Este é o tempo das perguntas sobre o nascimento. No fundo, o ponto natal designa o desencontro entre o originário e o original. A carne não mente nunca sobre a sua origem, testemunha dela. Nascer é acontecer, libertar-se do traço originário, sabendo que não somos a fonte nem o lume de onde vimos. Nascer é separar-se, enfrentar o espaço que se abre a nós como uma floresta de sinais e prodígios. “A impressão é que estou por nascer e não consigo. Já cortaram o cordão umbilical: estou solta no universo. “Nascer é assim: Os girassóis lentamente viram suas corolas para o sol. O trigo está maduro. O pão é com doçura que se come. Meu impulso se liga ao das raízes das árvores”. E quando nasço fico livre. Esta é a base da minha tragédia”, dizia Clarice Lispector.
Este é o tempo das aparições e dos anúncios: “a Virgem conceberá e dará à luz um filho, e o seu nome será Emanuel”. Alguém nos chama desde sempre. O Anjo apareceu a Maria e apareceu a José e aos pastores e Magos. A nós, Deus apareceu-nos no seu Filho Jesus. Este é o tempo do comparecer, de tomar o pulso às presenças e ao lume dos afectos que nos guardam. Se a carne de Cristo foi figurada, prefigurada na Bíblia pelo limo da terra virgem donde o criador modelou Adão, é porque a carne do homem testemunha de um real originário. Dizer que o mistério da Incarnação ou a verdade divina são infiguráveis é trair toda uma história e uma tradição da prática das imagens. É o contrário que é preciso dizer: se não tocamos o mistério é porque ele só pode ser figurável. As figuras têm um valor de presença. A eficácia das figuras religiosas deve-se mais ao seu modo de aparição do que à sua aparência.
Este é também o tempo da conversão, um termo que não se aplica a uma gramática da acção e que temos de conceber como um “acontecimento”. A conversão é algo que nos acontece, por graça. Agostinho assume a ideia de que existe no homem uma incurável tendência para a perdição, um inextirpável amor pelo falso que tem as suas raízes na tendência que consiste em preferir-se a si mesmo em detrimento do criador. Ora, o dom da conversão é que ela será sempre despossessão, nascimento e ressuscitação.
Com a incarnação o cristianismo deu um passo extraordinário para a saída das religiões. Era preciso ultrapassar a oposição secular dos deuses demasiado visíveis do paganismo greco-latino e do deus demasiado invisível da religião hebraica, mesmo retendo algo de uma cultura que devia ultrapassar. A incarnação é o que distingue os cristãos dos judeus, diz Tertuliano. Para estes, Deus é absolutamente invisível, enquanto que para aqueles ele envia a sua própria imagem, Cristo, afim de se tornar visível ao mundo. No Cristianismo o corpo de Cristo nasce na incarnação de um Verbo, puro Espírito que revestiu a carne – enquanto Afrodite nascia duma semente e de um sangue sordidamente projectados na espuma do mar. Aqui o visual constitui-se segundo a milagrosa conversão de uma palavra em carne, enquanto lá dominava o modelo da metamorfose, de um corpo a outro. Aqui a imagem constitui-se como uma “carne” inerente ao seu coágulo, tal o corpo de Jesus inhaerens à carne de Maria.
O acontecer revolucionário, a grande reviravolta ocorre, segundo Agostinho, através do processo de humanização de Deus. O Deus radicalmente transcendente teria decidido imiscuir-se no mundo mais do que anteriormente. Na famosa frase pronunciada por Heidegger na sua conversa com Rudolf Augstein, “Só um deus pode salvar-nos”, podemos ouvir um eco deste princípio agostiniano. Só Deus ou um deus nos pode salvar. De facto, a incarnação confirma a singularidade de cada um e abre até ao infinito as suas possibilidades de sublimação. A incarnação representa também um passo importante para o humanismo: a singularidade humana pode tocar o infinito a partir daqui. O Eu é um infinito em marcha (Kristeva).
A incarnação é a carne, a carne do Verbo; é a substancialidade e a eficácia de algo inverosímil. Uma virgem que concebe é, no dizer de Tertiliano, monstruosa, sinal de contradição (signum contradicibile), exposta à irrisão dos naturalistas ou dos “senhores da Academia”. A contradição enuncia-se assim: “Sim, ela concebeu e pela sua própria carne; não, ela não concebeu, porque não recebeu semente do homem. Sim ela é virgem: aos olhos de seu marido; não, ela não é virgem, pelo que respeita ao dar à luz”. Para o cristão “a luz é luz, as trevas, trevas”, mas o seu artigo de fé inclui a contradição: “a luz é luz porque eu acredito naquilo em que acredito. Mas aquilo em que acredito afirma o real duma maternidade virginal e de uma divindade que morre. E a incarnação supõe ainda isto: “Deus é invisível, mesmo que o vejamos” (invisibilis est, etsi videatur). Ele é invisível para quem o procura no visível. Mas o visível exige ser revelado: exige a sua assunção pelo divino, logo pelo infigurável. É então que se torna o visual, definível, já, como trabalho da antítese visível, paradoxo em acto da visibilidade.
Qual pode ser o aspecto congruente dum verbo que se encarna? Porquê um homem? Cur homo? Como conciliar a unidade imutável da pessoa divina com a dramática das suas transfigurações contra o docetismo (dokein = parecer, assemelhar-se) que recusa à divindade de Cristo a assunção do escândalo que constitui a ignomínia da cruz? Marcião preferia um corpo de Cristo puramente glorioso, que descera à terra sob a aparência de carne. Apeles dava uma realidade a esta carne – mas uma realidade sideral, tomada da substância dos astros; por isso recusava a Cristo um nascimento terrestre. Tertuliano dirá que faltava a Cristo o ignobilis aspectus, a humildade e a humilhação dos ultrages, o rosto inhonesta: desprezível e vergonhoso. Ora, a esta loucura da morte ignominiosa responde a loucura do nascimento: se Cristo foi enviado à morte, é porque devia realmente nascer. Onde está a loucura? O homem é um tecido de carne e de alma (carnis animaeque textura). Ora, neste tecido, a carne é aquilo que mente menos: (vultus operatur indicium). Cristo é um “tecido” de carne e de Espírito Santo; Cristo amou esse homem formado no útero entre as imundícies (Christus dilexit hominem illum in immunditiis in útero coagulatum).
Não podemos desejar o novo e querê-lo sem surpresa. Só uma mudança de olhar abre ao vivo o campo vastíssimo dos acontecimentos. Entenda-se o vivo como relação, não-anulação, compaciência. O dogma da incarnação pede aos fiéis que apenas imaginem espaços impossíveis: uma palavra que toma a consistência da carne, ou um deus “cobrindo com a sua sombra” uma jovem virgem para se infiltrar na sua matriz fechada.
Não esperemos grandes revoluções: a paz traz os passos da pomba e da tompeira, quase inaudíveis. O tempo é para aprofundar a esperança contra o “assim é” da história. A hora é para entrar no olhar maravilhado das crianças e dos pastores, ainda ao abrigo do deserto que as gerações que as precedem criaram. Se o Natal é o desejo tornado presença, que nome dais ao vosso desejo mais profundo nesta noite santa? Quem vos chama, afinal? Que divina surpresa ainda esperais?
Que a criança nos ensine a reconhecer em cada um a imagem de Deus e a encontrar nos outros o mesmo respeito com que os cristãos do Oriente, à entrada do santuário, beijam e tocam um ícone. No ícone do rosto está o “oceano interior” do olhar, a “chama das coisas”. Alegrai-vos, pois! A alegria funde o aqui e o agora, como um clarão no céu. A glória pode ser acumulada, a alegria não: a simplicidade da alegria está no facto de cada segundo de experiência ser um fim e não um meio. Entrai no rasto dos pastores e dos Magos que é o da obrigação de procurar a verdade e a justiça, de aumentar a nossa potência de agir e de desenvolver emoções de alegria e não de tristeza. Aproximai-vos do Reino que é a chama no interior de um anel. Cuidai da chama e cuidareis de quem vos chama, sentindo a alegria que esvoaça porque é leve, inclusiva e reluz mesmo na noite.