Do tecnoparaíso ao inferno de eXistenZ
JOSÉ AUGUSTO MOURÃO


It is not any longer the (American) body as quadriped as in pre-history nor even the body as a now obolete modernist biped, but the postmodern American body (which is to say everyone's body - since McLuhan was correct when he said: the virtual body of ultramodern technology. Half-flesh, half-cyberspace, the virtual body of the third stage of human evolution is just what the physicists who gathered in Paris last winter predicted: a body fit for exiting Planet One whit radiation-proof skin, large globular eyes for spatialized existence, and no legs (this is a floating body at zero gravity). - Panic Cyberspace, 1989.

Seule la technologie relie peut-être encore les fragments épars du réel. Mais où est passé la constellation du sens? J. Baudrillard.

Il n'y a pas de réalité réelle ou vraie.W. Burroughs

As technology manipulates ald alters human nature, and human nature adapts itself to the new technosphere, new versions of utopia arise, which in turn promote new technologies, wich in turn change the context for defining human nature, and so on. David Porush.

Resumo
A cultura contemporânea mistura, absorve, redistribui figuras outrora rigidamente interpretadas, desconstruindo-as, renomeando-as. Tudo é bifurcação exausta. A linguagem já não serve para instituir uma ordem e uma segurança. A tecnologia contemporânea está a deslocar os limites do humano. No ciberespaço podem ter-se várias personalidades: cabeças fabricadas com mãos de arame que interagem de forma esquizóide, com múltiplas personalidades projectadas simultaneamente para fora. Pelo menos imaginariamente. E se não passássemos de seres tecidos por ondas luminosas e sons repetidos? Que representa hoje o tecnoparaíso? Que utopia encarna o desejo maquínico? E porque é "eXistenZ" a metáfora do inferno? É verdade que "o inferno são os outros" como dizia Sartre? Anuncia o "inferno" de Cronenberg, que utiliza a pornografia, o terror e a abjecção como temas filosóficos filtrados pelo prisma da ciência, da medicina e da tecnologia, a destruição eminente de nós mesmos? Não são o tecnoparaíso e o inferno de "eXistenZ" irmãos gémeos nascidos da mesma mutação em que o corpo e a máquina se conjugam para fabricar o real? Não assenta o caminho que leva ao paraíso (e ao inferno) numa matriz alquímica que mergulha no inferno das minas, que se exalça ao paraíso nas drogas e se liga hoje através da electrónica?

A base primeira de tudo o que acontece é o "lugar", entenda-se a essência enquanto relação. O próprio saber não é nem saber dum objecto nem o saber dum ser mediador do todo, mas saber do lugar. Habitar foi sempre viver-com. O próprio sonho é o lugar da anamnese, da unidade. A própria terra é lugar de epifania da paisagem, cujo modelo é o sítio paradisíaco, o Jardim. Primeiro foi a religião que prometia esse lugar edénico, o lugar da visão beatífica, como recompensa das boas obras ou da boa vida. O Inferno é o lugar de tormentos que merece o ímpio por ter perdido o rosto. A ciência substituíu a religião prometendo a imortalidade, depois foi a onda das ideologias que invadiu tudo com a sua manta aeriforme; hoje é a cibercultura que aparece como uma perspectiva humanista que actualiza os princípios de liberdade, de igualdade e de fraternidade do século XVIII, com alguns desvios e acentuações, sobretudo no domínio da arte.

São Tomás falava dos lugares do Além como “quasi loci”, o que desde logo marca a sua indeterminação espacial. Giorgio Agamben, no seu livro "A Comunidade que vem" qualifica as personagens de Robert Walser como "habitantes do limbo", criaturas "irremediavelmente extraviadas" que vagabundeiam numa região que está para além da perdição e da salvação". Entende-se: o limbo é para os teólogos o lugar para onde vão as crianças que morrem sem terem sido baptizadas aí permanecendo para toda a eternidade privadas da visão de Deus. Mas até esse "lugar" desertou do catecismo da Igreja católica. A geografia do além correspondia, em grande parte, a uma topofobologia do sujeito. Nessa mundividência, o além é ainda um espaço hierarquizado. Na Net a imagem de rede substituíu a imagem de um espaço hierarquizado. É o que Edward Soja chama “the dynamics of capitalist spatialization”: as novas paisagens urbanas não têm centro . A cibercultura é a concretização técnica de vários ideais revolucionários, alguns deles de raíz joaquimita. O ciberespaço promete, como a Nova Jerusalém, a imponderabilidade, o brilho, palácios no interior de palácios, a transcendência da natureza e o pleroma de todas as coisas culturais.

A censura, a vigilância, a genética e a monitorização das provas farmacológicas, as comunciações televisivas e outros meios tecnológicos sobrepõem-se agora numa simbiose que enlaça o mental e o físico. Os filmes de David Cronenberg manifestam resolutamente uma consciência aguda da corporalidade. "Não penso que a carne seja necessariamente traiçoeira, perversa...É como o colonialismo...A independência do corpo relativamente à mente e a dificuldade da mente para aceitar o que essa revolução pode acarretar" (CC, 80). A insurreição biológica, v.g. domina toda esta filmografia que é um híbrido de orgânico e de tecnológico. Os seus filmes são anatomias do impacto da tecnologia sobre a psique pós-humana, com ênfase particular nas experimentações genéticas e do comportamento, a saturação da realidade com simulacros, as subversões do sexo e do género. Nesta mesa de dissecação anatómica de carne e de sentimentos fundem-se as velhas dualidades cartesianas de mente e corpo, dentro e fora, razão e emoção e começamos a ver surgir novas possibilidades de metamorfose evolutiva. O corpo e os seus tormentos são aqui o lugar de exploração em que tudo vacila: doenças, deformações, mutações, decomposição, parasitismo, enxertos, de par com obsessões, nevroses, perturbações mentais, identidades duplas, alucinações, desrealizações.

Sublimações
A civilização nunca é meramente simbólica, envolve sempre uma tecnologia variada. A cultura é tecnocultura. Nada daquilo que constitui a nossa matriz antropológica pode ser nitidamente dividido entre natura e cultura. A cultura tecnológica é uma sociedade. A electricidade não significa apenas o sublime e o espectacular, mas a possibilidade de construção do reino da luz. A cultura funciona como uma técnica de sublimação dos desejos primários, técnica que começa na boca da mina, como sublinha M. Taylor . É aqui que encontramos a alquimia como uma prática mágico-religiosa entregue ao trabalho de transformar os metais em ouro. A associação da pedra filosofal e do elixir com rituais religiosos aponta para aquilo que é uma motivação persistente da prática alquímica. Não fosse a alquimia "uma técnica espiritual e uma sotereologia" (Eliade). Ao refinar metais em ouro, o alquimista procura tornar-se tão bom como o ouro - ouro puro - forma rareficada da prima materia. George von Welling escreve no seu Opus Mago-Cabbalisticum: "A nossa intenção não é dirigidapara ensinar quem quer que seja a fabricar ouro mas para algo muito mais elevado, nomeadamente como é que a Natureza pode ser vista e reconhecida como criada por Deus e a partir da Natureza" . O alquimista antecipou o futurista, como antecipou o golem. O homunculus é o antepassado distante do replicante contemporâneo da alquimia, a que se seguem os andróides, os "terminators" e os "cyborgs". A mesma aspiração ao inteligível puro. A genealogia do "cyborg" de hoje promete a imortalidade através da fibra que liga, mas está consumada a ruptura com a ideia de que a terra é a matrix de que tudo brota e a que tudo regressa. Já não se acredita que os minerais sejam embriões que crescem no interior do ventre da terra mãe. Mas persiste o princípio alquímico - tudo comunica com tudo - que encontra na cibercultura o seu lugar de florescimento: "tout est en relation avec tout" (P. Léwy). De facto, do religioso ao químico ou à prótese electrónica trata-se do mesmo processo de sublimação em que a matéria se torna rarefeita ou idealizada = Luz (fibra óptica). É a mesma fibra que liga o trabalho alquímico e liga hoje a expansão da biotecnologia. O mesmo trabalho de sublimação.

Mark Taylor detecta um certo grau do apocaliptismo futurista nas versões da ciberutopia. Os prosélitos da nanotecnologia declaram que "as máquinas moleculares em breve nos criarão um poder inconcebível sobre a realidade material, enquanto alguns investigadores do DNA sugerem que a decodificação do genoma humano nos permitirá aperfeiçoar a espécie, se não conquistar a própria morte. Alguns cientistas e matemáticos visionários falam mesmo acerca da chegada da Singularidade, um ponto no próximo horizonte quando os desenvolvimentos rápidos na inteligência artificial, na robótica, no poder do "microchip" e as biotecnologias convergirem, produzindo alterações inimagináveis de estado que eliminará a lógica da história humana e bloqueará todos os prognósticos" . Para este autor, o artista do futuro é o engenheiro do mundo que tem como horizonte a obra aberta. A máquina, o vapor e acima de tudo a electricidade são os veículos que transportam o futurista Marinetti para a Nova Idade. O efeito alucinogénico da velocidade é a estrada real do sonho da omnipresença através da electricidade.

O literal e o visceral
J. G. Ballard é uma figura de culto da tecnocultura e daquilo a que podemos chamar o paganismo tecnoerótico. Mondo 2000 dá-lhe o lugar de profeta na cultura contemporânea. Ele é o mestre pós-moderno da ameaça e do terror. Ele anuncia o glossário da psicopatologia da vida, a iconicidade da violência, a sórdida fusão de sexo e de tecnologia. É o universo tecnológico que é estranhamente modificado, pervertido. Ballard descreve Crash como o primeiro romance pornográfico baseado na tecnologia e comenta que "a tecnologia do sexo equivale ao futuro" (JGB, 98, 164). Todos os motivos característicos de Ballard estão presentes neste livro: a simulação, a maneira como a ficção envenena a realidade; como sexo e morte se tornam cadsa vez mais abstractos e conceptuais; o poder do mundo inorgânico e o erotismo da paisagem tecnológica. Em última instância, em Crash não é a sexualidade que é perversa, mas a tecnologia. A "tecnologia perversa" dos automóveis alimenta as nossas fantasias de velocidade, de liberdade e de mobilidade, dando origem a uma nova sexualidade. Cronemberg é a sua alma gémea, continuando por outros meios, através do cinema, o desmantelamento da mimese e da separação cartesiana corpo vs mente, encenando a pornografia e o terror, acentuando o abismo entre a linguagem e a experiência, ressuscitando o fantástico. Este autor retrata o impacto da tecnologia "pós-humana" sobre a psique: a experimentações genéticas, a terapia radical do comportamento, a tecnologia reprodutora, as tecnologias electrónicas que transformam os sentidos humanos. A investigação médica altera profundamente a sexualidade dos personagens em Shivers, Rabid e The Fly; as relações entre psiquiatra e paciente são fundamentais em Transfers, Stereo, Dead Zone e The Brood; as tecnologias reprodutivas e as personalidades fusionadas dominam Scanners e Dead Ringers. Cronenberg tem razão em recusar o epíteto de "virtual" para os seus filmes. É essa a razão por que situa deliberadamente eXistenZ numa paisagem de campo onde nada evoca a cidade do futuro em ruínas e outros clichés.

A cibercultura é a concretização técnica da filosofia das Luzes. O ciberespaço está a montar a terceira cena da evolução humana. A Internet, com os Newsgroups e o IRC (Internet Relay Chat) convida a múltiplas experiências sobre o Eu, mas preocupa muito aqueles que vivem essas mesmas experiências quando as tentam transpor para a vida real. Toda a realidade é virtual. “Não há realidade real”, este é o slogan mais poderoso de W. Burroughs, um autor fétiche do realizador de Naked Lunch. Cronenberg, cujos filmes são tidos como pertencendo à "realidade virtual" diz peremptoriamente: "Il n'y a pas de réalité absolue et donc l'expression réalité virtuelle est vide de sens".

Uma nova erótica
Os gregos pensavam a ligação como "erótica". A ligação vai ser a primeira ocultação da cultura Ocidental. É ela que determina a metafísica profunda da nossa física. O Eros platónico, fascinado plea verdade, pela nitidez e a procura da identidade, expulsa para a imanência as ligações corporais, a sexualidade e a política. O fascínio pela identidade faz da relação algo de secundário. Tudo está no "interior" do sujeito ou das "instituições". Entretanto, o espaço liso da identidade deu lugar ao espaço estriado das multiplicidades. À medida que a "matriz" centrada em Deus se abala, as ligações sofrem uma nova ocultação. Também os "contratos" entre sujeitos livres e dotados de vontade, regidas pela Razão deixavam de fora as ligações obscuras, enigmáticas ou passionais, a loucura, o crime, a droga, que "ameaçam" a identidade do sujeito moderno. O perigo passa a estar nas contaminações, no epidémico, no dualismo instaurado pela ciência ou pela gnose, nos dispositivos maquínicos de produção de novas subjectividades. As formas de vida tecnológica, quer naturais quer sociais são como as de Deleuze e Guattary (1983) "corpos sem órgãos". Nos filmes de Cronenberg o metal e a carne são hoje os grandes atractores. Quando "abrimos" as personagens dos seus filmes não encontramos nada, nem imunidade, nem transcendência, nem alívio dos males que nos assacam ou das pragas que nos matam. "O avanço cego das coisas", em particular do desejo sexual, é evidente em todos os filmes de Cronenberg: em The Fly (1986) a vida sexual do protagonista atinge a loucura à medida em que metamorfoseia de humano em insecto. Em Rabid (1976) uma deficiente operação de cirurgia plástica transforma uma mulher num vampiro com um órgão que parece um pénis debaixo do sovaco, que ela utiliza para sugar o sangue das suas vítimas; com o tempo transforma a população inteira em predadores sexualmente insaciáveis. Neste filme todos os ideais da economia espermática do século XIX que promove a vida burguesa de família, a autoridade patriarcal e luta contra a prostituição e a contaminação sexual se dissolvem. O sexo é apenas uma mercadoria, saturada e sedutora. Antecipando a estreia de Wolf, a revista Esquire anuncia o regresso do "homem postsensível". À nostalgia do reino animal Cronenberg apõe a dos crustácios (Naked Lunch, os insectos (The Fly) e os moluscos (Shivers).

A investigação biomédica em campos como as interacções do sistema imunitário trouxeram-nos novas metáforas. A visão que Cronenberg tem do humano é a do biólogo que considera a espécie em termos evolutivos, explorando a evolução do ponto de vista de outros organismos. O cineasta canadiano utiliza estas metáforas para retratar um mundo novo e desnaturalizado de margens permeáveis, seduzido pela clonagem e pela psicopatologia da vida quotidiana. A maneira de sentir o organismo constitui a base estética cronenbergiana que inverte "a compreensão normal do que acontece física, psicológica e biologicamente...torna difícil alterar o nosso sentido estético para acomodar a velhice, sem falar de doença mental" (CC, 83-84). "Crash", v.g., é um filme sobre alquimia carne-metal-energia. O jogo "eXistenZ" é um sistema baseado na tecnologia e nos limites da biologia. Em "eXistenZ" "MetaFlesh" é o material parecido com carne humana sobre o qual se constrói a larva. "GameFlesh em "MetaFlesh" é a "consola" de jogo parecida com um rim que se conecta apoiando numa pretuberância que se parece com uma mama, que desencadeia uma reação rítmica de pulsações peristálticas. O "game-pod" (jogo da larva") "eXistenZ" é fundamentalmente um animal produzido pela fertilização de ovos de anfíbios saturados de ADN sintética. Como se trata de um animal, o "pod" tem uma medula espinal, ossos, músculos e é sensível aos virus e a outras doenças. Cronenberg utiliza a doença transmitida sexualmente como uma metáfora da interdependência infinita das relações e dos limites permeáveis entre organismos. "Assim como Bob Flanagan converte o seu próprio corpo num espectáculo médico, confrontando-se com os temas tabu da sexualidade e da doença sem vergonha ou culpabilidade, Cronenberg investiga de que modo as nossas opiniões estéticas e morais poderiam transformar-se se adoptássemos a visão que tem o científico da 'patologia'" . Em Videodrome Bianca, Nicki e Max estão sexualmente ligados, todos eles capazes de penetrar num ou outro de maneira polimórfica com órgãos sexuais mutantes. Mas não se pense que este cineasta embarca na utopia do "amor livre". Shivers introduz uma nova forma de terror: a saturação da sociedade com um erotismo obrigatório . Afinal, o sexo, mais do que libertar, é uma das formas mais fortes de controlar a população, uma nova forma de consumo e de conformidade.

O inferno
Quando é que começam e acabam os infernos? Onde começa a salvação, quando é que ela se torna efectiva? Como é que os condenados deste mundo, os homens subterrâneos, sobem à luz afim de que os túmulos se abram e as trevas se rasguem? "Inferno" (do latim infernus = inferior, que fica em baixo) é o nome dado ao lugar de castigo dos condenados no outro mundo. No Antigo Testamento os ímpios sofrerão castigos (Is 49,16; Sab 3, 10, 18). O castigo será o fogo (Is 50, 11)e o verme (Is 16, 17). No Novo Testamento esse lugar é chamado Hades (tradução corrente para sheol) ou geena (Mc 9, 43; Mt 5, 29) e geena do fogo (Mt 5, 22) onde o verme e o fogo atormentam (Mc 9, 48). No Apocalipse é "o mar do fogo que arde com enxofre" (Ap 19, 20) onde serão atirados vivos os dois monstros anticristos (Ap 19, 20). Este cenário de tormentos é como "salvo" pela crença da "descida oas infernos" de Cristo. Segundo a profissão de fé da Igreja primitiva, tal como se encontra no Símbolo doApostólico desde o século IV (descendit ad inferos), Jesus, na hora da sua morte desceu aos infernos a fim de levar aos condenados a mensagem da salvação e a misericórdia de Deus. Marcos fala da solidão em que ficou Jesus diante da morte (Mc 14, 51-52). Todos fugiram. Não é possível suportar o inferno sem esta profunda solidão. A maneira de pintar o inferno desde a primeira metade do século II, no Apocalipse de Pedro, por exemplo, manifesta muitas semelhanças com a escatologia pitagórica órfica e das religiões orientais . Este motivo teve a fortuna que se conhece, mas é Dante quem mais literária e desmedidamente o exalçou. Mas o dogma do inferno sofreu tambéma sua minimização, espiritualizando-se. Os grandes espíritos (Ambrósio, Gregório de Niza, João Crisóstomo) hesitam em admitir a perpetuidade dos castigos no além, antes que a doutrina, com Jerónimo e Agostinho tenha sido definifivamente fixada como um ponto de fé incontroverso. Há uma outra maneira (existencialista) de ver o inferno. O que sabemos do outro mundo é inspirado deste mundo. O que sabemos de nós é inspirado do que de nós sabem os outros. Foi isso que levou Sartre a dizer no Huis clos: "O inferno são os outros". Interrogado sobre a sua peça, disse ele um dia: "Quando pensamos sobre nós, quando tentamos conhecer-nos, no fundo usamos os conhecimentos que os outros têm já sobre nós. Julgamo-nos com os meios que os outros têm ou nos deram para nos julgarmos. Naquilo que diga sobre mim, está lá sempre o juízo de outrem. O que quer dizer que se as minhas relações são más, me coloco na total dependência do outro. E então de facto, eu sou inferno. Há uma multidão de gente no mundo que está no inferno porque depende demasiado do juízo de outrem. O que não quer dizer que não se possa ter outras relações com os outros. Isso marca apenas a importância capital de todos os outros para cada um de nós". Mais tarde diz: "O que quis dizer é que muita gente está incrustada a uma série de hábitos, de costumes que nem sequer tentam mudar. E essa gente está como morta. No sentido que não pode quebrar o quadro das suas preocupações e dos seus costumes; e que continua a ser vítima dos juízos que sobre ela fizeram". A "vitimização" tornou-se a postura do indivíduo contemporâneo, o que o impede de se posicionar como cidadão e o que favorece a obsessiva ideia de que somos lobos uns dos outros. R. Girard diz que "nas culturas arcaicas a fronteira era sempre marcada por vítimas. Os mamíferos marcam as suas fronteiras territoriais com os seus excrementos, e os homens fizeram durante muito tempo a mesma coisa com a forma particular de excrementos que são para eles os bodes expiatórios" . Mas até os bodes expiatórios se desssacralizaram, juncando de cadáveres as fronteiras dos nossos países civilizados; a barbárie acomoda-se perfeitamente aos aperfeiçoamentos tecnológicos, temos provas abundantes disso no século XX. O sistema de defesa instala-se no interior das grandes cidades. Vítimas das guerras (os "deslocados" que enxameiam as grandes cidades de África ou da Ásia), vítimas do racismo, vítimas do "horror económico" (onde vivem os emigrantes clandestinos?) e dos cantos de sereia dos "paraísos" de riqueza, corpos aos milhares aprodecem nas fronteiras. Quanto mais os homens se comportam com avidez e avareza e "devoram" os seus semelhantes para os expulsar ou tirar proveito deles por via das armas ou do dinheiro, da escravatura de toda a espécie, mais rejeitam excrementos nas margens dos seus territórios e nas lixeiras das suas metrópoles.

O inferno de "eXistenZ"
Cronenberg definiu-se sempre como um cineasta "existencialista". Em Cronenberg tudo é mental. Todos os seus filmes são aventuras metafísicas. O melhor exemplo disso é Videodrome. Max Renn, aventureiro do mundo catódico, transforma-se literalmente em magnetoscópio. As suas emoções, os seus desejos vão encarnar num corpo crístico, aberto, a todos, "prova" viva do seu martírio, percorrido por todas as ondas hertezianas do planeta, visitado por entidades virtuais, não sabendo nós se algum dia elas tiveram um avatar humano. Cronenberg suprime aquilo que a maior parte das pessoas consideram como tecnologia para fazer sobressair outros tipos de tecnologia: unma forma de biotecnologia. Assim "eXistenZ" é um filme totalmente mental: as personagens, o décor, a acção, a montagem. Nada qui tem que ver com o futuro "techno" de Blade Runner ou Matrix. É um filme que não acontece em parte nenhuma. O nome de "eXistenZ" é antes de mais o nome de um novo computador de jogo orgânico que, ao ser telecarregado por seres humanos, entra directamente no seu sistema nervoso central e os transporta numa corrida louca dentro e fora da realidade, simultaneamente. O jogo muda de cada vez, adaptando-se aos indivíduos que entram nele. É preciso jogar para descobrir porque se joga. Entrar em "eXistenZ" é entrar numa outra realidade, a qual é a dos mundos virtuais e dos jogos de vídeo ultrasofisticados. Uma criadora de jogos célebres, Allegra Geller (Jennifer Jason Leigh) apresenta a um grupo de jogadores a sua última criação, "eXistenZ" que promete projectá-los mais longe do que nunca estiveram no mundo virtual. Para tal devem estar equipados de "bioports", uma espécie de tomada enxertada directamente na sua coluna vertebral, no fundo das costas, uma espécie de segundo anus que podemos excitar e apalpar como o verdadeiro e que permite estar ligado fisicamente às suas "consolas" de jogos alimentadas pela própria energia dos sistemas nervosos. A fonte de energia do jogo é o sistema nervoso, o metabolismo e a energia corporal. Uma pistola permite inserir a tomada do "bioport" na medula espinal. Há também um "umbyCord", um cordão de conexão de mais ou menos quatro metros de comprido, em forme de Y, que se parece com um cordão umbilical: torcido, translúcido, com vasos sanguíneos azuis e vermelhos à superfície. Ligam-se os "UmbyCords" aos portos que se encontram por trás dos "game-pods". O "gamepod" é basicamente um animal. O jogo arranca rapidamente desde que os impetrantes tenham ligado as máquinas orgânicas que servem de Nintendo com aspecto viscoso e vivo. A partir daí nem nós nem os participantes saberá onde se encontra: na realidade ou no jogo nem em que momento se entrou ou se sairá. O espectador, alucinado, descobre que não há realidade verdadeira ou real. Allegra Geller, a grande sacerdotisa do jogo electrónico, deverá viajar no interior da sua própria criação, no labirinto do seu inconsciente, realizado sob a forma de "mundos" (assim se chamam os graus de dificuldade nestes jogos), mas conectando desde o início do périplo a sua "consola" orgânica (directamente ligada, através de uma abertura bio-tecnológica - o bioport) ao seu sistema nervoso. Não nos admiramos por isso que ela se perca nos "mundos" que criou a ponto de já não saber se estes universos apenas existem de maneira aleatória ou que venha a duvidar que foi ela a sua organizadora. Allegra, o autor, transforma-se em personagem duma ficção que escapa ao controle do seu autor. É uma simples "marionnette" numa partitura escrita por um outro, com os gestos e as atitudes um pouco mecãnicas do autómato. Allegra encarna o estádio supremo do artista: aquele que literalmente cria outros mundos. Tal como Bill Lee, regressando do inferno de Interzone num veículo militar saído dum sonho absurdo, deverá refazer como um vulgar autómato o gesto atroz que o mergulhou no pesadelo que é o seu romance in progress, O festim nu, e matar com uma bala na testa a mulher que ama para lá da morte.

Porquê falar de inferno a propósito deste filme de Cronenberg? O mestre do terror visceral parece ter integrado no seu próprio corpo o lado desencarnado, inumano dos jogos vídeo. Por momentos esta sumptuosa mecânica esquece-nos para ter a sua vida em nós. E reciprocamente. "O meu corpo revolta-se contra mim e sou impotente para reprimir esta rebelião". Esta réplica de um personagem de "Chromosome 3" é certamente uma das chaves preciosas que permitem entrar no universo de David Cronenberg. O corpo e os seus tormentos são p lugar permanente de exploração favorita deste cineasta inventivo e visonário: doenças, deformações, mutações, decomposições, parasitismo, enxertos. Obsessões, nevroses, pertyurbações mentais, duplas identidades, halucinações, desrealização. Apagamento da realidade e perda do seu sentido (e "eXistenZ" é a sua nova prova depois de "Videodrome" ou o "Festim nu"); o rearranjo dos códigos e dos modos sexuais (e a lembrança de ferro, de sangue e de desejos assumidos de "Crash" está ainda vivo nas memórias; como a perturbação sublime ligada à dupla natureza homem/mulher do herói de "M. Butterfly"); a separação do homem entre um corpo tal como é - manifestamente inapto para responder à soma cada vez maior das suas pulsões - e tal como ele deseja reconstitui-lo (e os inumáveis aprendizes de feiticeiros que pululam no cinema de Cronenberg: Jeff Goldbum, sábio que decompõe e recompõe o seu corpo em "la mouche", integrando nele elementos exteriores que o vão fazer desaparecer; Rosanna Arquette que atinge prazeres extremos e dolorosos no seu corpo envolvido em couro e próteses em "Crash"; o médico inventor de "Scanners", o John Lone travestido de "M. Butterfly", os dois gémeos ginecológicos encarnados por Jeremy Irons e criando instrumentos cada vez mais sofisticados e destruidores para explorar a intimidade das mulheres em "Faux semblants". Cronenberg é portanto o explorador inquietante e de uma lucidez que queima dos choques do nosso mundo e dos nossos seres. O orgânico, o osgásmico, o fantasmático, o físico e o fisiológico fascinam-no - essa é a carne dos seus filmes. A pintura da sexualidade é clínica, técnica, obsessiva - vejam-se as experimentações, as reconstituições ao infinito e essa figura recorrente no seu cinema que é a sodomia. Julian Sands é a sua vítima, consentindo mais ou menos em "le festin nu", James Spader perde a vergindade com um Elias Koteas. Max Renn elabora uma espécie de back-room sadomasoquista virtual afim de partir na sua aventura cibersexual (Videodrome). O herói cronenberguiano desviou-se do caminho normal da existência. A doença é aquilo que o faz inventar as próteses que substituem, continuma ou fazem progredir o organismo humano. O tema da contaminação remonta a Frissons na filmologia de Cronenberg. O problema, diz o autor numa entrevista a Serge Grünberg "é saber se a doença é realmente uma criatura diminuida, ou se é pelo contrário uma criatura reforçada, ou ainda se é uma outra criatura. A doença indica habitualmente uma outra forma de vida. Não sempre, mas frequentemente. A boa saúde de uma outra forma de vida provoca em nós a doença" . A doença provoca um deslocamento de realidade. É isso que interessa em "eXistenZ".

Coda
Estamos a viver a realização de todos os fantasmas, sem poder desenvolver anticorpos contra isso. J. Baudrillard põe o dedo na ferida de uma forma certeira: "Os media funcionam como uma situação extrema de membros transformados em fantasmas. Somos amputados do nosso próprio corpo e das nossas ideias. Em contrapartida, somos sensibilizados para o vazio, para adoptar a prótese das nossas próprias convicções. Resta-nos uma sensação de deficiência colectiva" . "As tecnologias que reproduzem o pensamento e a engenharia genética bem podem acabar por influenciar a forma que o futuro assumirá de longe mais intensamente do que os computadores, as maquinarias da informação e da comunicação que continuam a transportar muitas das mais estranhas fantasias escatotecnológicas da actualidade. Quem tece o fio que tece a rede de todas as redes? Que fantasmas nos ligam hoje através das máquinas? Digamos que basicamente esses fantasmas são o da imortalidade, do dinheiro, da conectividade universal, da globalização. As ligações "perigosas", ligadas desde sempre ao "passional" a domesticar, estão a tornar-se dominantes pela intervenção da técnica. Trate-se de jogos de computador, imagens, desejos, dinheiro ou poder, a cultura contemporânea está a ser crescentemente marcada pelas "alucinotecnologias" (E. Jünger). Veja-se a euforia em torno de termos como "on-line", "conectividade", "conexão", estar "ligado", mas também em torno da "interactividade", das "comunidades" virtuais, etc. Não estar ligado, ser desligado parece ser hoje a suprema ameaça. Como muito bem resume Lash, “Com a tecnologia, as formas de vida ficam comprimidas. Deixem de ser lineares. As formas de vida descontextualizam-se”

O inferno é, no imaginário humano, a forma de sancionar o bem e o mal, de marcar um território. Depois da crise da matriz teológica que tudo integrava num "lugar" edénico, "real" e tudo veiculava no tempo da "salvação", ainda se pode falar de "matriz"? Não estamos irremediavelmente condenados ao "híbrido"? Não está a rede telemática a destruir a matriz "invisível" que articulava tudo? Como pensar hoje a "ligação" humana? Como pensar as formas de vida? Há uma matriz que sustenta as ligações, as distribuições, de objectos, corpos, imagens, dinheiro, etc. Essa matriz é a vida. "Vida" designa o "exterior", a multiplicidade desatada, selvagem, "não formada" de forças. A vida é a multiplicidade aleatória, as linhas de forças, o campo de tensões e de intensidades, de trajectos. E se preferimos o termo de vida ao de morte é porque a morte é a própria vida, mas imobilizada, petrificada, enquanto a vida diz o trajecto dinâmico de tensões e de intensidades. A imobilidade, o estado estacionário tanto pode significar a vida como a morte. Tudo depende dos tipos de forças que dela se apoderam. A própria morte é um impasse, um beco sem saída, o fim dum caminho ou está ela envolvida num processo, um devir que faz dela um poder de vida? Porque a morte não se opõe à vida: a vida é luta e combate e podemos combater até ficar asfixiados, esgotados, morrer disso, podendo-se dizer que a morte é ainda nesse caso uma afirmação da vida, a sua última resistência. Adivinhamos uma outra matriz, recalcada; um lugar ucrónico onde "nada era trágico, mesmo se a alma caminhasse como de noite e na obscuridade" (Maria Gabriela Llansol). Essa matriz era Deus entendido como a Vida absoluta. Mas Deus eclipsou-se. O deus da ciberteologia é um deus informacional, vazio. "The Dead Zone" é a sua morada. Fim do "realismo". Fim da narratividade racional. Regresso do surrealismo. A conceptora do jogo virtual do futuro é ameaçada de assassinato por uma seita "realista". Para escapar aos assassinos esconde-se em mundos que criou. Anuncia "eXistenZ" o fim do cinema?.

Os tempos são de niilismo que é antes de mais uma negação de todos os valores, assinalando o colapso da ideia de totalidade. O fantasma é o da fusão total (Crash). A relação erótica é reduzida à sexualidade ou ao "voyeurisme" que é uma profanação da vida ou ao consumo, como qualquer mercadoria de valor flutuante. Os tempos são de suspeita. Não há valores na natureza. É apenas na vida e para ela, em função de necessidades e de desejos que eles lhe pertencem, que valores correlativos a estas necessidades se ligam às coisas. A vida é a origem da cultura que não é senão o conjunto das normas e dos ideais que a vida se impõe a si própria no fito de realizar as suas necessidades e desejos que se concentram num só: a necessidade de que a vida cresça, que cresça a sua capacidade de sentir, o nível da sua acção, a intensidade do seu amor. O tempo do niilismo vem quando a vida deixa de ser o princípio da organização duma sociedade e da vida de cada um. Cronenberg criou um mundo a vir sem odor nem sabor. O mito da "techgnosis" promete a imortalidade através da purgação da carne - o que se obtém pelov download da nossa informação em espécies de seres, não humanos ou pós-humanos. "A ciberarte invoca, celebra a aparentemente procura co-instigar a pasagem ao pós ou trans-humano por via do apocalipse cibernético da Desincarnação", escreve Hermínio Martins . Se para Rimbaud e os surrealistas a palavra de ordem era esta: "changer la vie", a palavra de ordem dos ciberideológos é outra: "abolir o Humano". Em nome de que paraíso? Em nome de que Inferno? Entre os corpos de Allegra e de Ted, o vazio...Aquilo que os liga é o desejo de conhecer um mundo em que a comunicação fosse possível. No interior de "eXistenZ" as personagens mudam, passam do real ao virtual sem qualquer diferença, perdendo-se os actores e os espectadores. Os primeiros filmes de Cronenberg já satirizam o desejo de "regressar ao jardim". Essa sátira não parou de crescer como um "cancro criativo" (CC, 80). Mas afinal onde está o inferno? Possivelmente no intervalo que liga o corpo orgânico ao corpo tecnológico. O inventor da "psicoplasmática", o doutor Hal Raglan de The Brood, libertando-nos dos medos e da agressões reprimidas, através do implante de rebentos físicos no nosso corpo, inoculou em nós uma "potencialidade" humana - a criança interior - que não é luminosa nem doce, mas demoníaca, paranoica e assassina. Seremos nós personagens de "eXistenZ" sem o saber? "Sinto-me um pouco desconectado da minha vida real - enfim não sei onde está a realidade ou o que fiz ou não." (Ted Pikul). Afinal, "Are we still in the game?"


Bibliografia
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J. Berger, algunos pasos hacia una pequeña teoría de lo visible, árdora, Madrid, 1997: 29.

Matti Savolainen, "The Wave of Science Fiction as Posmodern Literature: J.G. Ballard as a Test case", in Criticism in the Twilight zone: Postmodern Perspectives on Literature and Politics, Danuta Zadworna - Fjellestad Stockholm, 1990.

David Cronenberg, Entretiens avec Serge Grünberg, Cahiers du Cinéma, , 2000.

Linda S. Kauffman, Malas y Perversos. Fantasías en la cultura y el arte contemporáneos, Frónesis, València, 2000.