer alguns pontos de maior discórdia entre nós. Note-se, entretanto, que a discórdia tem, de um lado e do outro da comunicação, um "destinador e um destinatário cordiais" - de cor, coração (cito, mas não sei quem).


José Augusto Mourão

O VÍRUS DA METÁFORA

TRIPLOV - O José Augusto Mourão costuma citar Burroughs : "Language is a virus". Mas por outro lado é escritor, poeta, e além disso lida com a Palavra, em especial a de S. João, em que vem escrito que Deus encarnou no Verbo, e que esse Verbo divino é Cristo. Como concilia estas contradições? A linguagem do Evangelho de S. João também é um vírus ou só é vírus a linguagem do Antigo Testamento, por exemplo?

J.A.M. - Microorganismo invisível ao microscópio óptico que atravessa os filtros que retêm habitualmente as bactérias, possuindo um só tipo de ácido nucleico ARN ou ADN, e parasita obrigatório das células eucariotas. // Fig. Princípio de contágio moral. // Inf. Instrução ou série de instruções parasitas introduzidas num programa e susceptíveis de provocar diversas perturbações no funcionamento do computador. (Novo Dicionário Lello da Língua Portuguesa, 1996, p. 1940).

"Which came first, the intestine or the tapeworm?" Neste epigrama, William Burroughs sugere que o parasitismo - corrupção, plagiarismo - confina de facto com a própria vida. “Interiority means intrusion and colonization. Self-identity is ultimately a symptom of parasitic invasion, the expression withon me of forces originating from outside” . O mesmo acontece com a linguagem. "Language is a virus from other space". Para Burroughs a linguagem está para o cérebro como a bicha solitária para os intestinos. Como “the human virus”, a linguagem é um dos mecanismos de reprodução. Não representa, intervém e invade o mundo, apropriando-se dele. Um vírus não tem moral. Em último caso, não sou eu que falo mas o vírus que está em mim. Todos nós temos parasitas dentro do corpo. Shaviro remete para a possessão demoníaca ou vampiresca. Só uma visão idealista da linguagem nos fará dizer que a "Linguagem é a casa do Ser". O vírus (a linguagem) é imperativo e prescritivo: falar é dar ordens. Os nossos corpos respondem com sintomas à infecção da linguagem e às suas ordens. Interpretar será, seguindo esta lógica, reagir a uma afirmação, gerar um sintoma. Falar é responder a vozes: “”any response to an utterance is a meaning of that utterance” (Peckham). Falar é um exercício do poder, dizia Foucault.

“O plagiato é necessário, o progresso implica-o”, dizia Ducasse. Sabemos que toda a relação de parasitagem é intersubjectiva. Hermes é bem o deus dos cruzamentos, o deus que Maxwell transformou em demónio. A mensagem nunca chega invariante nem pura nem estável. As lutas a dois são sempre teatrais: aparência, representação, decoração, moral, divertimento. A partir do momento em que somos dois, somos Já três ou quatro. Para que o diálogo tenha sucesso é necessário um terceiro excluído. S. Jorge em face do dragão. Nós nunca respondemos com sim ou não, entre zero e um, há uma infinidade de valores, logo uma infinidade de respostas. Os matemáticos chamam a este rigor novo leve: subconjuntos leves, topologia leve. A vaguidade só é um defeito para o pensamento rígido, certo e infalível que uma certa mitologia científica ainda cultiva.

TRIPLOV - Pois sim, mas toda a linguagem é um vírus ou exceptua-se o Evangelho segundo S. João?

J.A.M. - A linguagem do Evangelho de S. João só pode ser considerada um vírus se entendida como algo estranho à nossa natureza linguageira e estranha ao “mundo”. De facto a Palavra vem do “alto”, é revelada aos olhos e aos ouvidos de quem espera para o quotidiano uma “afecção” que salve. A Palavra afecta-nos, toca-nos no nosso corpo de carne como proximidade estranha. Nós humanos somos, basicamente, carne habitada pela palavra. Nós somos de facto “capazes de Deus” (S. Tomás). A Palavra está na tua testa, nos teus lábios, no teu coração, diz o Deuteronómio. O Logos é a tradução dessa Presença-distante feita carne. Não dispomos da Palavra como não dispomos do nosso ADN. A Palavra performa-nos, dispõe-nos à moção do Sopro que não é deste mundo. Ressentimo-la como um sintoma. Nós estamos inscritos no arco hermenêutico da pergunta-resposta. Respondemos a uma injunção. Não faço diferença entre o “valor” da linguagem do Antigo e do Novo Testamento. O cristão vive entre dois Testamentos, no intertestamento, interpretando (reagindo) à maneira que a última Palavra lhe fala, sem elidir a Palavra do começo de onde a Palavra última brota. Não sou marcionita, não cedo à tentação dualista em que caíram Marcião e Tertuliano: não há de um lado um Deus criador do mundo, Deus de justiça e de cólera, juiz cruel e guerreiro e do outro o Deus de Jesus, de amor e de misericórdia. Não saímos nem do antropomorfismo nem da metáfora quando falamos de Deus. O amor é um nome de Deus, a cólera uma metáfora .

TRIPLOV - O José Augusto considera encantatório o discurso mágico. Como classifica o discurso religioso?

J.A.M. - Que o discurso mágico é encantatório há muito tempo o demonstrou Lévy-Strauss. Há no discurso religioso uma parte de “encantação”. A linguagem sacramental é claramente mágica. Toda a gente usa a linguagem para comunicar e controlar, mas o povo oral usa-a mais para comunicar do que para controlar. Não há diferença de monta entre a palavra política e a palavra religiosa. A magia que atravessa uma e outra não se distingue da força mágica própria da palavra científica. Ambas são portadoras do skeptron; e porque institucionais, ambas são palavras poderosas. A situação mágica é um fenómeno de consenso. A eficácia simbólica é o efeito produzido por uma manipulação simbólica. A distinção entre uma manipulação legítima do sagrado (sacramento) e uma manipulação ilegítima (bruxaria) é, como se deduz, política.

TRIPLOV - Porque é que o José Augusto gosta tanto de citar? Isso é uma nova escolástica, que substitui o magister dixit dos Padres da Igreja pelos autores contemporâneos não religiosos?

J.A.M. - Porque cito eu? Só o autor não cita. E ninguém é verdadeiramente autor. Qualquer insecto é uma singularidade sem identidade (G. Agamben). Aí vai: “L’énoncé est le produit d’un agencement, toujours collectif (…). L’auteur est un sujet d’énonciation, mais pas l’écrivain qui n’est pas un auteur. L’écrivain invente des agencements à partir des agencements qui l’ont inventé, il fait passer une multiplicité dans une autre” . Claro, o agenciamento é singular, não encarna numa outra figura individual. O mundo das redes confirma estas redistribuições que enfraquecem, se não aniquilam o estatuto do autor individual. O autor torna-se um nó singular, reduz-se a uma interface entre redes, um agente capaz de potencializar o encontro de linhagens heterogéneas. Cito para não ceder ao autismo e à arrogância de quem se julga o umbigo do mundo. A dialéctica da presa e do presor é tão antiga como o mundo. Citar para mim é uma questão de afinidades. A figura do magister dixit não conhece épocas. Tempo houve em que a voz obedecida era a dos poetas. Passou aos retóricos e depois aos juristas e aos políticos. A figura da citação é a autoridade. Quem reconhecemos como Autoridade (na matéria)?

TRIPLOV - No Colóquio Internacional "Discursos e Práticas Alquímicas", aparecem textos e pessoas de sectores que a Igreja tradicionalmente perseguiu : alquimistas, maçons, magos, e até poetas, que a Igreja não perseguiu enquanto tais, mas que desde Platão são mais um incómodo do que uma razão de glória para as sociedades. Que interesse tem para si, como homem da Igreja, este convívio?

J.A.M. - A Igreja (e a Ciência, as Luzes) perseguiu o absolutamente singular: alquimista (mas Alberto Magno é alquimista), maçon, mago e poeta. Eu prefiro o convívio da diferença. Prefiro a multiplicidade ao único. Prefiro a democracia à tirania e ao fascismo da linguagem única. O Pentecostes não significa a abolição das línguas, mas o entendentimento singular que cada um tem da sua. A realidade das redes é ineludível. Estaremos ligados apenas à nossa tribo, excluindo os “bárbaros”, isto é, os que não falam a nossa língua? Não é melhor a ponte, o laço, o anel que liga e transmuda as vozes? Quem tem medo da interdisciplinaridade?

TRIPLOV - O TriploV tem um sector, o das Alquimias, que é o segundo mais frequentado pelos cibernautas, o que parece significar que há uma grande fome de espiritualidade no mundo. E alguns, que não eram muito frequentados, agora têm vindo a trepar pelo programa de estatística, como acontece com os textos dedicados à religião, na maior parte assinados por si e por outros dominicanos. Como interpreta o facto?

J.A.M. - Nós alimentamo-nos de ficções, de sonhos, de visões. Entre o ser e o dever-ser corre um rio às vezes intransponível. O Somnium Scipionis é a visita diária de quantos andam neste mundo entre estas duas margens. A fome de espiritualidade é um dos sonhos e uma das fomes deste tempo. Há a fome do corpo perfeito, protésico, há a fome da evasão (toda a droga promete um paraíso) através da velocidade. Mas a fome é uma pulsão. Pode a religião sê-lo igualmente? A fórmula gasta da “morte de Deus” deixou de ter qualquer pertinência. Voltamos então ao vírus. À lógica do colonizador e do colonizado, do hóspede e do hospedeiro. Nenhuma religião subsiste sem a sua promessa de felicidade e de libertação. As religiões ocidentais são histórias de redenção. Este mundo imanentizou tudo, reduziu tudo ao “bem visto” e “bem dito” – essa é a loucura do empirismo. O messiânico instrumentalizou-se, secularizou-se. “O tempo futuro é inevitavelmente afectado por este eclipse do messiânico”, escreve G. Steiner . Mas há sintomas de outras falhas e de outras demandas. Deve ser isso: “As despedidas olham para trás” . O sector das Alquimias comunica com o ideal de transmutação do olhar (logo do ver) e da palavra (logo do dizer). A demanda é a da Sabedoria e da origem. A palavra dos dominicanos tem um acento próprio (baseia-se na busca da verdade, da partilha, do hábito intelectual) sem eliminar o plural de outras vozes. Haverá quem procure esta palavra para ver se assim se vê melhor o mundo e os outros. Esta é uma palavra entre palavras, não se sobrepõe a outras.

TRIPLOV - O TriploV é por todos os motivos um site híbrido, em que se cruzam vozes, disciplinas, línguas e religiões diferentes. Acha que por isso é um site impuro e decadente?

J.A.M. - O TriploV é de facto um sítio híbrido em que se cruzam vozes, disciplinas, línguas e religiões diferentes. Os híbridos nascem sempre entre duas espécies aparentadas. Em regra o híbrido é estéril. A mula, essa híbrida, é estéril. O perigo de decadência está para mim na replicação, na esterilidade. Inovar consiste em quebrar a lei da replicação, introduzir material genético estranho, assumir o risco do “caos biológico e social”. Entrar na prática do desvio que pretende ser técnica antiartística, antes de mais, método para destruir a cultura. O desvio é necessário para acelerar a “decomposição” cultural duma sociedade em agonia. Assim praticado, o desvio é uma relação nova com a tradição, que supõe separação, modificação, combinação. Não estamos, evidentemente, lá.

TRIPLOV - Como é que se sente por ser um dos principais responsáveis pelo sucesso que está a fazer o site, sucesso em termos de comunicação de massa, quando os discursos do TriploV, e em especial o seu, são tão especializados e elitistas, nenhuma concessão de facilidade fazendo aos leitores, a nenhum paternalismo intelectual intentando submetê-los?

J.A.M. - A ideia de sucesso e de paternalismo intelectual é-me profundamente estranha, por demasiado mundana. A cultura em trânsito é elitista. A cultura só pode ser “alta”. A “pimbice” é a droga despenalizada que o “alto” permite ao “baixo”. Odeio o vulgo promovido a norma de espectáculo, isca hoje da triunfante afirmação do mercado. O “reality show” é o retrato obsceno do país que somos. Não pactuo com a vulgarização, que é estéril. Prefiro falar no deserto, sem tiques de profetismo orgânico, jornalístico que tanto conforta o poder como o destrona. É do deserto que a Palavra ressoa. O apelo é para a mobilização, não para a conservação do mesmo. Quem puder entender, entenda!




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