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JOSÉ AUGUSTO
MOURÃO, OP
Homilias

O baptismo como imitação de Cristo
( Is. 42, 1-4,6-7; Act 10,3-38; Mt, 3, 13-17)

Há festas assim em que num só acontecimento tudo se concentra. Esta é a festa do fogo, do Jordão, da visita da Sabedoria, do Novo Adão e do Paraíso Novo, dos dons e da missão. O baptismo de Jesus é a festa da encarnação, da pregação, da morte e da ressurreição. Também da declaração do amor: Tu és o meu filho bem amado, em ti pus todo a minha complacência .

Os textos iluminam as festas, resistindo à estereotipia e ao uso. Há textos sem os quais a vida se aniquilaria. P lanam sobre esta cena dois textos que Jesus conhece e que Lucas cita: “Tu és meu Filho, eu hoje te gerei”, é uma expressão do salmo real de sagração (2,7), e o texto de Isaías 42,1: Jesus, Filho bem-amado de Deus é também o seu Servidor por excelência. Ele é o cordeiro que tira o pecado do mundo, dirá João (Jo 1,29). Que indicam estes textos? Antes de mais, o Espírito Trinitário, o casamento do Céu e da Terra, a obra do Fogo (o amor é um rio de fogo), a dor do diálogo (a dor do nome), a antevisão da paz e da justiça no horizonte de expectativa do homem e dos mundos.

Como interpreta Jesus esta experiência interior? Lucas diz que o Espírito de Deus, invisível, se manifesta “sob uma forma corporal”. O símbolo da pomba é inteligível à luz de uma explicação rabínica tradicional no século II. Simeão ben Zoma enunciava o sentido do texto deste modo: “O Espírito de Deus planava sobre a face das águas, como a pomba que plana sobre os filhotes sem os tocar” (bT Hagiga 15a). Primeiro aspecto: o Espírito criador plana sobre Jesus como planou sobre as águas originais: é a nova criação que começa. Segundo aspecto: a voz que identifica, confirma e guia. O aspecto mais luminoso da experiência espiritual de Jesus está na forma como a voz que vem dos céus assume formas diferentes nos evangelhos.

Diz Máximo o confessor que quanto mais o intelecto se eleva pela caridade, tanto mais a sabedoria divina se baixa pela misericórdia, de tal modo que há imersão ou mistura mútua. No baptismo a fonte de vida derramou-se sobre nós como um rio imenso. Deixamos de viver a nossa própria vida para viver a vida do amado. O amor divino produz um êxtase que não deixa os apaixonados pertencer-se a si próprios. É o que diz o Cântico: “Se te ignoras a ti mesmo, ó mais bela das mulheres”, a saber, se te ignoras a ti mesmo, se sofres o êxtase do teu próprio eu para te lançar em mim com todo o afecto de que é capaz o teu espírito, então, liquefeita pelo fogo do divino amor e pela graça assimilar-te-ás a Deus e, inflamada pelo calor do divino esplendor, transformar-te-ás na treva mais do que luminosa. Então, és “a mais bela das mulheres”, porque ornada com as virtudes da fecundidade celeste.

Nós somos baptizados na morte do Cristo, e não como Cristo foi baptizado. Estamos, pelo baptismo, configurados na morte de Cristo, revestidos de uma semelhança que torna de certo modo presente em nós a sua morte. Se fomos enxertados em Cristo através da semelhança com a sua morte, seremos igualmente incorporados na sua ressurreição (S. Tomás, Expos. In Rom., c. 6 lect. 1). "Como o Cristo esvaído nos braços dos seus foi por eles sepultado, assim a nossa vida morta no sangue de Cristo foi mergulhada", escrevia Pierre Emanuel. “Vós estais mortos e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus”, dirá Paulo (Col. 3,3). O. Culmann escreveu que no fundo, todos os homens há muito que receberam o baptismo no Gólgota, nos dias de Sexta feira Santa e de Páscoa. Assim o verdadeiro acto baptismal foi já realizado, sem o nosso concurso e também sem a nossa fé (1948: 19).

Revestir a imagem é o ponto crucial de toda a criação: Paulo exorta os cristãos a trazerem sempre a paixão e a morte de Cristo nos seus corpos (2 Cor, 4,10). O verdadeiro nascimento espiritual do homem christianus é o baptismo: “Nós peixes pequenos, que temos o nome que temos do nosso Peixe Jesus Cristo (ichthys,) nascemos na água e só permanecendo nela é que somos salvos”, escreve Tertuliano (De baptismo, I, 3). É no baptismo que encontramos o “sopro” do Espírito Santo; nele nos lavamos, nos purificamos das “manchas de idolatria ou do deboche” (maculas idolatriae aut stupri) ; é na liturgia, na “loucura” do sacramento que encontramos a semelhança perdida. Ora, aquilo que funda a eficácia do baptismo é a Paixão de Cristo – água e sangue vertidos pela humanidade nova – continuada na sua ressurreição; essa é a razão pela qual Jesus nunca baptizou ninguém: ele esperava o seu próprio martírio para instituir para sempre o sentido do sacramento. É por isso que o martírio do cristão será exaltado como o superlativo do baptismo.

Em que consiste esta semelhança crística que supõe o acto de “trazer o sangue” (sanguine portare)? Trata-se de um certo modo de revestir o obscuro: quando se dirige ao mártir, Tertuliano pensa sobretudo num homem fechado nas trevas duma masmorra. Exorta-o por isso a fazer a conversão de todos os valores do visível que experimenta: na masmorra, ao menos não te deixas seduzir pelas imagens dos falsos deuses; a obscuridade te protegerá das imundícies do mundo; esquece a palavra “masmorra” e pensa que repousas na célula pacífica de um ermitério; porque nessa treva estás em face do Espírito que é a verdadeira luz em que Deus vê tudo e te olha; que a obscuridade te seja propícia e te leva a exercer as virtudes da tua alma e do teu corpo.

Mas, ao revestir o obscuro, o mártir de uma certa maneira reveste a dissemelhança, no sentido em que deve renunciar a todas as semelhanças mundanas: o mártir renunciou a fazer “boa figura”. O que lhe cabe em sorte é uma maneira de desfiguração. Mais do que todas as virtudes, é a paciência que Tertuliano exalta: há na paciência o padecer, o sofrimento, a Paixão de Cristo. O martírio seria o cúmulo da paciência. Que fez Cristo na Paixão? Revestiu-se de ignomínia (sordidis indutus), carregou o ignobiis aspectus do supliciado, entregou-se “como um animal para o abate”, longe da “boa figura” humana dos seus próximos. A imitação de Cristo passa por uma vocação para o informe. É preciso revestir o Cristo como Cristo revestiu a carne; habitar nele, inerentemente, não seguir o aspecto, mas os vestigia, os traços dele.

Um dos nomes tradicionais do baptismo é "iluminação" (uma expressão habitual nos Padres orientais dos séculos IV e V), no sentido de abertura espiritual para receber o ensino dos mistérios. Pregar deve ser iluminar. Iluminar o corpo humano. Isaías diz que pregar é proclamar a justiça, abrir os olhos aos cegos, tirar da prisão os cativos e os que habitam as trevas. E dizem os Actos outra coisa: proclamar a boa nova da paz por meio de Jesus Cristo, que é o Senhor de todos, fazer o bem e curar os que estão dominados pelo Demónio? Que nos torna competentes para evangelizar? O selo do baptismo em Jesus Cristo é-nos colocado sobra a testa no dia do nosso nascimento, e nem o pecado nem a morte o rompem. Deputados para pregar somos todos, desde então, mesmo se, com toda a evidência, ainda não saímos da lógica do vicariato. Mesmo que o monopólio do capital simbólico continua a ser gerido apenas pela classe clerical que selecciona, censura, excomunga.

"Neste momento a nossa sociedade, como muitas outras, não se vive apenas como sociedade feliz, mas como afogada e drogada pela vertigem daquele tipo de êxtases artificiais, de sonhos sem sujeito próprio, veiculados noite e dia pela televisão" (E.Lourenço). Nós somos pouco afeitos a apocalipses e visões. Vivemos sem dramas profundos. Já não vivemos na crença da iminência da Parusia e do Juízo. Deixamos de ser uma “raça pronta a morrer”. O espectáculo dos cilícios tornou-se obsceno. "Os desastres do mundo encontram em nós um eco ensurdecido, não desenham uma ruga no nosso rosto miraculosamente preservado de calamidades universais. Se nos tocam, ouvimo-las em surdina" (E.L.). Fomos feridos por uma cegueira branca, sem pontos de fuga, sem utopias. As paróquias funcionam como um regime cadastral, mecanicamente oleadas por devoções e sacramentais desencarnados. O desejo mimético é responsável pela violência que assola o mundo e as instituições: o círculo mimético é o movimento constante com que na sociedade humana se estrutura a violência, que deriva do desejo de se substituir aos outros para lhes tomar o lugar. Donde as polaridades, os bodes expiatórios, as paranóias.

Estamos em marcha, à procura da fonte, o Jordão que abre a estrada a andar sobre as águas. É essa a experiência em que nos mergulha o baptismo. Daí o perigo. Daí as trevas. Avançamos perigosa, dolorosamente. É para pensar essas chagas que o sagrado existe, não para fazer lindo ou solene, mas para fazer corpo. Aproximar-se do Jordão, mergulhar na dor do mundo e na dor do nome – “A dor dorme com as palavras, dorme, dorme/Dorme e vai buscar nomes, nomes. Dorme e a dormir morre e renasce” (Celan) -, denunciando o realismo da guerra e dos números, procurando um horizonte global em que todas as questões se perspectivem.

“É inútil o batismo para o corpo,

e o esforço da doutrina para ungir-nos,

não coma, não beba, mantenha os quadris imóveis.

Porque estes não são pecados do corpo.

À alma sim, a esta batizai, crismai,

escreverei para ela a Imitação de Cristo.

O corpo não tem desvãos,

só inocência e beleza,

tanta que Deus nos imita

e quer casar com a sua Igreja

e declara que os peitos de sua amada

são como os filhotes gémeos da gazela.

É inútil o batismo para o corpo.

O que tem suas leis as cumprirá.

Os olhos verão a Deus”. (Adélia Prado)

Professor na Universidade Nova de Lisboa, co-director do TriploV, presidente do ISTA (Instituto São Tomás de Aquino), Frei José Augusto pertence à Ordem dos Pregadores (Dominicanos).