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JOSÉ AUGUSTO
MOURÃO, OP

Fará Deus justiça?
Ex 17, 8-13; Lc 18, 1-8

  • Haverá ainda fé sobre a terra? Quem acredita em quê? Não entrou tudo em fase de contrato negociado? E não andaram sempre a fé e crença em debate, porque uma visa o invisível e, a outra, o espectáculo do visível? A crença supõe no outro uma mesmidade com a qual se identifica e com que se reconforta (ele é bom, ele, salva-me), enquanto a fé é sempre interpelação desconcertante, injunção a parir não se sabe para onde. A crença espera o espectacular e inventa-o se foi necessário. A fé consiste em ver e em ouvir onde nada há de excepcional para ver e ouvir. Ela sabe ver e ouvir sem tocar. É assim o episódio de Emaús: os dois discípulos falam longamente com o ressuscitado sem o identificar e quando o reconhecem na fracção do pão ele desaparece da sua vista. A fé não consiste em acreditar cegamente e sem razão ( fides querens intellectum) , mas na decisão de acolher ou não a existência cristã autêntica ou a recusa desta existência reconciliada.
  • "A sensibilidade artística é empobrecida pelo seu divórcio da sensibilidade religiosa, e a religiosa pela sua separação da artística" (T.S. Elliot). Pode a liturgia separar-se da ideia de espectáculo? "A missa é hoje um sacrifício em mais do que um sentido: nela se sacrifica a música, a afinação, a estética" (E. Cintra Torres). O problema da sensibilidade toca com um campo que se confronta com uma crise de morte: a liturgia. A liturgia tornou-se um espectáculo sagrado, mas enxotou a vida e a responsabilidade ética da sua cena.
  • A fé tem a estrutura da escuta e da interlocução. Do responso, da palavra "responsorial" antes de ser responsável, oral, antes de ser moral. A ética da palavra depara-se com três dificuldades de peso: dizer a verdade e mentir, as exigências contrárias do segredo e da transparência, os diversos tipos de promessa e as suas possíveis rupturas. A palavra humana não tem resposta para as derivas, a surdez, os impasses em que os falantes que somos se fecham se não se abrir àquilo que a funda; a palavra não guardará as promessas que faz se não for habitada pela esperança daquilo que lhe é prometido e que ela não tem.
  • A palavra só é autenticamente humana quando é compreendida como hospitalidade, i.e., exposição à prova do outro sob as espécies do estrangeiro. O malentendido faz parte de qualquer diálogo autêntico. A abertura ao inédito proíbe assimilar o trabalho de compreensão a uma operação de decifração e de descodificação. A palavra é a única arca porque a única memória e a única promessa. A parábola lembra esse processo de descoberta e de resposta ética. Donde o seu carácter labiríntico. Não é que a parábola seja reservada aos eleitos (que pretensão triste e deplorável!), a parábola fornece uma visão atenuada e provisória, que convida a procurar mais longe. O discurso parabólico lembra que não há mensagem se não há uma disposição de escuta. Se não entendeis este texto não o acuseis de obscuridade, culpai a obscuridade do vosso coração. Está aqui uma mensagem para quem a quer e a sabe receber.
  • Paulo é um judeu que escolheu como interlocutor o não-judeu. Não são aqueles que não praticam os ritos da religião judaica e que não conhecem o hebraico (poucos judeus o conheceriam), mas aqueles que não fazem parte do "povo eleito" ( o laos ), os que são estranhos ao tom da linguagem rabínica. Esses não vivem da certeza da eleição, no delírio presunçoso, na paranóia insuportável num Deus que me escolheu, a mim e ao meu povo, diferentemente de todos os povos e que me conduzirá e à minha descendência até ao último sopro do mundo. As consequências desta jactância são delirantes: só tenho contas a prestar a esse Deus e a mais ninguém. Terror virtual quando esta segurança se torna poder real.
  • Não é isso que vemos no texto de Ex 17,8-13? Um espectáculo de magia. Um mediador mitificado e um Deus de que podemos dispor porque está do nosso lado. É essa a pecha do pensamento mágico: pretender agir sobre Deus e considerá-lo como um meio para suscitar no mundo efeitos que o homem sozinho não tem capacidade de provocar. O novo povo nasce da Palavra e do dom inegociável da Vida que se dá e se promete a todos, diz Paulo.
  • "Comparado com o pássaro que se cala, o pagão é um fala-barato; comparado ao cristão, o pagão está privado de fala: nem reza nem dá graças, o que, em sentido profundo, é a linguagem humana, diz Kierkegaard. Rezamos para aprender a rezar. Coram Deus: rezar e estar diante de Deus é a mesma coisa. Ferida narcísica aceite. Experimentum crucis . A luta com o Anjo, as feridas e a bênção. O homem piedoso coxeia depois de ter rezado. Até o silêncio é aqui alocução.
  • A respiração: o invisível poema (Rilke). A oração é a respiração elementar da alma. E a santificação da nossa respiração. A oração é a voz nua, a manifestação de si ao outro invisível e luta pela verdade e não um "delírio supersticioso" (Kant) Idolatria pura e simples. O sentido religioso reza como o órgão mental pensa (Novalis). Nós sabemos que a oração é uma experiência da palavra ferida pelo destinatário a quem nos dirigimos e que não vemos nem responde. Mas aí está a injunção: orar sempre sem desanimar. Porquê? Porque o desejo reza sempre, mesmo quando a língua se cala. Porque o desejo que não se cansa é uma oração contínua. A oração só adormece quando o desejo desfalece (Agostinho, Sermão LXXX, 7). Em último caso, p edir é reconhecer em acto que não se é a origem do bem e do dom, reconhecendo aquele a quem nos dirigimos por aquilo que ele é. Deus é o doador. A oração não me fala só de mim mesmo, mas do doador.
  • Vivemos no meio do mercado, da democracia, de uma maioria de homens sem qualidades. O conjunto dos seres humanos é cada vez menos necessário ao pequeno número que modela a economia e detém o poder. Os homens estão a tornar-se supérfluos. É por isso que a responsabilidade ética é urgente: ela apela a uma guerra inflexível contra a doxa, contra aqueles a que se chama os "intelectuais mediáticos", contra o discurso formatado pelos poderes mediáticos nas mãos de lobbies político-económicos. Contra a desmobilização geral.
  • O povo é um animal que podemos enganar, domesticar, mas que é preciso também acalmar. Como fazer admitir uma mentira pública, tão geral, tão desmentida pela experiência quotidiana? O recurso: a fábrica da opinião produzida pelos "louvadores do tempo presente", lubrificadores da máquina social. O poder do cidadão era o poder de julgar sem nenhuma pretensão a governar (Alain). O homem médio suplantou o homem ordinário. Hobbes parece ter razão: os homens não passam de grãos de areia, animados uns contra os outros por vontades hostis que só pode conter uma Vontade superior que encarnará na história a monarquia absoluta ou um poder hegemónico. Para tal, é preciso que todos sejam reduzidos a carne para canhão ou carne de contrato. Basta captar a inércia dos Robinsons de Hobbes armazenando-os em enormes silos para fazer deles uma opinião.
  • A justiça é o fruto da observância da ordem do mundo, não de uma potência hegemónica, nem sequer das organizações que regulam a ordem do mundo (FMI, OMC, G8, etc. e sobretudo a ONU cuja Carta de composição seria preciso mudar e sobretudo fazer sair de Nova Iorque). Tornamo-nos todos sobreviventes de pena suspensa, o mundo está mais desigual do que nunca para milhões de pessoas a quem são recusadas, para lá dos elementares "direitos humanos", o direito a uma vida digna de ser vivida.
  • O fetichismo tomou conta de tudo: é o que se vê cada vez que a religião é determinada por mandamentos estatutários, por regras exteriores, por observâncias funcionais para atingir certos fins. Instrumentos duma subjectividade utilitarista que calcula e utiliza o divino como meio. Assim projectamos em Deus as nossas paixões, assim negociamos o inegociável, assim domesticamos o Rei universal que venceu o caos e criou a ordem do mundo (justiça). As Escrituras trazem até nós a sabedoria que falta. Útil para ensinar, persuadir, corrigir e formar segundo a justiça. A palavra cura, fere, volta a curar. Deus julga. A Palavra julga, isto é, obriga a decidir pela verdade ou pela mentira. Deixemo-nos interpelar pela força da palavra e respondamos com a vida que fala e que age.

 

 
 
Professor na Universidade Nova de Lisboa, co-director do TriploV, presidente do ISTA (Instituto São Tomás de Aquino), Frei José Augusto pertence à Ordem dos Pregadores (Dominicanos).